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Mercado de ideias econômicas

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Mercado de ideias econômicas

Ana Frazão

Ana Frazão

21/02/2024

Não é novidade que o poder persuasivo pode ser tão importante – ou até mais – do que o poder coercitivo ou a violência. Por essa razão, é normal e esperado que os poderosos – tanto no âmbito político, como no âmbito econômico, até porque estão comumente interligados – tentem consolidar ou expandir suas posições a partir da difusão das ideias que lhes interessem, a fim de convencer a população de que a sua visão de mundo é a mais correta ou a única possível.

Nesse sentido, parte fundamental da estratégia de utilização do poder persuasivo é o controle de veículos da grande mídia, a fim de moldar a opinião pública de acordo com os interesses dos seus donos, tal como já foi brilhantemente explorado por diversos estudiosos, dentre os quais Herman e Chomsky, no seu imperdível Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media[1].

De fato, como bem sintetiza Castells[2], no seu igualmente imperdível O Poder da Comunicação, os detentores dos grandes veículos de massa podem persuadir e até mesmo manipular a opinião pública por diversos meios, tais como o agenda-setting – decidir o que é notícia e o que deve ser silenciado, bem como decidir a importância de cada notícia, e o framing – e noticiar fatos já com os devidos enquadramentos, de forma que sejam percebidos pela sociedade como positivos ou negativos.

Daí por que não é exagero afirmar que uma democracia depende, em considerável medida, de uma imprensa plural e preferencialmente livre de conflitos. Logo, todos nós deveríamos nos preocupar com a concentração da propriedade dos meios de comunicação e como os seus donos agem na divulgação das “notícias” ou de suas ideologias travestidas de notícias.

No mundo virtual, tal preocupação deveria ser ainda maior, uma vez que tal ambiente naturalmente torna mais opaco o fluxo informacional, dificultando a distinção entre o que é notícia desinteressada, o que é opinião livre, o que é “opinião” paga ou interessada e o que é propaganda[3].

Em muitos dos casos, o potencial de distorção do debate público decorrente da opacidade do fluxo informacional é potencializado por outros fenômenos, como a corrupção do conhecimento e da ciência, como também já tive oportunidade de abordar em outras oportunidades[4].

Grande mídia e economia

No caso específico do noticiário econômico, não surpreende o quanto a grande mídia brasileira está alinhada com a ortodoxia econômica[5], especialmente na parte em que esta oferece importante sustentáculo aos interesses da elite econômica dominante. Entretanto, reportagem recente da revista Piauí mostra que o problema pode ser muito maior do que se pensa, especialmente quando se considera o jornalismo econômico online[6].

De fato, na reportagem “Está tudo dominado. Como o mercado financeiro vem tomando conta do jornalismo de economia no Brasil”, tem-se um impressionante diagnóstico do domínio que grandes instituições financeiras vêm exercendo sobre o jornalismo econômico no Brasil: “Na lista dos dez maiores títulos dedicados a notícias econômicas do país – todos eles com acesso gratuito – seis pertencem a alguma instituição financeira”. Em acréscimo, afirma a reportagem que “[o]s três primeiros lugares, incluindo o campeão InfoMoney, a Exame e o Money Times são todos de instituições financeiras”.

Para se ter uma ideia do poderio de tais veículos, a reportagem traz os números: “79% das consultas feitas nos mais populares veículos dedicados exclusivamente à economia e aos negócios acabaram nas páginas de portais controlados por instituições financeiras – com destaque para duas organizações: a XP Investimentos, dona da líder InfoMoney, e o BTG, que detém 36% das visitas em razão do seu controle sobre a Exame, o Money Times e Seu Dinheiro”.

Segundo a reportagem, essa é uma peculiaridade brasileira, que não encontra paralelo em outros países. Não é sem razão que é mencionada a opinião do professor de jornalismo econômico Chris Roush, segundo o qual tal situação não ocorre nem nos Estados Unidos nem em outros países, razão pela qual apresenta a seguinte provocação: “Como evitar que os interesses dos bancos contaminem o noticiário econômico?”.

De fato, tal tipo de concentração é bastante prejudicial ao pluralismo que se espera do debate econômico, considerando que a economia não é uma ciência exata. Portanto, quanto mais diferentes visões e narrativas econômicas puderem chegar ao grande público, mais será possível educar criticamente a população e criar uma “cidadania econômica”. Não é sem razão que hoje tanto se fala da Economia das Narrativas e do seu importante papel[7].

Para além das discussões legítimas em torno de narrativas econômicas sérias e consistentes, a dominação dos principais veículos econômicos online por instituições financeiras pode também fazer com que a própria ideia de notícia seja distorcida e instrumentalizada indevidamente para propagar as ideologias e os interesses dos seus donos.

A reportagem da Piauí mostra episódio em que um diretor do BTG Pactual – que passou a imprimir à linha editorial da Exame o viés de “celebrar o capitalismo financeiro” – mandou suspender a distribuição de 50 mil revistas já impressas porque havia uma reportagem que fazia críticas ao projeto neoliberal e apontava para a necessidade de um Estado mais generoso, especialmente diante da experiência positiva com os alívios dos efeitos da pandemia. Entretanto, devido ao receio de que tal tipo de conteúdo melindrasse o governo Bolsonaro, as revistas foram apreendidas e a reportagem foi refeita para se ajustar à nova visão editorial[8].

Como se pode verificar, esse tipo de cenário traz consigo o risco palpável de captura do noticiário pelos interesses dos seus donos, o que é particularmente complicado em se tratando de assuntos econômicos. Com efeito, uma das características do conhecimento econômico é precisamente a sua reflexividade, de forma que o que as pessoas entendem de economia influencia diretamente a sua ação econômica.

Consequentemente, não se trata apenas da capacidade de moldar mentes, mas sim da capacidade de moldar comportamentos econômicos de toda uma nação – ou pelo menos de parte expressiva dela –, ainda mais quando, diante da opacidade e da assimetria informacional que caracterizam a gestão de informações na internet, o cidadão comum não consegue diferenciar entre notícia, opinião e propaganda. Da mesma maneira, não consegue distinguir opinião desinteressada de opinião paga ou interessada.

Essa opacidade informacional é potencializada pelos próprios portais de jornalismo econômico na internet. Segundo a reportagem da Piauí, “todos eles – com uma exceção – informam que fazem parte de uma instituição financeira, mas apresentam essa informação da maneira mais discreta possível”. Mais adiante, a reportagem esclarece que nenhum portal diz a quem pertence na primeira página.

A segunda importante questão diz respeito aos desafios regulatórios, já que várias dessas notícias e opiniões podem influenciar diretamente o funcionamento do mercado de capitais. Diante das preocupações recentes da CVM com os influencers, cuja atuação é igualmente marcada pela opacidade informacional e normalmente pelo ocultamento de interesses econômicos diretos que tais pessoas têm em seus aconselhamentos, a reportagem da Piauí sugere que “esse raciocínio da CVM pode ser estendido aos sites jornalísticos patrocinados por bancos e corretoras”.

Em outras palavras, essa opacidade informacional pode ser facilmente utilizada para alavancar determinados produtos ou serviços financeiros ou mesmo para a manipulação de mercado, o que certamente pode ter efeitos nefastos sobre o mercado de capitais, a exigir um olhar mais atento por parte do regulador.

Vale ressaltar que os problemas não param por aí. A reportagem da Piauí ainda menciona o problema de proteção de dados, uma vez que a maior parte dos portais compartilham dados dos seus usuários com as instituições financeiras respectivas ou parceiras.

Entretanto, os meros impactos do cenário descrito sobre o fluxo informacional de assuntos econômicos já mereceriam uma maior atenção, não apenas sob a ótica dos mercados – e da proteção de investidores e usuários – mas igualmente sob a ótima da democracia.

Afinal, quanto mais o conhecimento econômico é determinante para inúmeras decisões estratégicas de uma nação, maiores devem ser os esforços para se assegurar que ele seja fidedigno, plural e idôneo o suficiente para possibilitar decisões racionais e informadas por parte de consumidores, investidores e cidadãos.


Fonte: Jota

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LEIA TAMBÉM


NOTAS

[1] HERMAN, Edward; CHOMSKY, Noam. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. Pantheon, 2011.

[2] CASTELLS, Manuel. O poder da comunicação. Pax & Terra, 2016.

[3] Várias dessas preocupações já foram exploradas nos seguintes artigos da autora: FRAZÃO, Ana. Mercados de reputação. O marketing 4.0 e o “vale tudo” para construir artificialmente reputações. Jota.https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercado-de-reputacao-14092022; FRAZÃO, Ana. PL das Fake News e a importância da transparência e responsabilidade. É preciso assegurar um fluxo informacional adequado para o mercado, o debate público e a própria democracia. Jota.https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/pl-das-fake-news-e-a-importancia-da-transparencia-e-responsabilidade-27042022.

[4] Várias dessas preocupações já foram exploradas nos seguintes artigos da autora: FRAZÁO, Ana. Regulação ou desregulação por evidências compradas. Reflexões a partir do livro “The Triumph of Doubt, de David Michaels. Jota.https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/regulacao-ou-desregulacao-por-evidencias-compradas-01112023; FRAZÃO. ANA. Existe um mercado de ideias? Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/existe-um-mercado-de-ideias-05082020

[5] FRAZÃO, Ana. A grande mídia como veículo de ortodoxia econômica. Editoriais de grandes jornais brasileiros diante do aumento do salário mínimo mostram o quanto o debate é simplista e sem espaço para a diversidade. Jota.https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-grande-midia-como-veiculo-da-ortodoxia-economica-30082023

[6]https://piaui.folha.uol.com.br/edicao/205/

[7] Por que o mercado anda nervoso com as recentes declarações de Lula? A Economia das Narrativas pode ajudar a entender o fenômeno. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/por-que-o-mercado-anda-nervoso-com-as-recentes-declaracoes-de-lula-30112022; Ainda sobre a reação do mercado às declarações de Lula. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/ainda-sobre-a-reacao-do-mercado-as-declaracoes-de-lula-07122022 

[8] Vale ressaltar que a reportagem esclarece que, de acordo com o BTG, não foi o banco que comprou a Exame, mas sim seus sócios controladores. Entretanto, conclui a reportagem que “é uma afirmação correta, mas a diferença, na prática, é apenas formal, pois os sócios do BTG são os únicos com poderes para decidir os rumos da revista.”

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