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Por que a tirania privada é tão perigosa quanto a tirania estatal

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Por que a tirania privada é tão perigosa quanto a tirania estatal?

Ana Frazão

Ana Frazão

28/02/2024

Embora muito se fale das ameaças que o Estado pode representar à liberdade dos indivíduos, pouco se fala do igual risco das ameaças feitas por agentes privados. Essa é uma primeira chave para entendermos os argumentos principais do excelente e recente livro de Sohrab Ahmari, cujo título já adianta o seu diagnóstico e o seu objetivo: Tyranny, Inc. How Private Power Crushed American Liberty – and What to do About It[1].

Coerção privada contra cidadãos comuns

Com efeito, o tema do livro é a coerção privada que agentes econômicos cada vez mais poderosos exercem em todas as dimensões contra os cidadãos comuns, notadamente nos mercados de trabalho e nos mercados de consumo. Como consequência, tem-se a subjugação cada vez maior de empregados e consumidores e a geração de uma causa estrutural de ansiedade para todos os que estão submetidos a esse poder.

Para Ahmari, é equivocada a premissa que atribui o problema da tirania somente ao Estado, enquanto se associa a ação privada apenas com méritos e virtudes, tais como dinamismo econômico, competição de mercado, escolhas individuais e espontaneidade. Ao contrário, a tirania privada também tem sido um problema concreto e, sob vários prismas, tem sido a responsável pela aniquilação das liberdades dos cidadãos e das próprias democracias.

Nesse ponto, é forçoso reconhecer que o argumento principal de Ahmari não é propriamente original. Autores com uma visão mais social, como Elizabeth Anderson[2], que é inclusive citada pelo autor, já haviam constatado os riscos da tirania privada nos mercados de trabalho, sob o argumento de que grandes empregadores conseguem implementar verdadeiros governos privados, que podem, sem qualquer accountability ou filtro democrático, interferir direta e abusivamente na vida de seus empregados em todas as dimensões – dentro e fora do ambiente do trabalho – inclusive por meio de expedição de ordens e aplicação de sanções.

Entre autores mais progressistas, também podem ser citados Acemoglu e Robinson[3], que também já alertaram para o problema da tirania privada, entendendo que não é razoável impor aos cidadãos que escolham entre a opressão do Estado ou a opressão de agentes econômicos. Como a nossa liberdade exige a ausência de coerção de ambos os lados, é fundamental encontrar um equilíbrio entre Estado e mercados, o que é representado pela figura do Estado algemado (the Shackled Leviathan), de forma que se imponham ao poder público restrições adequadas para impedi-lo de ser tirano, mas se lhes sejam atribuídos poderes suficientes para impedir que agentes privados sejam tiranos.

O que há de novo, na obra de Ahmari, é o fato de se tratar de uma crítica vinda de um conservador, que retoma as preocupações do liberalismo clássico quanto à necessidade de se resguardar a liberdade efetiva dos cidadãos, incluindo obviamente a classe média e a classe operária, que vêm sendo dominadas pelos donos do capital.

Para Ahmari, se os conflitos entre as classes são tão velhos como o são as sociedades humanas, a partir do momento em que o nosso sistema tende a mover esses conflitos da esfera pública para a esfera privada, deixam se ser aplicadas nossas expectativas de devido processo legal, freios e contrapesos e de deliberações democráticas, razão pela qual a tirania privada se alastra e se torna insuscetível de qualquer controle.

Para não ser acusado de explorar a questão em uma perspectiva estritamente teórica, Ahmari dedica a primeira parte do livro a uma série de aplicações e exemplos concretos de coerção privada que vêm se naturalizando e se tornando características do capitalismo atual. Entretanto, um dos seus principais focos de preocupação diz respeito aos mercados de trabalho.

Sobre o assunto, Ahmari faz uma crítica contundente a neoliberais que, como Friedman, só foram incapazes de perceber o quanto é fantasiosa a ideia de livres mercados porque ignoraram por completo as relações de poder ou entenderam, equivocadamente, que os poderes dos empregados podem ser equiparáveis aos dos grandes empregadores.

Coerção privada nos mercados de trabalho

Entretanto, a coerção privada nos mercados de trabalho tem sido a regra e uma das principais causas da precarização do trabalho, tanto no sentido mental como no sentido material, uma vez que décadas de neoliberalismo fizeram com que muito pouco na vida dos trabalhadores seja estável e seguro. Mais do que isso, inúmeras soluções, como a do trabalho intermitente, foram aplicadas como forma de maximização do controle sobre o trabalho, transferindo injustamente para os empregados os riscos e os custos relacionados às flutuações de demanda por parte dos consumidores.

Para além dos inúmeros casos de abusos e agressões a trabalhadores, Ahmari procura sintetizar as principais estratégias por meio das quais a coerção privada vem se concretizando nos mercados de trabalho, dentre as quais: (i) salários de fome, (ii) fixação de jornadas de trabalho sem preocupação com o bem estar dos trabalhadores (iii) regulação e censura do direito à livre expressão do pensamento por parte de empregados, dentro e fora do ambiente de trabalho, (iv) abusos de poder político, como obrigar empregados a comparecer a eventos políticos em favor dos candidatos de seus empregadores, (v) medidas contra a sindicalização, que vão da violência física a todos os tipos de ameaça, incluindo a coação de empregados para assistirem eventos ou palestras que buscam doutriná-los contra os sindicatos, e (vi) decisões que podem dramaticamente alterar a vida dos trabalhadores sem qualquer devido processo legal ou direito de contestação.

Mesmo diante de empregados mais qualificados, Ahmari mostra como a indústria da tirania se estrutura por meio de cláusulas abusivas que, a pretexto de manterem a confidencialidade de assuntos estratégicos e de supostos segredos empresariais, afetam consideravelmente as liberdades econômicas de tais empregados, não raro os impedindo de mudar de emprego, de se dedicar a atividades econômicas similares às da empresa e até mesmo de denunciar ilícitos que tenham ocorrido no ambiente corporativo.

É a partir de vários exemplos concretos que o autor procura demonstrar o quanto é utópica a visão de mercado baseada na equivocada premissa de que ninguém tem poder suficiente para dele abusar. Daí a dura crítica que Ahmari faz ao pensamento de neoliberais que, a exemplo de Hayek e Friedman, partiam da premissa de que os livres mercados não tinham espaço para a coerção.

Para Ahmari, Hayek e Friedman assentaram tais conclusões em uma pedra de toque extremamente frágil: a concorrência. Com efeito, para Hayek, a competição é o único método por meio do qual nossas atividades podem ser ajustadas às dos outros sem nenhuma autoridade coercitiva. Já para Friedman, a competição é um antídoto natural contra a coerção, já que mesmo consumidores e trabalhadores seriam protegidos contra abusos quando teriam outros potenciais empregadores ou fornecedores à sua disposição.

Entretanto, se é a competição o que possibilita, nas palavras de Friedman, que os mercados façam a sua “mágica”, o que dizer das inúmeras hipóteses de mercados em que não há propriamente competição, diante dos altíssimos grau de concentração empresarial?

Neoliberalismo

Daí por que, comprovadas as insuficiências do neoliberalismo, Ahmari propõe reflexões em prol de novas soluções. Para ele, a alternativa não é o socialismo, mas sim a social-democracia, como ocorreu na Europa e nos Estados Unidos durante o New Deal de Roosevelt.

Entretanto, Ahmari entende que é fundamental uma melhor compreensão de que o neoliberalismo, mais do que um mero sucessor da ideologia do laissez-faire, consiste em utopia ainda maior, na medida em que justifica a restauração do poder da classe dominante e, mais do que isso, transfigura o que significa pertencer a uma comunidade política e para que os Estados servem, restringindo consideravelmente o escopo destes para resistir ao poder econômico.

Para o autor, o neoliberalismo, como teoria e prática, procura não apenas liberar os mercados da política, mas sim transformar a política em si mesma em uma ferramenta de mercado e de neutralização de qualquer pretensão política que não se ajuste à lógica e às necessidades do capitalismo. Sob essa perspectiva, o neoliberalismo é ainda mais radical do que o laissez-faire, porque procura transformar o governo em um mero apêndice do poder econômico. Não se trata apenas de deixar o mercado sozinho, mas sim de instrumentalizar o Estado em favor do mercado.

Aproveitando-se das lições de Foucault, Ahmari concorda com o fato de que, enquanto o liberalismo clássico procurar limitar a regulação social do mercado, o neoliberalismo procura regular a sociedade pelo mercado, estando associado a fenômenos igualmente preocupantes, como o fortalecimento da economia financeira em relação a economia real, o enfraquecimento da indústria, o declínio dos sindicatos, a abertura de fronteiras e a circulação de capital.

De acordo com Ahmari, todos esses fenômenos têm como fio condutor o que ele chama de despolitização, ou seja, a tentativa sistemática de excluir as pessoas ordinárias do uso do poder político e da pressão no ambiente de trabalho a fim de que possam lutar por mais benefícios. E tudo isso é feito por meio da aceitação e da naturalização da coerção privada como uma questão de racionalidade de mercado, ignorando-se a sua verdadeira natureza: trata-se de uma escolha política, feita pelos ricos em seu próprio benefício e frequentemente às custas dos mais pobres.

Daí por que Ahmari considera que o neoliberalismo perpetua uma dominação de classe e ainda neutraliza a política, especialmente na sua função de resolver os conflitos de classe. Como define Wendy Brown, o que o neoliberalismo faz é estender a sua ideologia, as suas práticas e as suas métricas para todas as dimensões da vida humana, incluindo a política.

Consequentemente, Ahmari não aceita a tese de Hayek de que o neoliberalismo busca restaurar tradições ocidentais; pelo contrário, o caráter despolitizante do neoliberalismo representa uma ruptura radical não apenas com as referências medievais e clássicas da política, como também com a modernidade liberal pós-Iluminismo.

Essa utopia dos mercados busca isolar a atividade econômica da política, baseada na falsa premissa de que mercados são inerentemente não-coercitivos. Ocorre que, como a realidade aponta para cenário contrário, o neoliberalismo vem legitimando a tirania privada e minando a democracia.

Consequentemente, se o Estado Liberal clássico era indiferente à tirania privada e o Estado Social Democrático tentou controlá-la por diversos meios, inclusive por meio do empoderamento de empregados e outros atores de mercado mais fracos, o Estado Neoliberal tem se tornado cúmplice da tirania privada.

É por essa razão que Ahmari considera que o seu livro é uma defesa da política, que precisa ser utilizada para conter a coerção privada e romper a lógica atual, em que muita coerção é feita em nome da não coerção. A tirania privada é, portanto, uma crise política que requer uma solução política.

Dentre as inúmeras soluções propostas pelo autor, estão o empoderamento de empregados por meio do fortalecimento dos sindicatos e a assunção, pelo Estado, de um papel mais ativo na coordenação da atividade econômica em prol do bem-estar de toda a comunidade. Vale ressaltar, entretanto, que, para Ahmari, aumentar o poder compensatório dos trabalhadores é o elemento mais importante para a solução dos atuais problemas.

Só por essa razão já se mostra o quanto a leitura do livro é pertinente para o caso brasileiro, em que temos um Supremo Tribunal Federal (STF) totalmente capturado por uma ideologia liberal que, na prática, vem legitimando a tirania privada especialmente contra trabalhadores.

Entretanto, como procurei demonstrar nesse breve artigo, a coerção nos mercados de trabalho é apenas uma das diversas dimensões da tirania privada, razão pela qual existem muitas outras razões que justificam a leitura da obra, uma vez que ela nos propicia um diagnóstico coerente e lúcido sobre as características do capitalismo atual, conclamando-nos a pensar em soluções que efetivamente assegurem a liberdade dos cidadãos.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] AHMARI, Sohrab. Tyranny, Inc. How Private Power Crushed American Liberty – and What to do About It. New York: Forum Books, 2023.

[2] ANDERSON, Elizabeth. Private Government. How Employers Rule Our Lives (and Why We Don’t Talk about It). New Jersey: Princeton University Press, 2017.

[3] Ver FRAZÃO, Ana. ovas perspectivas para a regulação jurídica dos mercados – Parte VII. O que temos a aprender com o livro The Narrow Corridor. States, Societies and the Fate of Liberty, de Daron Acemoglu e James Robinson. Jota.https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/novas-perspectivas-para-a-regulacao-juridica-dos-mercados-parte-vii-15042020.

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