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O costume jurídico no Direito brasileiro, de Alípio Silveira
Revista Forense
07/05/2024
SUMÁRIO: I. Necessidade do costume jurídico. II. Requisitos do direito consuetudinário. As formas do costume em face da lei. III. Distinção entre costume jurídico, usos convencionais e usos sociais. IV. O costume no direito brasileiro. A questão do costume contra legem. V. Prova do costume. VI. O costume no Direito Comercial brasileiro. VII. O costume no Direito Civil brasileiro. VIII. O costume no Direito Internacional Público.
I. NECESSIDADE DO DIREITO CONSUETUDINÁRIO
A lei escrita, por mais que se desdobre em artigos e parágrafos, e por mais que se dilate, ás mãos do intérprete, o seu escopo e alcance, jamais poderá, abranger todos os casos que emergem da elaboração constante da vida e vêm pedir garantias ao direito.
Os próprios legisladores, previdentemente, colocaram nas mãos dos juízes os recursos para suprir as lacunas da legislação, e entra tais recursos figura o costume, ao lado da analogia e dos princípios gerais do direito.
O professor FILIPE CLEMENTE DE DIEGO justifica excelentemente, nas seguintes palavras, a necessidade de recorrer a lei ao costume:
“A natureza de algumas relações jurídicas mais influídas do que outras pelas circunstâncias de lugar e de tempo e classes de pessoas entre as quais surgem e se desenvolvem; a rapidez e freqüência com que podem alterar-se e modificar-se, sendo que estas mudanças não encontrem, de imediato, eco e satisfação na lei, por seu caráter permanente; a exigência da justiça e do direito, de ter em conta estas mutáveis circunstâncias de fato, para que tôdas as necessidades fiquem satisfeitas com exatidão, o que repugna que a coisas desiguais se aplique regra igual; são considerações que obrigam o legislador a não ditar preceito uniforme para todos os casos e a cingir-se parcial ou totalmente às circunstâncias, para o que, ou instaura a discrição judicial, ou remete aos costumes e aos prevalece no Cód. Civil espanhol. Um caminho teria para fugir dêstes extremos, e seria o de descer à casuística mais pormenorizada; mas com isso cairia em falta bem lamentável, e que tanto atenta contra o caráter sistemático o artístico das leis modernas. O legislador não pode tudo prever, não já por sua própria limitação ou fraqueza, mas pela exuberância da realidade. Ademais, os Códigos se fizeram para a vida; formam parte das elaborações sociais, e é bom que, longe de se fecharem, às inspirações da sociedade, mantenham suas portas abertas a elas. E uma das aberturas pela qual penetra o ar fresco da comunidade no seio das legislações codificadas é esta dos usos e costumes.”
“Em matéria de obras e distâncias intermediárias, por exemplo, como prescindir das exigências e necessidades impostas pela vida urbana, e também rural, tão variável de lugar para lugar, povoação para povoação, de Município para Município? Uma regra rígida e inflexível para todos, seria injusta; logo, ou há que desdobra-la e multiplica-la em casuística interminável, que afinal resultaria incompleta, ou há que entregá-la ao arbítrio judicial para que detida segundo as circunstâncias, ou ao que estas mesmas circunstâncias digam quando estão recolhidas pelos usos e costumes.”
“A flexibilidade que com estas invocações adquire a regra legal é indubitável e necessária, não já apenas conveniente, para o reinado da justiça; elas comunicam, com efeito, às normas, a elasticidade e a capacidade de adaptação suficientes para se amoldarem a tôdas as situações; são como injunções consuetudinárias e sociais, pelas quais se enxerta e penetra continuamente o espírito da sociedade naquelas relações que por natureza mudam com facilidade, temporal e localmente. É condição de vida e subsistência fecundas dos códigos, já que de outra sorte encontrariam dificuldades insuperáveis em sua aplicação, ocasionariam injustiças irremediáveis, quando não se tornassem bolorentas por desuso ou práticas contrárias”
(“Fuentes del Derecho Civil Español”, Madri, 1922, págs. 285-287).
Nesta mesma linha de pensamento, o professor GEORGES RÉNARD, depois de salientar que o costume, històricamente, precede a lei escrita, acrescenta oferecer êle tais méritos intrínsecos que não poderia ser inteiramente substituído por ela. E prossegue: “Quando a lei quer reprimir muito estreitamente as livres improvisações do costume, o costume faz saltar a lei: é um fato de experiência. O costume é direito vivo; êle representa ao mesmo tempo a tradição e o progresso, de todos os modos o movimento. A lei é uma túnica que é preciso muitas vêzes reajustar: ela se rompe, se não se intervier a tempo. A lei é uma audaciosa tentativa de domínio do presente sôbre o futuro: mas o futuro rompe os entraves, e as leis escritas são feridas de caducidade pelo costume. É um grave êrro dos tempos modernos o desdém do costume e o apêlo incessante ao legislador” (“Le Droit, l’Ordre et la Raison”, Sirey, 1927, pág. 11).
II. DEFINIÇÃO E REQUISITOS DO COSTUME JURÍDICO
O costume jurídico ou direito consuetudinário consiste em práticas uniformes, que constituem um modo geral de regular efetivamente uma dada relação da vida social, impôsto, em caso de controvérsia; pela autoridade do Estado.
Mais precisamente, pode êle definir-se: ordenação da razão (trate-se de razão intuitiva ou reflexiva), formada pelo uso constante e uniforme, geralmente reconhecida pela autoridade estatal, e tendo em vista os interêsses de um grupo maior ou menor da sociedade (tal é o costume local ou especial), ou de tôda ela (tal é o costume geral).
Vamos considerar separadamente os vários elementos essenciais do costume, acima referidos.
O costume é uma ordenação da razão, quer dizer, é uma norma obrigatória, da mesma forma que a lei escrita. Nisto se distingue dos usos sociais – cortesia, etiquêta, modas, certas tendências, tolerâncias, etc. etc. – que não são juridicamente obrigatórios.
A razão, tal como se manifesta nos costumes, poderá ser, quer a razão natural ou espontânea, a intuição (que alguns confundem, erradamente, a nosso ver, com o instinto), quer a reflexão, a razão raisonnante.
Em geral, surge o costume através da razão espontânea ou natural, e depois, ao expandir-se na sociedade e ao entrar em contato com os órgãos do Estado (Juntas Comerciais ou instituições análogas, Tribunais de Justiça, Tribunais Administrativos), passa êle a ser objeto de uma depuração efetuada pela razão refletida.
É verdade que muitos autores dão a primazia, nesta matéria, não à razão refletida, mas à razão natural, à intuição. Tal é o caso de VICENTE MICELLI (“Le Fonti del Diritto dal punto di vista psicho-sociale”, 1905, pág. 40).
FRANÇOIS GÉNY, provàvelmente indo longe de mais nesta direção, atribui o nascimento do costume jurídico a “uma espécie de instinto superior” (“Méthode d’Interprétation et Sources en Droit Privé Positif”, vol. I, págs. 319, 375 e 387).
O momento da reflexão é reputado por GÉNY apenas uma atividade de contrôle da existência do costume pelas decisões judiciais, e, segundo êle, êste momento não possui caráter pròpriamente formativo: as decisões judiciais não são indispensáveis ao estabelecimento do costume (ob. cit., vol. I, pág. 366).
Na verdade, o momento da reflexão na vida do costume é intenso e incoercível, quer nas Juntas Comerciais ao realizarem os assentos de costumes, quer nos Tribunais ao sentenciarem, devendo umas e outros atenderem à razoabilidade do costume e à opinio iuris das práticas em foco.
Tal momento é mesmo considerado como formador do costume, quer por uma parte da doutrina (a exemplo de MAX ERNST MAYER), quer por várias legislações, inclusive a nossa, a qual, no art. 260 do Cód. de Proc. Civil, estabelece que o costume comercial adquire fôrça de lei pelo seu registro na repartição respectiva, e no art. 262 determina que o juiz ou tribunal que julgar provado uso ou costume comercial remeterá cópia da decisão à repartição competente para ser registrada e arquivada. Êste registro confere, na forma do art. 260, fôrça de lei ao costume comercial apurado através da decisão judicial.
Porém, mesmo antes de penetrar naqueles laboratórios jurídicos mantidos pelo Estado, o costume, ainda que se conserve dentro de seu ambiente originário, não deixa de sofrer o influxo da reflexão, o que se observa especialmente na formação do costume comercial, o qual resulta, em geral, de uma série de esforços individuais, conscientes. Com efeito, o direito comercial brotou, por diferenciação do direito civil, de práticas costumeiras, as quais, por sua vez, resultaram das convenções dos interessados. E, através de reações e divergências, sob o impulso dos interesses, estabelece-se na vida social a observância progressiva, pacífica, de certos usos, que aos poucos, insensivelmente, vão adquirindo caráter obrigatório.
A importância do elemento político ou estatal na formação do costume, conforme a exposição acima já permite vislumbrar, é diversamente concebida pelos autores e legislações. Assim, segundo GÉNY, SUAREZ, JOAQUIM COSTA e outros, o momento político (que surge nas “Juntas Comerciais”, ao fazerem assentos, e nos Tribunais) não é essencial ao reconhecimento do costume, quer quando o legislador a êle se refere, quer quando o juiz o aplica ou a Junta o registra. Em outras palavras, para o professor de Nanci, a formação real do costume é devida à prática dos interessados.
Segundo a corrente oposta, chefiada por ÉDOUARD LAMBERT (“La Fonction du Droit Civil Comparé”, Paris, 1902), o costume só se forma por via judiciária.
Vejamos a exposição destas correntes, cujo alcance prático será adiante evidenciado, na magnífica obra de CLEMENTE DE DIEGO.
Uns querem encontrar a fonte do direito consuetudinário em um uso geral e prolongado dos particulares ligado à crença de que existe para êle uma sanção social (opinio necessitatis), e recusam à jurisprudência tôda função criadora do direito (GÉNY, BOISTEL). Outros, ao invés, apegam-se a esta e outorgam-lhe um papel preponderante ou único na elaboração do direito consuetudinário (LAMBERT).
PLANIOL, concorde com LAMBERT, não acredita na possibilidade do estabelecimento de regras consuetudinárias com valor obrigatório fora da jurisprudência. Que põem os adversários em lugar desta? Nada, na realidade. A consciência comum do povo da doutrina alemã é uma idéia mística que não pôde resistir a uma crítica penetrante, e cuja plena bancarrota revelam os trabalhos mais recentes. Por outro lado, não basta, no sentir de PLANIOL, para que haja um costume no sentido jurídico da palavra, a existência de um uso, por geral e antigo que seja. O costume é um direito consuetudinário. De onde poderá provir sua fôrça obrigatória? Dos particulares certamente que não, pois não têm autoridade para se imporem uns aos outros, e por numerosos que fôssem os que seguissem êsse uso, não poderiam impedir que deixassem de segui-lo os que assim achassem melhor por considerá-lo mau. Não se pode fundar o costume sôbre o consentimento dos interessados, incluídos os que são afetados por êle. Tôda regra de direito supõe uma vinculação, uma coerção; isto é, uma autoridade, uma vontade superior aos que a obedecem, e essa coerção não pode provir senão da lei ou do juiz.
A opinio iuris vel necessitatis, ou seja a crença na existência de uma sanção social, é uma quimera; é ocultar a dificuldade com o auxílio de uma fórmula abstrata; a crença não basta se a sanção não existe. Ademais, a natureza do Direito consuetudinário não é uma questão de opinião ou de sistema: é um fato que se verifica na História e está escrito no solo; a Geografia dos antigos costumes franceses concorda com os territórios em que exerciam sua função os Tribunais de Justiça, de modo que aquêles não eram outra coisa senão formações jurisprudenciais locais. Tomem-se os livros em que melhor se encontra explicado o antigo Direito consuetudinário francês, os “Costumes de Beauvaisis”, de PHILIPE DE BEAUMANOIR; o “Grand Coutumier de France”, de JACQUES D’ABLEIGES, e outros dos séculos XIII e XIV, e não se encontrará outra coisa nêles senão a indicação do que se julgava habitualmente em seu tempo, além de algumas regras tiradas ao Direito romano. Para êles, os usos seguidos pelos particulares não têm fôrça obrigatória; um uso é um simples fato que não adquire valor jurídico senão quando se torna um preceito obrigatório; isto é, quando vai acompanhado por uma sanção, e só se pode dizer que esta sanção não pode proceder, à falta de lei, senão da autoridade dos tribunais. Jamais se viu constituir-se Direito consuetudinário de outro modo. Como constatar de outra maneira a racionalidade do uso, condição essencial de sua existência e reconhecimento?
Até aqui PLANIOL, LAMBERT, em sua obra citada, consome algumas centenas de páginas na refutação da teoria romano-canônica do costume, contrastando com a História comparada das legislações sua tese relativa à origem jurisprudencial do Direito consuetudinário. Fazia séculos que a questão estava sôbre o tapête; já o espanhol SALAZAR o dizia claramente: “Addidit Glossa debere ditos duos actus sententia esse confirmatos ut consuetudo inducatur“; não obstante, êle se decide pela opinião contrária: “veruntamen, consuetudo non desiderat sententiam, absque ea fit moribus intervenientibus duntaxat“. Êste é também o parecer de BARTOLO, do abade GREGÓRIO LÓPEZ, SUAREZ, SOTO e outros muitos jurisconsultos espanhóis.
O argumento de SUÁREZ é incontestável e decisivo. Não há – diz êle – razão alguma natural que justifique a necessidade de uma sentença para a formação do costume, nem o Direito positivo nunca impôs semelhante condição. Ademais, para que interviesse ato judicial haveria que supor contradição em juízo; mas se nunca sobreveio tal contradição? Pode suceder que nunca se promova demanda desta índole, e, em tal, caso, o costume não poderia introduzir-se, o qual é contra tôda razão e contra todo direito. Por outro lado, se para a firmeza e validade do costume se requerem uma ou mais sentenças, antes de haver sido proferida a primeira delas não será ainda costume perfeito, porque faltar-lhe-á uma condição essencial, e, por conseguinte, não poderá ser declarado tal costume perfeito ou executivo nesta primeira sentença, nem válido nem lícito o fato realizado em virtude dela, nem induzir obrigação alguma, porque envolve êrro contra a verdade, tôda a vez que antes da sentença não era tal costume. Se, ao contrário, se pretender que com uma única sentença se manifesta perfeito o costume, já estava consumado e perfeito sem o concurso dessa sentença, porque esta não o aperfeiçoa, mas simplesmente declara seus têrmos.
Não é possível negar tôda intervenção nem desconhecer todo valor às sentenças judiciais no estabelecimento de costumes jurídicos, o que seria contrário à razão e à História, já que seu caráter declaratório e de prova não pode pôr-se em dúvida e até puderam iniciá-los, encaminhá-los e afiná-los, e ser seu mais claro e indubitável documento revelador, o que se comprova com os themistes gregos ou precedentes romanos e inglêses, ou os usatges catalães ou as fazañas castelhanas; mas daí a considerá-los como elementos constitutivos essenciais, vai uma distância imensa (“Fuentes del Derecho Civil Español”, págs. 253-257).
Como ficou acima salientado, segundo a opinião de GÉNY, o único elemento formador do costume é a prática dos interessados. Sua opinião peca por exclusivismo, assevera CLÓVIS BEVILÁQUA, mas é incontestável que não pode ser outra a origem de muitos costumes jurídicos. Acrescenta o saudoso civilista: “A comunhão de bens entre cônjuges, em algumas regiões de Portugal, estabeleceu-se como um uso geral, de modo que, mais tarde, quando o legislador deu forma legal ao instituto, se referiu ao costume do Reino. Ora, parece claro que tal costume se não podia ter constituído nem pela prática judiciária, nem pela doutrina dos escritores, e que antes resultou de uma transformação lenta de outros regimes segundo as aplicações que dêles iam fazendo os interessados” (“Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª ed., páginas 33-34).
O que sustenta a corrente de GÉNY é muito verdadeiro, mas não o é menos o fato – salientado pelo grande jurisconsulto espanhol RAFAEL ALTAMIRA, nestas palavras: Para que o direito costumeiro seja realmente exeqüível, a adesão dos que lhe são submetidos é insuficiente. O apoio do poder público é necessário (“Le Droit Coutumier espagnol moderne”, in “Récueil d’Etudes sur les Sources du Droit en l’honneur de François Gény”, vol. II, pág. 290).
Em nossa modesta opinião, é menor do que parece a incompatibilidade entre ambas as correntes. E isto porque o ciclo do costume na vida social nem sempre é uniforme. Com efeito, muitos casos há em que o costume de uma certa região mais ou menos extensa (por exemplo, o costume sôbre águas na chapada do Araripe, no Ceará) é observado mansa e pacificamente pelos interessados cuja prática foi justamente a origem dêle.
Porém, êste momento da vida do costume pode correr em branca nuvem como no caso acima figurado, mas também poderá sofrer o seu batismo de fogo, quando surge uma disputa e é levada aos tribunais. Com efeito, os legisladores e a doutrina exigem do costume um mínimo de requisito para que possa ser considerado válido. Entre tais requisitos se destacam: não ser contrário a lei alguma, ter longa duração, e ser razoável. Se o tribunal, ao qual fôr submetida a disputa, julgar o costume carecedor de qualquer dêsses requisitos, fica êle pôsto à margem das normas jurídicas admitidas pelo Estado.
Uma vez estudado o costume em seu elemento constitutivo – ordenação da razão – e considerada a questão do seu reconhecimento pelo poder público, pela autoridade estatal, passemos ao estudo de outro requisito – o uso constante e uniforme.
O uso constante, uniforme e prolongado é, como bem o disse GÉNY (ob. citada, I, pág. 343), a forma essencial da existência do costume, assumindo, dêste modo, o caráter de elemento essencial.
Êste é o chamado requisito externo. Para que êle exista, é preciso que se trate de uma repetição uniforme e constante, isto é, que em idênticas circunstâncias sempre se aja do mesmo modo; é preciso que se trate de uma repetição geral por parte dos interessados.
Observa o professor RECASÉNS SICHES, quanto a êste requisito, que o conceito de duração é muito relativo, já que o maior ou menor número de repetições depende da índole da relação; pois há atos, por exemplo a talha das árvores de uma floresta, que, por sua natureza, só podem realizar-se a grandes intervalos, caso em que um pequeno número de repetições será suficiente para demonstrar uma prática uniforme. O que importa é que o costume constitua a expressão de um convencimento efetivo da coletividade (“Vida Humana, Sociedad y Derecho”, 2ª ed., pág. 283).
Ainda a respeito da duração, ensina o professor NICOLA COVIELLO:
“O tempo de uso é variável segundo a convicção do magistrado, o qual deve fundar-se sôbre o critério de que o período de tempo deve ser tal que faça razoàvelmente induzir que a prática tenha lançado profundas raízes na vida social, e assim adquirido uma autoridade indiscutível” (“Manuale di Diritto Civile Italiano”, Parte Geral, § 16).
Êste elemento essencial do costume – a repetição – é apenas o sinal seguro de que o assentimento àquela prática, fundada em fins de segurança social e justiça, ou seja, fundada nos interêsses sociais, é um assentimento generalizado. É êle, assim, o símbolo material de uma realidade espiritual. Mas há, além disso, uma interação entre êstes dois elementos – o material e o espiritual. Com, efeito, o fato da repetição poderá, por si só, fortificar o elemento espiritual já contido em germe na prática, pois a simples repetição cria uma situação que deve ser mantida em benefício da segurança e da certeza da sociedade, elementos básicos desta última.
Como já foi visto, é difícil precisar a duração do uso para que se constitua o costume. Algumas legislações, como a nossa de antigamente, fixavam prazos certos – 100 anos ou 50 anos – para que os usos se tornassem, costumes jurídicos. Mas êsse requisito era, de verificação prática pouco menos que impossível, pois não se sabia quando se deveria começar a contar o prazo da lei, uma vez que a primeira prática ainda não é um costume. E o resultado dessa impossibilidade é que hoje, conforme ensina CLÓVIS BEVILÁQUA, esta exigência do prazo fixo é posta margem, exigindo-se apenas um, uso uniforme e prolongado (“Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª ed., pág. 35, e “Código Civil Comentado”, 4ª ed., vol. I, pág. 104).
*
Estudado o requisito do uso uniforme, constante e prolongado, passemos ao outro requisito – elemento de natureza espiritual – que apresenta variações no modo de ser concebido pelos autores.
Na verdade, os modernos juristas admitem que o costume apresenta dois requisitos: um material, o uso uniforme, constante e prolongado; e outro espiritual (não dizemos subjetivo porque êste adjetivo peca por inexatidão no caso). Êste elemento espiritual consiste na convicção de que a norma estabelecida funciona como lei, pela necessidade, que há, de regulamentar o caso, a que ela se refere, pelo modo nela estabelecido. E geralmente denominado opinio iuris ou opinio necessitatis.
É preciso, porém, esclarecer que existem outras teorias sôbre êstes dois elementos do costume.
No que toca ao valor e importância relativa dos dois elementos formadores do costume, – o uso ou repetição e a convicção geral (isto é, comum ao grupo dos interessados) da necessidade de agir de certo modo (opinio necessitatis), – as opiniões estão profundamente divididas em três correntes.
Alguns, pertencentes à primeira, sustentam que apenas a convicção é essencial, mas a repetição é acidental (SAVIGNY, THOL, etc.). Esta teoria, em decadência desde o comêço do século, sofreu uma efêmera revivescência no nacional-socialismo, com suas teorias de que o fundamento do direito reside no espírito do povo alemão, interpretado pelo Führer.
A segunda corrente opina que apenas a repetição é essencial, sendo a convicção um elemento acidental (BLUNTSCHLI, ZITTELMANN, etc.).
A terceira corrente sustenta que tanto a repetição como a convicção são essenciais, mas seus adeptos divergem sôbre a relação entre êsses elementos. Uns sustentam a relativa independência dos dois elementos, pois, conforme os casos, pode surgir às vêzes primeiro a repetição, e depois a convicção; outras vêzes, dá-se o inverso.
Outros, ao invés, opinam que é a repetição dos atos que produz a convicção de que tal prática deve ser considerada juridicamente obrigatória. Assim, WALTER JELLINEK pretende que, para o costume, a regularidade de fato na conduta dos homens é o elemento primário, e é ela que gera sua convicção de que se devem conduzir assim. E isto se dá em virtude de sua fôrça normativa: o fato de que, nestas circunstâncias, as pessoas se comportam sempre assim fêz nascer entre os membros dêste grupo a convicção de que se devem comportar dêste modo.
Esta teoria é insuficiente, pois é preciso ainda explicar quais são as causas que produziram o fato de que é precisamente esta conduta, e não algum outro modo de agir, que é atualmente observada nestas circunstâncias.
Quanto a nós, propendemos para a terceira corrente, mas divergimos de ambas as variantes acima expostas. O costume não se forma pela justaposição mecânica dos dois elementos. Êstes, na realidade, se influenciam reciprocamente, com o predomínio inicial ora de um, ora de outro, resultando dai duas formas para a geração do costume. Na primeira delas, o ato é praticado, já de início, com a convicção da sua necessidade jurídica, sendo que esta última resulta do sentimento de justiça ou da exigência de segurança nas relações sociais. Na outra forma, o ato é inicialmente praticado sem a convicção da necessidade, convicção essa que surge como um resultado da repetição, como um fator de segurança das relações. Com efeito, essa prática, incorporando-se à vida social de determinado meio, torna-se um elemento de estabilidade e de segurança social, do qual surge a opinio necessitatis.
Eis como o professor CLEMENTE DE DIEGO (ob. cit.) explana esta matéria. De um modo geral, as teorias sôbre o costume dividem-se em monistas e dualistas.
Nas teorias monistas, o fundamento ou requisito essencial do costume é um só. Para um dos ramos desta teoria, deriva o costume de uma elaboração da consciência coletiva, do espírito do povo. O uso, os atos repetidos (o costume pròpriamente tal), o exercício, são, para essa teoria, apenas aplicação de um direito já existente, e têm, respeito a êle, o valor de um puro testemunho ou de prova. Êste ramo da teoria monista é representado por SAVIGNY, THOL, GERBER, DAHN, STOBBE, PUCHTA.
Para o outro ramo da teoria monista, representado por WALTER BLUNTSCHLI, ZITTELMANN, DERNBURG, é o costume engendrado pelos atos repetidos.
Para a teoria dualista, seguida por STARL, WACHTER, UNGER, WINDSCHEID, DESELER. GOLDSCHMIDT, REGELSBERGER, STURM, GIERKE, o fundamento do costume é duplo: a convicção jurídica, por um lado, e a sua manifestação pelos atos ou pelo uso. Ambos elementos são necessários, e os dois juntos, representando cada um o aspecto interno e o externo, integram o processo total da formação do Direito consuetudinário. Uma convicção jurídica não declarada pelo uso, exercício ou atos repetidos, é como lei não promulgada nem publicada: um novo estado interno que não pode ter a força de norma exteriormente obrigatória. O uso, porém, deve mostrar-se como atuação de uma regra que, como regra de Direito, é recebida e representada.
A relação entre êstes elementos, ademais, é muito desigual. Bem pode suceder que uma convição jurídica, fortemente arraigada na consciência, se abra ràpidamente caminho da vida social com fôrça incontrastável, e, ao invés, pode acontecer que um uso a princípio voluntário, a cujo respeito a consciência jurídica se mantém indiferente ou fria, produza com o tempo uma convicção geral. Que o processo se inicie e se desenvolva principalmente de dentro para fora ou de fora para dentro, é indiferente para o Direito consuetudinário, uma vez que existam aquêles elementos essenciais à sua existência (“Fuentes”, cit., págs. 247-249).
Os juristas brasileiros seguem, sem discrepâncias, a teoria dualista do costume.
Um grande jurista moderno, CONTARDO FERRINI, repele o requisito da opinio iuris, parecendo limitar-se ao uso prolongado, geral e uniforme, e assim filiar-se-ia às doutrinas monistas. Porém, como veremos, o requisito espiritual reponta iniludìvelmente em suas idéias, quer ao afirmar que o uso não é um fim em si, quer ao admitir o requisito da razoabilidade.
Como estas discussões teóricas não deixam de apresentar interêsse para o aplicador do direito, uma vez que o direito brasileiro contemporâneo é omisso sôbre os requisitos do costume, entregues à elaboração doutrinária, vamos examinar a doutrina de FERRINI, que escreve a respeito:
“A parte verdadeira da teoria de ZITTELMANN está no ter acentuado a importância do uso, do exercício em si e por si. Aliás, êste mérito não é novo. Já outros tinham visto que era o uso, por si próprio, a razão do vigor jurídico do costume. Tal doutrina era conhecida também de PUCHTA (“Gewonhnheis trecht”, II, 9; cf. de resto ZITTELMANN, pág. 464), que a apoda de “irracional e desesperada”, “incompreensível”, já que, em sua opinião, o exercício isoladamente considerado “é um fato inane, sem espírito, sem um verdadeiro pensamento que o vivifique”. E talvez PUCHTA tenha razão, se o exercício fôr considerado como fim em si, e não como ligado aos interêsses e aos fins gerais da ordem jurídica. O costume por si próprio é um modo, pelo qual efetivamente se regulam algumas relações entre os membros da sociedade. A ordem jurídica, que visa à tutela dos interêsses razoáveis e da tranqüilidade geral, não pode, sem fugir ao seu escopo, desprezar esta regulamentação que de fato se veio introduzindo; ao contrário, quando ela tenha realmente penetrado no uso geral, quando muitos interêsses se ligam a êle, quando a sua verossímil aplicação entrou nas previsões dos membros da sociedade, isso deve convertê-lo em regulamentação jurídica, elevá-lo a norma juridicamente obrigatória” (“Consuetudine”, na “Enciclopedia Giuridica Italiana”, vol. III, parte III, nº 9).
Ressalta, da exposição de FERRINI, que o exercício, elemento do costume, não é um fim em si, mas deve considerar-se como ligado aos interêsses e aos fins gerais da ordem jurídica. Evidentemente, dentro dêstes interêsses e fins gerais, se enquadram os interêsses das partes que adotam as práticas costumeiras.
Na verdade, a norma consuetudinária ou costume jurídico é simplesmente impensável sem êsse elemento finalista. Veremos, mais adiante, com detalhes, os fins a que visa o costume jurídico, e que são os mesmos que visa o direito em geral – segurança das relações, utilidade comum, idéia de justiça.
Prossigamos, porém, na exposição de FERRINI, que, ao estudar os requisitos de um costume válido (ob. cit., nº 10), repele, de início, a chamada opinio necessitatis, escudando-se, para tanto, nos argumentos acima reproduzidos:
“Naturalmente, como aparece das coisas acima expostas, nós repelimos o requisito da assim chamada opinio necessitatis: isto é, que os interessados se tenham determinado a agir de um certo modo, pela persuasão que êle fôsse juridicamente necessário. É de fato indiferente qual seja a opinião, segundo a qual agem os interessados, a fim de que se constitua aquela efetiva regulação das relações, de que tínhamos falado”.
E, pouco adiante, acrescenta:
“É necessário advertir, antes de tudo (cf. ZITTELMANN), que existe um certo número de normas jurídicas consuetudiárias, cujo conteúdo é de fato indiferente respeito à justiça ideal, p. ex., um costume relativo ao número de testemunhas (de solenidade) em um negócio jurídico, ou a outras formalidades extrínsecas semelhantes. Já que um postulado da justiça ideal pode ser que o ato importante seja circulando de garantias de sinceridade de certeza; mas nunca tal postulado poderá significar que tais garantias se devam configurar dum ou doutro modo. E o mesmo se diga dos têrmos da prescrição e de outras importantes normas, que poderão ser objeto de costume. Se então considerarmos os costumes, que hoje têm especialmente valor prático, e são aquêles em matéria de águas, de locações e de usos comerciais, verificaremos que êles pertencem em sua maioria a tal categoria. Percorra-se qualquer coletânea de usos publicada por alguma das nossas Câmaras de Comércio, e ver-se-á se não digo a verdade. Ora, para explicar tais casos deve-se recorrer – e de fato se recorreu – a uma explicação diversa. Já SAVIGNY (“System”, I, págs. 35-37) diz que, aqui, não é a convicção jurídica que se exterioriza no uso, mas é, ao invés, o uso, que produz a convicção jurídica. Substancialmente assim também BESELER (“Volksrecht”, págs. 76 e segs.) e WINDSCHEID (I, § 315, nº 2). Mas, se não erro, esta explicação arruína tôda aquela teoria. Por que gera o uso a convicção jurídica? Se esta se reduz a admitir que o que é, tem razão de ser, que o fato constante deve ser respeitado, quem não vê que por seu lado esta convicção não se explicaria senão admitindo uma fôrça, uma eficácia própria do uso, do fato? Por que tal eficácia? Não somos assim reconduzidos aos próprios inícios do problema?”.
Duas observações faremos à exposição de FERRINI. Em primeiro lugar, é fora de dúvida que o uso, ligado à estabilidade e segurança das relações, não deixa de ser um poderoso fator para a geração da juridicidade do costume.
Por outro lado, quanto aos costumes que, segundo FERRINI, não têm que ver com a justiça ideal, não compartilhamos de sua opinião, de que aí não existe a opinio necessitatis. Para nós, ela não deixa de existir, mas se gera de modo diferente, pelas exigências da segurança e da certeza das relações.
Como mostram GUSTAV RADBRUCH e RECASÉNS SICHES, muitas regras jurídicas, como as de circulação policial, cujo conteúdo não tem relação com a justiça ideal, se geram pela necessidade de regulamentar uma certa relação, isto é, pela necessidade de existir a respeito uma regra certa, isto é, pela necessidade de segurança e estabilidade nas relações sociais.
Tal é o que acontece com aquela categoria de costumes a que FERRINI se refere.
E, uma vez iniciada a prática, ela, por um mecanismo que se assemelha ao da reação em cadeia dos elementos atômicos explosivos, vai intensificar a opinio necessitatis que a gerou.
Esta, com efeito, não surge armada e completa, como Minerva da cabeça de Júpiter, mas sim, muito tênue, e depois cresce extraordinàriamente com a repetição. Isto se explica porque a repetição ou o uso criam uma situação de estabilidade dos interêsses abrigados à sombra da norma inicial.
E assim se explica melhor o que nós dissemos atrás, isto é, que não há uma justaposição mecânica entre os dois elementos do costume – uso e opinio necessitatis – mas sim uma união viva, caraterizada por uma interação: a opinio necessitatis gera o uso, mas o uso, por sua vez, fortifica, desenvolve e expande entre todos os interessados a opinio necessitatis. E isto é verdadeiro, quer se trate da opinio necessitatis fundada nas exigências da certeza e da segurança, quer daquela fundada nas exigências da justiça e da utilidade comum.
Acrescentemos que FERRINI, ao referir-se à exigência de um uso geral, radicado e uniforme, também requer que êle seja razoável, isto é, não encerre uma verdadeira contradição à ordem pública e aos bons costumes.
Ao contrário de FERRINI, os dualistas, com GÉNY à frente, consideram a opinio necessitatis como elemento especificamente característico do costume jurídico, e o único, que o distingue dos hábitos do mundo, de tôdos êstes múltiplos usos da vida, aos quais não se poderia, em nenhum grau, reconhecer fôrça jurídica obrigatória (GÉNY, ob. cit., volume I, pág. 361).
Será possível conciliar êsses pontos de vista aparentemente antagônicos? Pensamos que sim. O costume, em nossa opinião, além do elemento externo da repetição, do uso constante, apresenta, sem dúvida, outro elemento interno ou espiritual. O próprio FERRINI o reconhece, ao escrever que “talvez PUCHTA tenha razão, se o exercício se considerar como fim em si, não como ligado aos interêsses e aos fins gerais da ordem jurídica”. Em outras palavras, FERRINI reconhece que êsse exercício, essa repetição, estão ligados aos interêsses e fins gerais da ordem jurídica, isto é, à própria razão jurídica. Pouco importa a circunstância de que tais fins sejam mais ou menos obscuramente sentidos pelos interessados, que apenas visam satisfazer fins econômicos ou fins empíricos.
Não é possível, na verdade, recusar finalidade ao costume. Trata-se de uma impossibilidade prática, começando mesmo por ser uma contradição nos têrmos. A prática de um determinado ato, presumindo a escolha pela sua aceitação e a rejeição de outro modo de praticá-lo, só é possível havendo alguma coisa a realizar, algum objetivo, alguma finalidade.
Por outro lado, a opinio necessitatis, tal como GÉNY a concebe, também não apresenta um caráter reflexivo na mente dos interessados, pois é um leit motif do professor de Nanei que o costume é um fenômeno espontâneo e de formação inconsciente (ob. cit., I, págs. 319, 375, 387).
Desta forma, bem analisadas as coisas, os fins gerais da ordem jurídica, a que se refere FERRINI, e a opinio necessitatis a que aludem os dualistas, são apenas uma e a mesma coisa – a nota de juridicidade essencial ao costume – considerada em seus diferentes aspectos: a feição ideológica, por FERRINI, e a feição coercitiva, por GÉNY. A opinio necessitatis necessàriamente se refere às idéias de segurança social, de justiça e utilidade comum.
Evidentemente, os fins gerais da ordem jurídica (que em breve examinaremos) pressupõem a tendência à coercividade.
Vamos sintetizar, ou melhor, estabelecer conclusões sôbre a opinio necessitatis. A opinio necessitatis existe, em grau mínimo, desde o início da repetição dos atos. E, com a repetição, ela vai se intensificando. Se assim não fôsse, isto é, se o uso gerador do costume jurídico não tivesse, desde o início, certa juridicidade, teríamos de chegar à conclusão de que qualquer uso social se transformaria em costume juridicamente obrigatório, sòmente pela fôrça da repetição. Esta conclusão é absurda, pois existem numerosos usos sociais (moda, etiquêta, cortesia…) que nunca se transformam em costume jurídico.
Que a opinio necessitatis se baseie no fator segurança, sendo de notar que o simples estabelecimento de uma regra já é imposição dêste fator; ou se funde no sentimento de justiça que inspira a regra, ou ainda na idéia de utilidade comum; ou, afinal, que se firme em todos êstes elementos, não importa.
O simples uso interpretativo (uso convencional), baseado em cláusulas de estilo, já encerra algo de juridicidade, pois se supõe que é devido à necessidade de haver um modo uniforme de resolver negócio, ou então que é inspirado pelo sentimento de justiça e pela utilidade comum.
A repetição constante, uniforme e pacífica de uma certa prática, vem fortificar a segurança das relações, que é um valor jurídico. Quanto ao fato de saber se uma determinada prática está ligada de modo intimo à segurança das relações, isto é, se tal prática é transformável em costume jurídico, só a experiência da vida, e não fórmulas apriorísticas, poderá fornecer aquêle quid de juridicidade essencial ao direito consuetudinário.
Para terminarmos essa análise, acrescentemos que RAFAEL ALTAMIRA, notável autoridade na matéria, afirma que o elemento opinio juris vel necessitatis resulta geralmente da própria racionalidade da regra em causa (ob. cit., pág. 289). Em face do que acabamos de expor, é isto verdadeiro, pois ALTAMIRA, ao empregar o têrmo “geralmente”, não exclui outros fatôres, entre os quais avultam aquêles que acabamos de examinar.
Quando de início definimos o costume, vimos ser êle uma ordenação da razão, formada pelo uso constante e uniforme, geralmente reconhecida pela autoridade estatal, e tendo em vista os interêsses de um grupo maior ou menor da sociedade, ou de tôda ela.
Em nossa definição não figura, aparentemente, a opinio necessitatis, mas agora é possível mostrar que ela está incluída, quer no caráter ordenatório do costume (elemento coercivo do direito), quer no fato de visar êle satisfazer interêsses e fins da ordem jurídica (elemento ideológico do direito).
Os interêsses práticos imediatos visados pelos interessados, e que em si já são verdadeiros fins, estão ligados a outros interêsses superiores, mais ou menos claramente sentidos pelos interessados. Tais interêsses e fins superiores da ordem jurídica são: a segurança, estabilidade e certeza das relações sociais, ou seja a utilidade comum, e a idéia de justiça, a qual é aferida especialmente pela racionalidade da norma costumeira.
Nos costumes avulta singularmente o elemento da segurança e da estabilidade, pôsto em relêvo, quer por C. FERRINI (vide supra), quer por GÉNY, o qual também se refere ao elemento justiça.
Escreve GÉNY: “De um lado, a segurança indispensável aos interêsses privados, e a estabilidade necessária dos direitos individuais, não menos do que a necessidade de igualdade, que constitui o fundo de tôda justiça, exigem que uma regra, acreditada por um longo uso, com o caráter de obrigação jurídica, se imponha, com fôrça de lei, de moda a guiar, sem hesitação, a atividade de todos (“Méthode”, I, pág. 345; id., páginas 362 e 372).
A extraordinária importância do elemento de segurança jurídica é descrita com singular vigor pelo professor FERNANDO DE LOS RIOS:
“Para o Direito, segundo RADBRUCH, “para a ordem jurídica, há um problema constante e de valor absoluto: o ideal de justiça; mas na realidade do viver êle não se obtém, pois, embora vá o Direito ensaiando e excogitando meios com que realizar êsse fim supremo, o que consegue de contínuo é a segurança, a certeza de uma situação para cada qual; essa segurança é em si mesma um bem cultural que só o Direito proporciona, e se nem sempre é essencialmente justa, sempre foi ideada em vista de uma apreciação da justiça” (Prólogo à “Introducción a la Ciencia del Derecho”, de GUSTAVO RADBRUCH, págs. XIV-XV).
O professor LUÍS RECASÉNS SICHES, ao estudar as características do direito, expende noções de grande relevância para o direito consuetudinário. Depois de salientar que a nota de imposição inexorável é a característica essencial do jurídico (e outro não é o sentido da decantada opinio necessitatis em matéria de costume), passa êle a mostrar que esta impositividade inexorável está ligada à segurança da vida social, nas seguintes palavras:
“Certo que no Direito devem encarnar-se valores superiores, como o de justiça; certo que o Direito deve ser o veículo de realização de tais valores na vida social; certo que o Direito não estará justificado senão na medida em que servir aos referidos valores; mas é certo também que o Direito não surge primeiramente como mero exercício de devoção a êstes valores de ordem superior, mas ao impulso de uma urgência de segurança” (ob. cit., pág. 209).
E acrescenta: “A segurança é o motivo radical ou a razão de ser do Direito; mas não é seu fim supremo. Êste consiste na realização de valores de ordem superior. Certamente, a segurança é também um valor, mas em relação à justiça é um valor inferior. Pois bem, recorde-se que a realização dos valores inferiores condiciona a possibilidade de realização dos superiores.”
“Assim, pois, encontramos na segurança o sentido funcional do Direito. E êste sentido funcional é um ingrediente da essência do jurídico” (ob. cit., página 215).
Frisa RECASÉNS SICHES que a análise do conceito de Direito Positivo mostra-nos que no mesmo se postula necessàriamente um ideal de justiça – independentemente de que o encarne ou não. Se riscássemos a alusão a um ideal de justiça, o conceito de Direito positivo resultaria irrealizável. Sem a referência intencional a um princípio de justiça não poderia existir o Direito Positivo.
Conclui êle, ao confrontar os dois valores primaciais que inspiram todo o Direito Positivo – justiça e segurança que a segurança é uma condição indispensável à realização da justiça, e o simples fato de haver uma norma positiva já implica a realização da segurança. Uma vez que tal norma também consiga realizar plenamente a justiça, a segurança, que por si só se apresenta como uma pura ordem formal, adquire plenitude de sentido e se enche do mais alto conteúdo de valor”.
Êstes ensinamentos se projetam, com uma fidelidade de decalque, ao campo prático do costume jurídico. Com efeito, o costume jurídico, por si próprio, satisfaz à idéia de segurança. Mas, além disso, surge o esfôrço consciente e refletido, no sentido de fazer com que êle se conforme à idéia de justiça. Êsse esfôrço se concretiza na exigência da razoabilidade, requerida pela doutrina (cf. GÉNY, ob. cit., I, pág. 371; FERRINI, ob. cit.) e por várias legislações, a exemplo da portuguêsa, com a “Lei da Boa Razão”. Exigia essa lei que os costumes fôssem conformes à boa razão, que constitui o espírito das leis, passando em seguida a definir, detalhadamente, o que entendia por “boa razão”, mas de forma pouco precisa e muito complicada, no sentir da crítica moderna (v. PAULO DE LACERDA, “Manual do Código Civil”, vol. I, e VALDEMAR FERREIRA, “Curso de Direito Comercial”, vol. I, pág. 79).
Vejamos o que hoje em dia significa a razoabilidade do costume, no ensinamento de FERRINI. Depois de mostrar êle (nº 10) como de uma passagem do Digesto se extraiu a exigência de que o costume deve ser razoável, prossegue:
“A nova escola geralmente sustenta que isto não seja verdadeiro, senão com uma dupla restrição: que se trate de costumes particulares e que por “irracionalidade” se deve entender, não uma mera inoportunidade, mas uma verdadeira contradição à ordem pública ou aos bons costumes. Quanto à segunda restrição (repulsa ao critério da simples oportunidade), estamos de acôrdo, pois basta pensar no gravíssimo perigo em que se incorreria deixando liberdade ao juiz para pronunciar-se a respeito da oportunidade de um costume; pense-se, aliás, nas razões por nós aduzidas para a validade do costume. Alguns entendem aqui por ratio o direito natural ou a lei moral. Ora, eu não creio que tal seja a verdadeira interpretação; é certo, porém, que ratio indica a ordem fundamental, as exigências fundamentais do sistema ético ou jurídico. Mas não me parece, entretanto, fundada a primeira restrição. WINDSCHEID diz: “Um direito consuetudinário geral encerra sempre, seja qual fôr seu conteúdo, a razão do povo e assim o seu direito”, mas esta proposição não é senão uma conseqüência da já refutada teoria do autor acêrca da essência do direito consuetudinário. O costume não é, em si, senão uma série de atos uniformes, os quais constituem um modo geral de regular efetivamente uma dada relação. É pouco provável que um hábito tão geral de operar chegue a lesar os princípios fundamentais do ordenamento ético; mas de semelhantes fatos há memória junto a povos antigos e nada impede que até hoje se possam manifestar”.
GÉNY (ob. cit., I, págs. 371-373) também sustenta que um uso (ainda que apresentando os caracteres essenciais do costume obrigatório), uma vez que se choque contra certos princípios superiores, que estão na base da organização social, não deve ser considerado válido. Entre êstes princípios superiores, enumera GÉNY: a moral universal, os princípios mais depurados, que são o fundo de nossa civilização cristã, e ainda as bases essenciais da organização política ou social.
Se alguns dão grande importância ao critério da razoabilidade, outros, como CLÓVIS BEVILÁQUA, o dispensam, limitando-se a estabelecer que o costume deve resultar de um uso prolongado, fundar-se na opinio necessitatis, e não ser contrário a lei alguma. Quanto a êste último requisito, será estudado em seção à parte.
A lei comercial brasileira exige que os usos e costumes sejam conformes à boa-fé e máximas comerciais, isto é, que sejam conformes à razão jurídica, além de não poderem ser contrários a lei alguma. A exigência de uma duração mínima de 50 anos considera-se como inexistente, bastando que se trate de um uso uniforme e prolongado.
É na apreciação da razoabilidade do costume que os órgãos do Estado – Juntas Comerciais, Tribunais de Justiça – concorrem com sua parcela para a formação do costume. Também quando apreciam a opinio iuris, os tribunais gozam de certo poder, quase criador, uma vez que, na confissão de GÉNY, tal condição, imaterial e psicológica, tem um diagnóstico, infinitamente delicado e sutil (“Méthode”, I, pág. 360).
Êste caráter impreciso da opinio necessitatis pode conduzir a abusos por parte das Juntas Comerciais e órgãos semelhantes, denunciados por ALFREDO ROCCO, nestas palavras:
“Uma advertência importante que deve fazer-se acêrca da apreciação de todos êstes meios de conhecimento indireto do uso ou do costume (de resto, os mais freqüentemente usados e muitas vêzes até os únicos possíveis), é a de que o juiz deve proceder com grande cautela na aceitação dos seus resultados. Ainda os meios que pareceriam os mais atendíveis, muitas vêzes o são muito pouco ou não o são nada.”
“Assim, por exemplo, acontece com as Coleções das Câmaras de Comércio, já acima referidas. Com efeito, estas Câmaras, interpretando mal a lei que lhes comete o encargo de colecionar e publicar os usos e costumes existentes, arrogam-se muitas vêzes o direito não já apenas de constatar os usos existentes, mas ainda de ditar e criar normas que pretendem impor como normas consuetudinárias. Ora, as Câmaras Comerciais não têm esta faculdade de criar normas – jurídicas. Deve-se, portanto, a respeito – destas coleções, usar de uma severa crítica, a fim de distinguir as normas que representam verdadeiros usos, daquelas que são simples criações arbitrárias das próprias Câmaras” (“Princípios de Direito Comercial”, Parte Geral, trad. portuguêsa, pág. 150).
Por outro lado, como já observara CARVALHO DE MENDONÇA, muitos dos assentos entre nós compilados são contra a lei.
AS FORMAS DO COSTUME EM FACE DA LEI
O costume jurídico, ou costume pròpriamente dito, tem fôrça de lei. Quanto ao fundamento dessa obrigatoriedade, ou seja, a causa da coercibilidade, é êle o mesmo que para o direito positivo em geral. Épocas houve em que o direito costumeiro era fonte quase exclusiva do direito, e além disso tinha fôrça considerável, podendo mesmo revogar a lei.1 Foi êste último fenômeno que sucedeu no absolutismo português, antes da Lei da Boa Razão, a qual passou a exigir, como requisito essencial, que o costume não fôsse contrário a lei alguma (BORGES CARNEIRO, “Direito Civil de Portugal”, vol. I, pág. 49, nota 2).
Mas no domínio do Direito Internacional Público, o costume ainda mantém acentuada supremacia sôbre as formas legisferantes estatais.
Porém, com o surgir de um duplo fenômeno, – aquêle político-social do liberalismo do século XVIII, ligado ao fetichismo da lei escrita, e aquêle jurídico das codificações, – a importância do costume, em face da lei escrita, decresceu muito, e só em medida mais ou menos limitada figura êle hoje no direito privado das nações modernas. Todavia, em um ramo jurídico, o Direito Comercial, ainda desfruta êle prestígio que se pode denominar considerável.
O costume pròpriamente dita divide-se em:
1º) Costume secundum legem. Êle se apresenta sob duas formas. A primeira surge quando se trata de costume ao qual a própria lei se refere em dispositivos casuísticos; essa forma é justamente denominada “costume casuístico” pelo grande especialista RAFAEL ALTAMIRA, e dá-se quando a lei remete a regulamentação de certos pontos aos usos e costumes (ob. cit., pág. 294). Tal é o caso do art. 588, § 2º, de nosso Cód. Civil, que manda observar, em matéria de construção de tapumes, os costumes do lugar. Tais são, ainda, os casos dos arts. 132, 168, 176 e muitos outros do Cód. Comercial.
Outra forma do costume secundum legem é o costume interpretativo da lei.
2°) Costume praeter legem. Esta forma do costume destina-se a suprir as lacunas involuntárias da lei, os casos não previstos pela legislação, os casos omissos. A Lei de Introdução ao Cód. Civil brasileiro estabelece, em seu art. 4°, que, quando a lei fôr omissa, o juiz decidirá o caso de acôrdo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. E a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 8º, enumera o costume entre várias outras fontes supletivas.
A antiga Introdução ao Cód. Civil (art. 7°) não enumerava o costume entre as fontes supletivas, mas nossos melhores juristas sustentavam, com acêrto, que o silêncio do art. 7° não impedia a fôrça jurídica supletiva do costume (BEVILÁQUA, “Código Civil Comentado”, vol. I, 9ª ed., 1931, pág. 103; EDUARDO ESPÍNOLA; “Sistema de Direito Civil Brasileiro”, vol. 1º, 2ª ed., pág. 122).
3º) Costume contra legem. Apesar do predomínio da lei escrita a questão do costume contra legem está longe de considerar-se pacífica, não só no terreno da doutrina, como naquele do direito positivo.
O grande jurista GEORGES RÉNARD assim sintetiza sua opinião a respeito:
“Ao contrário do decano FR. GÉNY, eu admito o costume contra legem. De fato, é pràticamente impossível que os tribunais desprezem costumes que se formaram contra a lei, e não lhes reconheçam a virtude de ab-rogar ou emendar esta: para tomar um exemplo numa legislação particular, que os deveres do ensino me fizeram aprofundar, qual é o tribunal que ousará condenar um farmacêutico por ter vendido sem receita médica um estojo de pastilhas Géraudel? Entretanto, o texto lá está. Aliás, FR. GÉNY chega aproximadamente ao mesmo resultado por um rodeio, o qual, por meu lado, prefiro suprimir. Êle admite uma interpretação restritiva da lei, que tende a afastá-la quando se apresentam circunstâncias novas que derrotam as previsões do legislador; êle aí subentende a cláusula rebus sic stantibus: então, sendo a lei tida como deficiente, o costume retomaria seus direitos (“Méthode d’interprétation et sources en droit privé positif”, 2ª ed., t. I, pág. 410). É curta a distância entre as duas opiniões, pois a formação do cosme contra legem provém pràticamente da superveniência de acontecimentos não previstos pelo legislador; êste nunca prevê uma resistência bastante geral e durável para engendrar um costume contrário à lei. No sentido da ab-rogação da lei pelo costume, cf. CH. BEUDANT, “Cours de droit civil français”, t. I, páginas 110 e segs.; J. BONNECASE, “Introduction à l’étude du droit”, págs. 69 e segs.; MEYER, “Institutiones jurís naturalis”, Pars. I, págs. 172 e segs.; e MORIN, “La décadence de l’autorité de la loi”, na “Revue de Métaphysique et de Morale”, 1925, págs. 259 e segs.” (RÉNARD, “Le Droit, l’Ordre et la Raison”, 1927, pág. 11, nota 1).
Ainda no terreno prático, o professor e alto magistrado suíço CLAUDE DU PASQUIER também mostra como os juizes, disfarçamente, muitas vêzes se abstêm de aplicar uma lei que ficou sem efeito na prática (“Introduction à la Théorie Générale et à la Philosophie du Droit”, 1937, pág. 50). Também o professor RAFAEL ALTAMIRA, em 1936, mostrava a presença freqüente do costume contra legem na Espanha (ob. cit., pág. 296).2
Em nosso antigo direito, alvarás houve que reconheceram expressamente certos costumes derrogatórios da lei (v. BORGES CARNEIRO, ob. cit., pág. 49, nota 2 do vol. 1°). Houve um alvará, o de 30 de novembro de 1793, que mandou seguir, em matéria de prova dos escritos e testemunhas no Brasil, o costume de preferência à lei. E isto acontecia depois da Lei da Boa Razão, editada em 1769, a qual exigia não fôsse o costume contrário à lei.
Quanto ao direito brasileiro atual, será tratado em seção próxima, podendo-se adiantar que em casos excepcionais admite-se o costume contra legem.
Para terminarmos êste parágrafo, acenaremos à questão da fôrça do costume no Direito Comercial. Neste ramo do direito positivo, são fontes subsidiárias das leis comerciais, em caso de omissão, quer as leis civis, quer os usos e costumes comerciais. No direito italiano, os usos e costumes comerciais têm preferência sôbre as leis civis. No brasileiro, as leis civis têm primazia sôbre os usos comerciais, com algumas exceções. Isto significa que normalmente na Itália, e, excepcionalmente no Brasil, os usos comerciais se sobrepõem às leis civis. Na França, admite-se mesmo maior fôrça aos usos comerciais, como salienta GÉNY, ao escrever:
“Repelindo, em princípio, todo costume derrogatório da lei que mesmo sem consagrar uma regra de ordem social absoluta edite entretanto uma solução imperativa, eu acreditei dever fazer exceção a favor do costume comercial”.
“Estimo que, em matéria de comércio, a lei escrita ainda não tomou de tal forma a dianteira sôbre o costume, que se deva, pelo menos atualmente, considerar sua supremacia como se impondo, por motivos de ordem política ou social: de tal modo que aqui se pode sustentar a equivalência das duas fontes. Em todo caso, a supor que se hesitasse em proclamar esta tese, sob uma forma absoluta, e a fazer prevalecer costumes recentes (no sentido precisado acima), sôbre as disposições positivas, do Código Comercial, ou das leis pròpriamente comerciais que se lhe ajuntaram, parece-me que se deveria considerar incontestável que, em razão do poder respectivo, de que êles gozam em nossa organização social, o costume comercial vivo hoje em dia, e seja qual fôr, aliás, a data, prevalece sôbre a lei civil, aplicada subsidiàriamente às relações jurídicas de natureza comercial” (ob. citada, vol. I, pág. 413).
A questão do costume contra legem é de natureza antes política do que jurídica. Ela não está ligada visceralmente à natureza do costume. É, ao invés, uma questão de colisão de poderes, sôbre a qual escreve excelentemente GUSTAVO RADBRUCH:
“Acreditou-se que se poderia decidir juridicamente esta luta que, em prol da preeminência, mantém entre si o costume e a lei, ora em um sentido, ora em outro; quer afirmando a preponderância efetiva do Direito consuetudinário, quer, ao contrário, considerando o Direito consuetudinário como Direito meramente tolerado pelo Estado, isto é, subordinando-o à lei. Na realidade, nesta questão unicamente se pode ser parte e nunca juiz, porque não existe uma norma procedente de uma terceira fonte superior de Direito para decidir a luta entre a lei e o costume. Não se trata de uma contenda jurídica, mas de uma prova ou ponderação de poder, que no Estado moderno costuma resolver-se a maioria das vêzes em favor do Direito legislado; mas que, em construções políticas de antigamente, por sua menor firmeza, costumava decidir-se a favor do Direito consuetudinário.
“A questão sôbre a primazia do Direito consuetudinário ou do legislado não deve ser posta sòmente como problema jurídico, mas como jurídico-filosófico e político. De um lado, há os que propugnam que o Direito se vai elaborando, não mercê do arbítrio de um legislador, mas pelas fôrças interiores que agem de modo natural e recôndito” (SAVIGNY); de outro lado, se proclama que o fim é o criador de todo o Direito” (IHERING). Enquanto o individualismo, exibindo a clara medida do interêsse pessoal, está sempre pronto para a crítica negativa e a tarefa de sua reforma legislativa, o conservadorismo, em cuja opinião possui o Direito um fim superior aos interêsses individuais, fim velado para os particulares, quer que a reelaboração do Direito seja subtraída ao arbítrio dos indivíduos, e seja confiada ao sentimento jurídico inconsciente e instintivo, no qual se revela a razão do todo” (“Introdución a la Ciencia del Derecho”, trad. esp., págs. 38 e segs.).
Os autores realçam, em geral, êste aspecto político na questão da fôrça do costume em face da lei (cf. F. GÈNY, “Méthode d’Interprétation et Sources en Droit Privé Positif”, ed. 1932, vol. I, páginas 324, 329, 356, 407, 408; ALFREDO ROCCO, “Princípios de Direito Comercial”, Parte Geral, trad. de CABRAL DE MONCADA, págs. 128-129; A. ESMEIN, “Cours Elémentaire d’Histoire du Droit Français”, 15ª ed., 1925, págs. 677-755; MAURICE HAURIOU, “Príncipes de Droit Publique”, 1916, Introdução; CARLYLE, “La Libertad Política”, págs. 23-27; CLEMENTE DE DIEGO, “Fuentes del Derecho Civil Espanol”, pág. 245).
III. DISTINÇÃO ENTRE COSTUME JURÍDICO, USOS CONVENCIONAIS E USOS SOCIAIS
O costume jurídico se assinala, quer por inspirar-se nas idéias de justiça e de segurança, quer por ser dotado de obrigatoriedade. Aliás, êstes dois característicos, o ideológico e o material, estão essencialmente ligados entre si, e são como as duas faces de uma medalha.
Estas características o distinguem muito fàcilmente dos usos sociais (regras da cortesia, da moda, etc.), mas a distinção entre êle e os usos convencionais é mais delicada.
Vamos, pois, caracterizar cuidadosamente os usos convencionais, valendo-nos dos ensinamentos de FRANÇOIS GÉNY. São êles certos usos da vida dos negócios, mais particularmente encontradiços no comércio, também conhecidos por usos do tráfico e usos do comércio. Trata-se destas práticas, algumas gerais, a maior parte locais ou profissionais, que envolvem tàcitamente a formação dos atos jurídicos, especialmente dos contratos e que, em virtude do princípio da autonomia da vontade, purgado de um vão formalismo e dominado pela boa-fé (Treu und Glauben dos alemães), subentendem-se em todos êstes atos mesmo, salvo algumas reservas, nos atos solenes, para interpretar ou completar a vontade das partes ou aquela do autor do ato. Tais são os usos, tão numerosos, em matéria de locação de prédios, de locação de serviços, ou, como se diz mais correntemente hoje, de contratos de trabalho, de venda civil ou comercial, de sociedade, de conta-corrente, de operações de bôlsa, de efeitos de comércio, de contratos marítimos, etc.; mesmo em matéria de testamentos, para o efeito de esclarecer e precisar as intenções do testador; em suma, em tôda a esfera jurídica, na qual encontra lugar o jôgo da vontade autônoma.
Sob o nome de uso ou de usos locais, o Cód. Civil francês (assim como os outros, inclusive o brasileiro, como veremos por miúdo em outro lugar), traçando as regras gerais da interpretação dos contratos, ou determinando o conteúdo de certos dêstes contratos, fêz, mais uma vez, alusão a êstes usos convencionais.
Para a maior parte dos juristas franceses, êstes usos convencionais (como tais considerados por GÉNY) não constituem outra coisa senão uma variedade do costume jurídico. Mas GÉNY é de opinião (ob. cit., pág. 422) que, na maior parte dos casos do Cód. Civil, é-se levado a reconhecer que, se o uso convencional apresenta bem o elemento material do costume, pois que êle supõe uma prática constante e longamente seguida, por outro lado, o elemento psicológico, a opinio iuris, está ausente. Argumenta o professor de Nanci que os usos dos negócios não permitem suprir ou interpretar a vontade dos contratantes, senão porque se considera que êstes se tenham referido a êles livremente. Ora, esta escolha mesma exclui, entre êles, o sentimento de uma sanção jurídica, necessàriamente ligada ao uso. E não se alegue – prossegue êle – que a disposição interpretativa da vontade, que resulta de uma lei escrita, não deixa de ser uma regra de direito. A isto responderei (GÉNY é quem fala) que, recusando ao uso convencional o caráter de um costume jurídico, eu não nego que possa êle revelar verdadeiras regras de direito. Mas, entre estas regras, e aquelas saídas da lei interpretativa, entrevê GÉNY duas diferenças fundamentais. De um lado, a própria lei contém e exprime diretamente a regra, destinada a suprir a expressão da vontade, ao passo que o uso convencional não deixa descobri-la senão indiretamente, pelo jôgo normal de um princípio distinto, o princípio da autonomia da vontade. De outro lado, e sob um ponto de vista mais prático, se a lei interpreta de oficio a vontade dos contratantes, salvo a admissão de prova contrária de uma vontade claramente divergente, os usos convencionais, ao invés, não sugerem uma intenção não expressa, senão na medida em que as circunstâncias da espécie permitem induzir, neste sentido, a vontade subjetiva das partes envolvidas no ato.
No fundo – conclui GÉNY – os usos convencionais participam menos da natureza do costume jurídico, do que daquela dêstes usos de fato, ou usos da vida corrente, que intervêm necessàriamente na realização do sistema jurídico, sem que seja possível atribuir-lhes o caráter de fontes do direito objetivo.
Esta distinção acarreta as conseqüências seguintes: se os usos convencionais não exigem a opinia iuris necessária ao costume (opinio iuris ou razão jurídica), por outro lado, é preciso que tenham sido êles conhecidos pelas partes, ou, pelo menos que se possa, segundo as circunstâncias, presumir que estas tenham entendido submeter-se-lhes.
Acrescenta GÉNY (pág. 429) que, se a distinção, em geral, se impõe, todavia em muitos casos de sua aplicação os traços essenciais, que a caracterizam, se esfumam pouco a pouco, se desfazem, acabam mesmo por desaparecer, de tal modo que, em dado momento, os usos convencionais podem transformar-se em verdadeiros costumes. Esta transformação é devida à substituição gradual, por uma vontade comum e de conjunto, às vontades particulares, e aquela vontade, criando um sentimento geral de necessidade jurídica (opinio iuris), irá transformar a regra usual em disposição de direito objetivo.
Quanto a saber a partir de qual momento ter-se-á produzido esta mudança decisiva na natureza do uso, não se trata senão de uma questão de apreciação, na verdade muito delicada, que não pode ser resolvida senão a respeito de tais ou tais práticas, individualmente consideradas. Pode dizer-se, de modo geral, que a transformação em direito costumeiro se produz mais fàcilmente para os usos comerciais, cuja natureza é mais homogênea, e que vivem num meio de desenvolvimento mais favorável. E é assim que podemos, conclui GÉNY, considerar como verdadeiros costumes a maior parte dos usos de Bôlsas, assim como aquêles relativos à prática da conta-corrente. A transformação é menos freqüente nas matérias civis, que ficam de preferência abandonadas à fantasia individual e sujeitas às variações da vontade subjetiva. Pode-se, todavia, indicar como tendo passado ao estado de regras costumeiras certas práticas, relativas às condições e à duração das locações (previstas, sob o nome de usos locais, por vários artigos do Cód. Civil) (GÉNY, ob. cit., págs. 418-432; cf. igualmente CLEMENTE DE DIEGO, “Fuentes del Derecho Civil Espanol”, págs. 296-344; ERICH DANZ, “Interpretação dos Negócios Jurídicos”, trad. port., 1942, §§ 15, 16 e 17).
Quando tratarmos do costume no Direito Civil brasileiro, teremos ocasião de acentuar, diferenciando-os devidamente, os casos em que os usos ou costumes locais pela lei invocados já são costumes pròpriamente ditos, daqueles outros em que defrontamos apenas com usos convencionais ou usos sociais.
Para encerrarmos êste parágrafo, duas palavras mais sôbre os usos sociais, aos quais de início brevemente nos referimos. São êles os usos da sociedade, tais como as regras da etiquêta, da moda, da cortesia, do decôro. Não são, em absoluto, juridicamente obrigatórias. Constituem elas, sob o prisma jurídico, matéria de fato, que a lei às vêzes considera como elemento de certas regras escritas. Assim, alguns Códigos Civis (mas não o nosso) estabelecem não estar sujeito a colação o que se gastou em presentes, sempre que esteja de acôrdo com a condição da família e os costumes. Mas os costumes, a que se refere a lei, nestes casos, são puros usos sociais, matéria de fato, não de direito, salienta o distinto jurista peruano JÚLIO A. GONZALES (“Los Usos como Fuente del Derecho”, na “Revista de la Escuela Nacional de Jurisprudencia”, julho-dezembro de 1947, ns. 35 e 36, pág. 157).
CARVALHO DE MENDONÇA estabelece claramente a diferenciação entre usos comerciais pròpriamente ditos (direito consuetudinário) e os simples usos sociais:
“A prática de atos uniformes e constantes para tomar a qualidade de uso, deve ser acompanhada da convicção de que tal é o direito, por outra, deve ser observada como se obedecesse a dispositivo legal. Esta convicção da vida jurídica aos usos, imprime-lhes o caráter e a autoridade de fonte de direito.”
“É importante” – continua – “essa consideração por suas conseqüências. Assim, não constituem usos legítimos as práticas observadas por condescendência, tolerância, liberalidade ou admitidas por negligência. Exemplos: é de hábito, em muitas praças, as casas comerciais gratificarem os empregados por ocasião do encerramento do balanço anual; são costumes, em outras praças, a distribuição de presentes de festas à clientela ou freguesia, o abatimento nos pagamentos pontuais, a entrega em domicílio dos objetos vendidos. Praticando êsses atos, por mais uniformes e constantes, não tem o comerciante a persuasão de executá-los para satisfazer obrigação jurídica. Trata-se de hábitos comerciais, de simples usos da vida mercantil, de usos de negócio, aos quais nunca poderá ser atribuída fôrça jurídica obrigatória” (“Tratado de Direito Comercial Brasileiro”, vol. 1°, nº 123; v. análoga distinção em ROCCO, ob. cit., pág. 140).
(Continua)
______________________
Notas:
1 Quanto à importância do direito costumeiro (customary law) na Inglaterra contemporânea ela tem sido algo exagerada no que se refere ao direito privado. Escreve a respeito o notável jurisconsulto, Justice BENJAMIN CARDOZO:
“Indubitavelmente a energia criadora do costume no desenvolvimento da common law é hoje menor do que o foi em tempos pretéritos. Mesmo em tempos passados, sua energia foi provàvelmente exagerada por BLACKSTONE e seus seguidores. “Hoje nós reconhecemos”, segundo as palavras de POUND, “que o costume é um costume de decisão judicial, não de ação popular” (“The Nature of the Judicial Process”, trad, port., pág. 43).
E, em outro capitulo dêsse mesmo livro, é ainda mais incisivo:
“Creio que a verdade está no meio-têrmo entre os extremos representados, de um lado por COKE, HALE e BLACKSTONE, e, de outro, por autores como AUSTIN, HOLLAND, GRAY e JETHRO BROWN. A teoria dos mais antigos escritores era a de que os juizes absolutamente não legislavam. Uma regra preexistente ali estava, escondida, oculta, no corpo do direito costumeiro (customary law). Tudo que os juízes faziam era retirar os mantos que a encobriam e expor a estátua à nossa vista. Desde os dias de BENTHAM e AUSTIN, ninguém, acredita-se, aceitou essa teoria sem restrição ou reserva, embora nós encontremos, mesmo em decisões modernas, traços de sua dilatada influência. Hoje, o perigo de incorrer no êrro oposto é muito maior. Da sustentação de que o direito (law) nunca é feito pelos juizes, os partidários da análise de AUSTIN foram conduzidos por vêzes, à conclusão (oposta) de que êle nunca é feito por qualquer outra pessoa. Os costumes, dizem êles embora firmemente estabelecidos, não constituem direito (law), a menos que sejam adotados pelos tribunas” (CARDOZO, ob. cit., págs. 80-81).
Em conclusão: a common law inglêsa procede muitíssimo mais da ação dos tribunais do que das práticas jurídicas do povo inglês. E releva notar que, hoje em dia, a common law está sendo contrabalançada pelo grande desenvolvimento da legislação escrita na Inglaterra e especialmente nos Estados Unidos.
2 O professor ERNST SWOBODA, ao estudar as diversas fontes do direito, escreve que o lugar do costume na hierarquia das fontes do direito difere essencialmente nos diversos Sistemas jurídicos. Na Suécia, por exemplo, a lei escrita prevalece absolutamente sôbre o costume, ao passo que na Dinamarca o direito costumeiro pode modo ficar e derrogar a lei do modo mais amplo.
Quanto ao Cód. Civil austríaco, o seu § 10 estabelece que não se deve ter em conta o costume senão nos casos previstos pela lei. Mas SWOBODA observa que a prática dos tribunais fêz nascer na Áustria um outro direito costumeiro, muito mais importante (SWOBODA “Les Diverses Sources du Droit: leur équilibre et leur hierarchie dans les divers systèmes juridiques”, nos “Archives de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique”, nº 12, 1934, pág. 200).
Na Espanha, além do professor ALTAMIRA, acima citado, o notável civilista DEMOFILO DE BUEN se refere ao costume contra legem como uma realidade em seu país (“Las Normas Jurídicas y la Función Judicial”, in “Biblioteca de la Revista General de Legislación y Jurisprudencia”, 1917, pág. 74).
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
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