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MPox: direito sanitário para emergência de saúde pública de importância internacional
Henderson Fürst
17/09/2024
No último dia 14 de agosto de 2024, a Organização Mundial da Saúde declarou que o aumento de casos de Mpox na República Democrática do Congo e em diversos países africanos representa uma Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional (PHEIC), nos termos do artigo 12 do Regulamento Sanitário Internacional1. Diante das notícias de casos suspeitos ocorrendo no Brasil, o presente artigo é uma contribuição para apoiar as estratégias jurídicas de enfrentamento da doença no país.
A Constituição Federal estabeleceu o direito fundamental à saúde como um dever do Estado, também estabeleceu um dever público de redução do risco de doença, que é realizado por meio de serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 196). Este pacto social representa um modelo de democracia sanitária que se demonstrou bem sucedido aos desafios dessa quadra da história2.
A experiência recente da pandemia de Covid-19 demonstrou como a democracia sanitária se articula em momentos de crise. Se, naquela ocasião, a rápida articulação dos Poderes permitiu a criação da Lei 13.979/2020 para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional que embasou as diversas políticas públicas adotadas, inclusive para justificar a legalidade da restrição momentânea de direitos fundamentais, a ausência de uma lei específica para a situação da Mpox não representa um estado de lacuna normativa para a atuação do Estado. Especialmente porque, relacionada às ações de promoção da saúde (art. 196), decorrem um direito inerente à regulação adequada do sistema de saúde que se manifesta tanto (1) pela composição de um sistema de vigilância sanitária com política nacional e diretrizes gerais atualizados e correspondentes aos desafios que um sistema de saúde e o mercado de saúde apresentam, seja (2) pela criação de agências e órgãos reguladores que observem as melhores práticas do setor e estimulem a sustentabilidade do sistema de saúde. Quanto às ações de proteção da saúde, historicamente relacionadas à polícia sanitária, constituem hoje um complexo sistema de segurança sanitária e vigilância epidemiológica.3
Já é um debate superado se as orientações da OMS vinculam ou não as políticas públicas internas, inclusive porque este é o entendimento que o STF reiterou na ADI 6148. Vale ressaltar que, na atual democracia sanitária brasileira, compreende-se também um sistema de soberania sanitária que envolve a cooperação internacional sanitária e a adoção de medidas sanitárias conjuntas, especialmente porque as doenças ignoram as ficções jurídicas das fronteiras da soberania. Nesse sentido, sendo o Brasil um país que assumiu o compromisso convencional de observar as recomendações, que se encontram previstas nos artigos 2.º, K, e 23 da Constituição da OMS4, tais recomendações são uma plataforma mínima de como tratar o tema. Quando a OMS estabelece uma determinação em saúde, ela está criando o patamar mínimo a ser aplicado como proteção da saúde – e, consequentemente, do direito à saúde.
Se uma pessoa manifestar sintomas que indiquem suspeita de Mpox, as autoridades sanitárias são obrigadas a realizar a investigação epidemiológica – e, consequentemente, há redução no âmbito das liberdades pessoais do investigado, devendo permitir a realização dos exames necessários, nos termos do art. 11, parágrafo único, da Lei 6.259/1975, que estabelece que “A autoridade poderá exigir e executar investigações, inquéritos e levantamentos epidemiológicos junto a indivíduos e a grupos populacionais determinados, sempre que julgar oportuno visando à proteção da saúde pública.”
Caso os resultados (ainda que parciais) indiquem a presença da doença e seu risco à comunidade ou população, deverá a autoridade sanitária adotar as medidas proporcionais e adequadas ao controle da doença, tanto relacionadas à pessoa quanto grupos populacionais e ambientes, conforme preconiza o art. 12 da Lei 6.259/1975. Ou seja, medidas como isolamento sanitário (ainda que não hospitalizado), contact tracing, dentre outras, estão autorizadas.
Mais do que isso, a adoção de tais medidas é poder-dever da autoridade sanitária para redução do risco de doença e de outros agravos (art. 196 da CF), observados os requisitos formais do ato administrativo. A medida deve ser motivada (art. 20, parágrafo único, da LINDB) e proporcional, no sentido de não incorrer em excesso, tampouco em proteção deficiente do direito social à saúde, o que se infere justamente dos seus motivos determinantes, possibilitando controle social, externo e judicial dos elementos de competência, forma, objeto, motivo e finalidade (art. 2º, caput, ‘a’ a ‘e’, Lei 4.717/1965).
Tais medidas não se restringem apenas às pessoas que potencial ou efetivamente estejam contaminadas, mas também outras pessoas físicas e jurídicas (públicas ou privadas) que se façam necessárias à efetividade das medidas de contenção, nos termos do art. 13 da Lei 6.259/1975.
A inobservância das medidas estabelecidas à contenção da doença configura infração sanitária, que deverá ser lavrada em Auto de Infração pela autoridade sanitária, estabelecendo a conduta infratora e a atribuição da gravidade, bem como respectiva sanção atribuída, nos termos da Lei das Infrações Sanitárias (Lei 6.437/1977), cabendo recurso administrativo e, ainda, revisão judicial. Vale ressaltar que uma conduta que contradiz as medidas sanitárias pode, também, implicar na tipicidade de um crime5.
Por fim, cabe ressaltar que, embora tenhamos esboçado as notas jurídicas sanitárias acima, elas expressam algo maior, que é o cuidado. O cuidado reflete parte do que nos torna humano, do que propiciou o desenvolvimento civilizatório de um dos mais frágeis seres ao estágio atual de qualidade de vida. Esse cuidado se manifesta tanto pelo cuidado de si, quanto pelo cuidado recíproco numa comunidade, quanto também pelo cuidado devido pelo Estado.6 O direito sanitário apenas expressa este cuidado, que deverá vir junto com conscientização, diálogo e acolhimento.
Autores:
Henderson Fürst
Doutor em Direito pela PUC-SP. Doutor e mestre em Bioética pelo CUSC. Professor de Bioética do Hospital Israelita Albert Einstein. Professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas. Presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP. Diretor da Sociedade Brasileira de Bioética.
Douglas Martins
Mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI-SC. Promotor de Justiça em Santa Catarina. Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Saúde Pública do Ministério Público de Santa Catarina.
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NOTAS
1 Organização Mundial da Saúde, Regulamento Sanitário Internacional. Disponível em: https://apps.who.int/gb/bd/pdf_files/IHR_2022-en.pdf
2 No conceito de Fernando Aith, “democracia sanitária é o regime de governo do povo, aplicado aos temas relacionados à saúde individual e coletiva, por meio do qual os cidadãos participam e influem ativamente, de forma deliberativa ou consultiva, nos processos de tomada de decisões estatais de saúde de competência dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.” AITH, Fernando. Democracia Sanitária e Direito Fundamental à Saúde. São Paulo: Lumen Juris, 2017, p. 86.
3 FÜRST, Henderson. Jurisdição constitucional sanitarista. Prelo.
4 MAZZUOLI, Valério. As determinações da OMS são vinculantes ao Brasil. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/58018/artigo-as-determinacoes-da-oms-sao-vinculantes-ao-brasil-por-valerio-de-oliveira-mazzuoli
5 Cf., por exemplo, FÜRST, Henderson; CONSTANTINO, Carlos Ernani. Sobre a conduta de causar epidemia no Código Penal. GEN Jurídico. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/areas-de-interesse/penal/delito-de-epidemia/
6 FÜRST, Henderson. Jurisdição constitucional sanitarista. Prelo.