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FINANCEIRO E ECONÔMICO
Mercados de trabalho: até quando seguiremos insensíveis à assimetria de poder?
Ana Frazão
09/05/2024
Na semana passada, reportagem do Intercept intitulada “Entregadores de app passam forme, sede e enfrentam jornadas de até 80 horas semanais”[1] apresentou uma síntese do “Dossiê das violações dos direitos humanos no trabalho uberizado: o caso dos motofretistas na cidade de Campinas”, que foi publicado recentemente pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp[2].
Dentre as principais conclusões do estudo, estão as de que (i) trabalhadores que usam apps como fonte principal de trabalho ganham menos dos que o que não dependem dos apps; (ii) a maioria dos entregadores trabalha mais de 44 horas por semana, valendo destacar que 40% dos participantes da pesquisa relataram trabalhar mais de 60 horas semanais e 20% mais de 80 horas semanais, (iii) os motoboys passam fome e sede no trabalho, (iv) mesmo jovens, os entregadores têm o dobro do índice de pressão alta da população brasileira e (v) a maioria já se acidentou no trabalho e vive com medo.
Trata-se de excelente oportunidade para refletir sobre o problema da assimetria de poder nos mercados de trabalho, assunto ao qual eu já dediquei uma série[3] e que foi igualmente objeto do excelente estudo do Economic Policy Institute (EPI) intitulado Identifying the policy levers generating wage suppression and wage inequality[4], de maio de 2021. Aliás, vale destacar que a finalidade do EPI é precisamente restabelecer o entendimento – em direito, política, economia e filosofia – de que não existe equivalência de poder de barganha entre trabalhadores e empregadores, razão pela qual assumir tal desigualdade é fundamental para impulsionar liberdade justiça econômica, proteção no ambiente de trabalho e democracia.
O relatório procura explicar o descolamento entre o crescimento da produtividade e a remuneração média dos trabalhadores, como se observa pelo seguinte gráfico:
Tal fenômeno, que impôs perda a 90% dos trabalhadores norte-americanos, explica igualmente o decréscimo da fração de renda atribuída ao trabalho:
Segundo o estudo, as causas desse cenário são mal identificadas, sobretudo em razão da interpretação proeminente de que se trata de resultados das forças apolíticas dos mercados de trabalho, que seriam competitivos e equilibrados em termos de poder de barganha de empregadores e empregados. Daí se imputar esse estado de coisas às transformações tecnológicas, à automação e à globalização, de forma que a solução para o problema seria aumentar a qualificação técnica dos trabalhadores.
Entretanto, os estudos empíricos e as métricas recentes mostram que tal explicação é bastante falha, especialmente a partir de 1995[5]. Daí por que o relatório conclui que tais resultados foram consequências de decisões políticas propositalmente arquitetadas para suprimir o crescimento dos salários[6]. Citando Bivens, a conclusão é de que se trata de uma falha por design (failure by design), orquestrada por aqueles que têm dinheiro e poder[7], que conveniente utilizaram as premissas do chamado fundamentalismo de mercado ou neoliberalismo para apoiar suas pretensões[8].
Política da supressão de salários
Daí por que o relatório se utiliza da expressão supressão de salários (wage supression) e não estagnação de salários (wage stagnation) para mostrar que o resultado foi ativamente buscado por meio de políticas que sistematicamente reduziram as opções de mercado dos trabalhadores individuais – inclusive de sair dos empregos e a liberdade de voz – e as suas possibilidades de obtenção de maior pagamento, estabilidade no emprego e posições com maior qualidade.
Essa política, que teve consequências adversas especialmente para trabalhadores com salários baixos e médios e dentro destes, para mulheres e minorias, foi estruturada a partir de seis eixos:
- Macroeconomia da austeridade, inclusive para o fim de facilitar níveis maiores de desemprego do que os que seriam necessários para conter a inflação;
- Uma corporate-driven globalization, que resulta de escolhas políticas tomadas no interesse de grandes corporações, que reduzem salários e estabilidade de emprego de trabalhadores pouco qualificados enquanto protegem seus lucros e o pagamento de gerentes corporativos e professionais qualificados;
- Erosão proposital das negociações coletivas, como resultado de decisões judiciais e escolhas políticas que estimulam práticas antissindicais;
- Standards de proteção do trabalho cada vez mais fracos, incluindo o declínio do salário mínimo, erosão de proteções a práticas nefastas, como o roubo de salário (wage theft) e as discriminações baseadas em gênero, raça e étnicas;
- Cláusulas contratuais impostas por empregadores, como a de não concorrência após o desligamento e as de arbitragem compulsória;
- Mudanças nas estruturas corporativas resultantes das fissuras (fissuring) em seus diversos desdobramentos, que têm em comum o propósito de aumentar os rendimentos dos acionistas (shareholder value theory) em detrimento dos empregados pelas vias da terceirização, desregulação, privatizações, exercício abusivo do poder de compra por meio de monopônios e oligopsônios. Vale ressaltar que, especialmente no que diz respeito às subcontratações, a ideia é cortar salários e transferir riscos para outras firmas e para os trabalhadores.
Para o estudo do EPI, somente os três primeiros fatores, que foram mensurados empiricamente, são responsáveis por 55% da supressão de salários.
Daí a necessidade de se focar no poder e nas políticas para se entender o problema dos salários, assim como se reconhecer o erro de que mercados de trabalho são competitivos, o que justificaria a desregulação e uma série de outras providências, como o enfraquecimento do Antitruste[9]. Se tais premissas apresentaram resultados nefastos em várias áreas, o maior dano ocorreu precisamente nos mercados de trabalho, em que a promoção da flexibilidade do trabalho foi associada a uma necessidade para o crescimento econômico.
De forma contrária, o relatório mostra como o crescente poder dos empregadores tem sido apontado como a principal causa da supressão de salários[10] e da erosão de instituições e políticas – inclusive a do salário mínimo – que durante muito tempo possibilitaram uma espécie de poder compensatório por parte dos empregados. Consequentemente, a desigualdade apenas deixará de crescer quando os pagamentos dos trabalhadores puderem aumentar em linha com a produtividade, o que exige standards de proteção ao trabalho e políticas que reestabeleçam o poder de barganha individual e coletivo dos trabalhadores.
Para além disso, o relatório explora algumas das estratégias atuais para a supressão de salários, como a (i) classificação errada – classificar empregados como contratantes – muito utilizada por plataformas para o fim de se diminuir ilicitamente os custos do trabalho[11] e (ii) a colusão entre empregadores e os acordos entre empresas para não contratarem ex-empregados das outras (anti-poaching agreements).
Todos esses resultados mostram que o trabalho é um tipo distinto de bem e que a desigualdade do poder de barganha é uma característica inerente na relação empregador-empregado[12]. Tal mudança de perspectiva tem um impacto profundo na análise da dinâmica dos mercados de trabalho e nas políticas que precisam ser implementadas para reequilibrar o poder nos mercados de trabalho e assim obter robusto crescimento de salários e empregos com maior qualidade para a maioria das pessoas[13].
Dentre os economistas cujos estudos robustecem essa conclusão, são citados Webber; Dube, Giuliano e Leonard; Dube et al; Bassier, Dube e Naidu; Azar, Marinescu, and Steinbaum; Langella and Manning; Card et al; e Sokolova e Sorensen[14]. Além de tudo, merecem ser destacados os inúmeros estudos que mostram os impactos do poder de mercado dos empregadores na supressão de salários[15].
Mais do que isso, o relatório aponta que o exercício abusivo do poder dos empregadores sobre os empregados está criando um sistema econômico disfuncional, que redistribui renda dos mais pobres para os mais ricos, como sustentam Dean Baker, Josh Bivens, Jared Bernstein, Joseph Stiglitz, Lawrence Mishel, Heidi Shierholz, Elize Gould e James Galbraith[16].
O que todos estudos mencionados pelo relatório demonstram é que os empregadores realmente exercem poder sobre os salários, do que resulta a importância de soluções que – a exemplo do fortalecimento da negociação sindical e das proteções ao trabalho – possam minimamente estruturar algum tipo de poder compensatório[17].
Mais do que uma questão de justiça econômica e proteção do trabalho, trata-se de questão fundamental para o crescimento e o desenvolvimento econômico, bem como para a manutenção das próprias democracias.
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NOTAS
[1]https://www.intercept.com.br/2024/04/17/entregadores-passam-fome-em-jornadas-de-ate-80-horas/
[2]https://www.direitoshumanos.unicamp.br/noticias/2024/04/17/dossie-das-violacoes-dos-direitos-humanos-no-trabalho-uberizado-o-caso-dos-motofretistas-na-cidade-de-campinas/
[3]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-suas-consequencias-parte-i-01072020; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-flexibilizacao-dos-direitos-trabalhistas-parte-ii-08072020; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-flexibilizacao-dos-direitos-trabalhistas-parte-iii-15072020.
[4]https://www.epi.org/unequalpower/publications/wage-suppression-inequality/
[5] O relatório do Economic Policy Institute apresenta um Apêndice A apenas para demonstrar que a automação e a falta de qualificação dos trabalhadores não explicam nem o que chama de wage suppression nem o que chamam de wage inequality.
[6] O relatório do Economic Policy Institute apresenta um Apêndice B para demonstrar a intencionalidade das políticas mencionadas.
[7] Relatório, pp. 2-3.
[8] Relatório, p. 4.
[9] Relatório, p. 5.
[10] Vale transcrever o seguinte trecho do relatório (Op.cit., pp. 5-6):
“For instance, Stansbury and Summers (2020) also argue that reduced worker power explains sluggish wage growth and a declining labor share of income. New empirical examinations of employer monopsony power have identified a growing (at least since the late 1990s) and pervasive employer ability to mark down wages from 20% to 50% and to exert more power over lowwage workers than others. This new monopsony literature provides a top-down analysis, estimating the aggregate potential employer power to suppress wages and then examining the contributing role of countervailing forces like unionization, high-pressure labor markets, and high values of minimum wages in explaining an aggregate net metric of employer power. In contrast, we provide a bottom-up analysis examining the impact of many specific factors and gauging their contribution to the overall divergence between productivity and median compensation growth.
Joseph Stiglitz (2012, 2021) has long focused on power in markets, emphasizing both product market monopoly power and the weakening of employee power relative to employers. He recently provided an analysis similar to the framework of this paper:
The commonsense statement that employers have power over their employees has long been heretical in the economics profession…. More and more, firms have demonstrated high and increasing levels of market power. At the same time, the bargaining power of workers has weakened…. [T]his imbalance of market power has consequences…. It enables firms to suppress wages of workers below what they would be in a competitive marketplace—contributing to the inequality crisis facing the country…. Employers and employees need to be able to bargain on more-equal footing. (Stiglitz 2021)”.
[11] Vale destacar o seguinte trecho do relatório (Op.cit., pp. 39-40): “It is difficult to quantify the extent of misclassification, since it is an illegal activity, and the extent to which it lowers wage and benefit costs. The fact that venture capitalists force this model on gig economy upstarts provides practical confirmation that the business strategy lowers labor costs and shifts risks to workers. Uber, a prominent example of a firm whose business strategy is built on misclassifying rideshare drivers, acknowledged in its registration for an initial public offering (Uber 2019) that misclassification provides substantial cost savings.”
[12] Relatório, p. 57.
[13] Relatório, p. 57.
[14] Relatório, p. 58.
[15] O seguinte trecho do relatório merece ser lido (Op. cit., p. 58): “The monopsony literature has identified a substantial amount of employer power such that employers are able to, as Bassier, Dube, and Naidu (2020) put it, “mark down” wages by anywhere from 20% to 50%. There is some evidence on the time trend of employer monopsony power; two studies have shown that employer power increased since the late 1990s (Webber 2020; Langella and Manning 2020), though Bassier, Dube, and Naidu (2020, Table 6) show stability over the 2003–2012 period. One consistent finding of these studies is that employers are able to exert more power over low-wage than other workers, affirming that employer power generates wage inequalities.”
[16] Relatório, p. 57.
[17] Essas são as conclusões finais do estudo (Op.cit., p. 59):
“What these studies, which overwhelmingly focus on recent data, convincingly demonstrate is that employers wield power over U.S. wages. These studies also point to influences that seem to blunt the effect of employer power—like unionization, high-pressure labor markets, and high values of minimum wages. For example, Bassier, Dube, and Naidu (2020), examining the 2003–2012 period, find that monopsony power was greater in the 2007–2010 period of very high unemployment than in the preceding or subsequent years. Langella and Manning (2020) find monopsony power in the U.S. declining in recoveries (1996–2000 and 2002–2007) and increasing as unemployment escalates (2000–2002 and after 2008 but continuing through 2016).
What these studies suggest is that employer power is ubiquitous in labor markets and, absent institutions and policies that provide countervailing power, wages will be lower and wage growth suppressed. One way to interpret the review of evidence in the current paper is that employer power is the constant of modern labor markets, but what has changed over the past generation in the United States to generate anemic wage growth is the erosion of institutions and policies—high-pressure labor markets, unions, and binding minimum wages—that once provided countervailing power.”