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A incorporação imobiliária no contexto da recuperação judicial de empresa

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Melhim Namem Chalhub

Melhim Namem Chalhub

20/09/2019

No momento em que se articula a reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência não se pode deixar em plano secundário a atividade empresarial da incorporação imobiliária, cuja crise, potencializada pela avalanche de “distratos” ocorrida a partir de 2015, arrastou grandes incorporadoras à recuperação judicial.

Tratando-se de negócio jurídico caracterizado pela comercialização de imóveis para entrega futura, a lei 4.591/1964 cuida de proteger a coletividade dos contratantes, notadamente os adquirentes, e, nesse sentido, dispõe sobre a prevenção dos riscos inerentes à atividade da construção e institui procedimentos extrajudiciais para solução de situações de crise, alguns aplicáveis às incorporações imobiliárias em geral e outros específicos para os empreendimentos submetidos ao regime do patrimônio de afetação.

Entre os meios legais de prevenção de riscos aplicáveis às incorporações em geral está a faculdade conferida pela lei aos adquirentes para acompanhar a obra por meio de demonstrativos periódicos e para destituir a incorporadora da administração do empreendimento em caso de injustificado retardamento ou paralisação da obra (art. 31-F, § 2º e art. 43, VI).

Para maior proteção do grupo de credores vinculados à incorporação, a lei cria um regime jurídico especial, de segregação de riscos por empreendimento, mediante criação de um patrimônio de afetação (lei 4.591/1964, arts. 31-A a 31-F, com a redação dada pelo art. 53 da lei 10.931/2004).

Trata-se de um patrimônio separado, formado com os direitos e obrigações de uma determinada incorporação, que é incomunicável em relação ao patrimônio geral da incorporadora e só responde pelas suas próprias obrigações, isto é, aquelas correspondentes à construção do conjunto imobiliário e à liquidação do respectivo passivo.

Em caso de falência da incorporadora, a administração da incorporação sob regime de afetação é transferida para a comissão de representantes e os adquirentes são investidos de poderes para deliberar pelo prosseguimento da obra ou pela liquidação do patrimônio de afetação da incorporação, a seu critério exclusivo.

Já em relação ao procedimento de recuperação judicial a lei nada dispõe, mas a omissão legislativa não prejudica o funcionamento do patrimônio de afetação nesse ambiente, nem induz à frustração dos seus efeitos. Assim é porque na recuperação judicial a empresa recuperanda prossegue sua atividade, sob gestão dos seus próprios diretores e fiscalização do administrador judicial e, considerando que o patrimônio de afetação é incomunicável, não é atingido pelos efeitos do plano de recuperação e pode prosseguir sua atividade com autonomia em relação ao patrimônio geral da recuperanda.

Nesse contexto, a recuperanda continuará a receber os recursos provenientes das vendas e do financiamento da construção, se houver, e a aplicá-los na execução da obra e na liquidação do passivo da incorporação, manterá separadas a conta corrente e a contabilidade de cada incorporação afetada, continuará a fornecer à comissão de representantes demonstrativos trimestrais sobre o empreendimento e a praticar os demais atos típicos da administração dos patrimônios de afetação, definidos no art. 31-D da lei 4.591/1964.

Extinto o patrimônio de afetação, por efeito do cumprimento da destinação da afetação, isto é, conclusão da obra, entrega das unidades aos adquirentes e liquidação do seu passivo, seu resultado, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da empresa recuperanda.

Essa interpretação foi aprovada na VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal o Enunciado nº 6281, e adotada no Projeto de lei 10.220/2018, que preconiza a inclusão do § 13 ao art. 49 da lei 11.101/2005, segundo o qual os patrimônios de afetação seguirão seu curso no contexto do procedimento de recuperação judicial “até que seja formalizado o ato de desafetação, quando o resultado patrimonial, positivo ou negativo, será consolidado no patrimônio geral da empresa sob regime de recuperação judicial”2.

É com base nesses fundamentos que as decisões proferidas nos primeiros casos de recuperação judicial de empresas incorporadoras vêm confirmando a imunidade dos patrimônios de afetação em relação aos planos de recuperação, preservando os recursos vinculados à execução da obra.

De acordo com essas decisões, são extraconcursais os créditos integrantes do patrimônio de afetação, vinculados à construção e pagáveis com os recursos desse patrimônio separado, e concursais os créditos não relacionados à realização da incorporação afetada, sendo estes de responsabilidade do patrimônio geral da recuperanda.

A preservação dos recursos da incorporação afetada é, sem dúvida, essencial para a satisfação dos direitos do grupo de credores a ela vinculados, sobretudo no ambiente da recuperação judicial.

Isso, entretanto, não basta para solução de problemas inerentes à singularidade da atividade empresarial da incorporação imobiliária, que se exacerbaram diante da crise deflagrada a partir de 2015, dificultando a adequação das estruturas econômicas e organizacionais necessárias à viabilização da recuperação judicial de incorporadoras em situação de crise e à conclusão de seus empreendimentos.

Citam-se entre essas questões a exigência ou não de registro das promessas como requisito para habilitação dos adquirentes à votação nas assembleias; a eventual participação do permutante do terreno, com ou sem retenção de frações ideais do terreno, nas deliberações; as condições de eventual sub-rogação dos adquirentes nos direitos e obrigações correspondentes ao financiamento da construção; a responsabilidade do patrimônio de afetação pelo pagamento das obrigações decorrentes do desfazimento de promessas de venda; a responsabilidade da incorporadora pelos prejuízos que causar; o quórum legal exigido para alteração do projeto, caso seja necessária sua reformulação para assegurar a viabilidade econômica do empreendimento e questões notariais e registrais relacionadas à efetividade do mandato legal da comissão de representantes dos adquirentes entre outras peculiaridades da atividade empresarial da incorporação imobiliária.

Situações como essas surgem no ambiente de crise, notadamente no procedimento de recuperação judicial de incorporadoras, e põem em relevo a complexa conformação da incorporação imobiliária e o relevante interesse econômico e social que a envolve, a justificar esforço de construção jurisprudencial, ou mesmo alteração legislativa, que adeque as normas sobre recuperação judicial às singularidades dessa atividade empresarial.

Nessa direção, a par da instituição de normas que atendam às peculiaridades da situação de crise de uma incorporação imobiliária, não se pode deixar de considerar o aproveitamento de soluções inovadoras introduzidas pela lei 11.101/2005, mediante criação de um prazo de carência, à semelhança do stay period, para retomada das obras, dilatação de prazo de entrega, redução do quórum para reformulação do projeto de construção, com vistas a assegurar a viabilidade econômico-financeira do empreendimento.

Essas são algumas das medidas para as quais o legislador precisa voltar a atenção, visando simplificar procedimentos e dar celeridade à solução de situações de crise de empresa incorporadora, situação merecedora de tutela especial capaz de afastar ou mitigar as perdas dos adquirentes e dos titulares de créditos pecuniários, coerentemente com o propósito prioritário da afetação da incorporação imobiliária.

Fonte: Migalhas

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[1] “Enunciado 628 – Art. 1.711: Os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial da sociedade instituidora e prosseguirão sua atividade com autonomia e incomunicáveis em relação ao seu patrimônio geral, aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos e ao plano de recuperação até que extintos, nos termos da legislação respectiva, quando seu resultado patrimonial, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da sociedade instituidora”.

[2] Projeto de lei 10.220/2018: “Art. 49. (…). § 13. Os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial e obedecerão ao disposto em legislação específica, de forma a se manterem separados e incomunicáveis em relação ao patrimônio geral da empresa sob regime de recuperação e aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos, até que seja formalizado o ato de desafetação, quando o resultado patrimonial, positivo ou negativo, será consolidado no patrimônio geral da empresa sob regime de recuperação judicial”.


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