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Desafios atuais da alienação fiduciária
Melhim Namem Chalhub
12/08/2019
A alienação fiduciária de bens imóveis tem desempenhado importante papel no financiamento imobiliário, notadamente para moradia, e poderá contribuir decisivamente para a reativação da economia caso sejam supridas lacunas e corrigidas distorções da legislação, que comprometem a efetividade dessa garantia.
Explica-se: ao regulamentar a alienação fiduciária de bens imóveis, a lei 9.514/1997 disciplina detalhadamente seu emprego em garantia do financiamento de imóvel habitacional, talvez influenciada pela grave crise dos anos 1980 que levou à extinção do Banco Nacional da Habitação, mas deixa lacunas em relação à sua aplicação fora desse ambiente.
Omite-se, por exemplo, em relação a importantes aspectos dos empréstimos sem destinação específica (home equity no jargão do mercado), financiamento de capital de giro, operações de crédito garantidas por dois ou mais imóveis, entre outras, além de questões como, por exemplo, arrematação ou consolidação por preço vil.
A omissão pode dar causa a desequilíbrio no resultado da realização da garantia, expondo o credor ou o devedor a risco de enriquecimento sem causa, situação que reclama alteração legislativa capaz de reduzir o risco de judicialização e assegurar a plena efetividade dessa garantia.
O problema tem origem nos §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997, segundo os quais a realização da garantia se dá mediante dois leilões. O preço mínimo para o primeiro é o valor da avaliação que as partes indicarem no contrato ou aquele apurado pela Prefeitura para cálculo do ITBI, o que for maior, e para venda o segundo leilão, o correspondente ao valor da dívida. Caso no leilão não se alcance esse valor, considera-se satisfeito o crédito mediante consolidação da propriedade, pela qual o imóvel é incorporado ao patrimônio do credor pelo valor da dívida.
Esse critério de pagamento mediante transmissão da propriedade do imóvel ao credor fiduciário foi inspirado na lei 5.741/1971, que trata da execução judicial de dívida oriunda de financiamento para moradia no SFH, determinando a realização de um único leilão pelo valor do saldo devedor e dispondo que, se não houver arrematação, o imóvel seja adjudicado ao credor em pagamento da dívida.
A justificativa desse tratamento legal diferenciado foi a necessidade de evitar o superendividamento do tomador de financiamento habitacional caso o valor da dívida superasse o do imóvel, o que poderia ocorrer em razão dos elevados índices de correção monetária computados ao longo do prolongado processo judicial.
A lei 9.514/1997 inspirou-se nessa regra excepcional, mas, ao invés de adotá-la restritivamente para os financiamentos habitacionais, como faz a lei 5.741/1971, institui a exoneração da responsabilidade patrimonial do devedor fiduciante como regra geral, beneficiando tomadores de financiamento para os quais o favor legal é injustificável.
Trata-se de grave anomalia, que distorce a funcionalidade da garantia fiduciária de imóveis, ao violar o princípio do equilíbrio da execução e da responsabilidade patrimonial do devedor e subverter as regras gerais dos arts. 586 e 1.366 do Código Civil e do art. 789 do Código de Processo Civil.
Na tentativa de corrigir a distorção as leis 11.795/2008 (§ 6º do art. 14) e 13.476/2017 (arts. 3º ao 9º) responsabilizam o devedor fiduciante pelo saldo remanescente em relação ao autofinanciamento de grupo de consórcio e à operação bancária denominada “abertura de limite de crédito”, mas a eficácia dessas leis é neutralizada pelos §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997, que consideram extinta a dívida em caso de leilão negativo nas operações de crédito, em geral, de modo que, após o segundo leilão, inexiste qualquer saldo remanescente.
Além das peculiaridades do autofinanciamento de grupos de consórcio e da abertura de crédito bancário, outra situação merecedora de atenção diz respeito a operações em que o valor do empréstimo é muito baixo em relação à avaliação do imóvel.
Em relação aos créditos que servem de lastro das Letras Imobiliárias Garantidas – LIG, por exemplo, o valor do empréstimo não pode superar 60% do valor do imóvel objeto da garantia.
Nesses casos, o valor do empréstimo já nasce próximo do referencial de arrematação por preço vil fixado pelo CPC, de modo que, para atingi-lo, basta o devedor amortizar pouco mais de 10% da dívida.
Essa também é uma situação que recomenda adequação da lei 9.514/1997 aos parâmetros do CPC para afastar o risco de nulidade do procedimento de realização da garantia.
Situação igualmente merecedora de atenção é a omissão da lei 9.514/1997 em relação à execução de crédito garantido por dois ou mais imóveis, que tem suscitado questionamentos[1] e também recomenda regulamentação que ponha fim a controvérsias levadas ao Judiciário.
Essas e outras questões envolvendo os §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997 foram debatidas no II Congresso Nacional do IBRADIM, realizado em junho de 2019.
Para adequar essas normas ao princípio da responsabilidade patrimonial e à regra de vedação de arrematação/consolidação por preço vil, o preço mínimo do imóvel no segundo leilão passaria a ser o do saldo devedor ou 50% da avaliação, o que for maior, mantendo-se o preço mínimo para o primeiro leilão, isto é, o valor indicado pelas partes no contrato ou a avaliação da Prefeitura para cálculo do ITBI, em data próxima do leilão, o que for maior.
Sabendo-se que, na garantia fiduciária o bem é expropriado mediante transferência da propriedade ao credor pelo valor da dívida e nele permanece por esse valor em caso de frustração do segundo leilão, a caracterização de consolidação por preço vil será afastada se o credor fiduciário entregar ao devedor fiduciante quantia correspondente à diferença a maior, se houver, entre 50% do valor da avaliação (referencial do CPC) e o montante da dívida e despesas da execução, importando esse pagamento em recíproca quitação.
Em caráter excepcional, nos financiamentos habitacionais, exceto os relativos a grupos de consórcio, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o devedor fiduciante da responsabilidade pelo remanescente caso no segundo leilão não haja lance igual ou superior ao valor do saldo devedor. Mas também neste caso o credor deverá entregar ao devedor a diferença a maior, se houver, entre o correspondente a 50% da avaliação e o valor da dívida, para afastar a caracterização de preço vil.
Outra situação carecedora de tutela especial é a excussão da garantia composta por dois ou mais imóveis.
Neste caso, a realização de leilão de todos os imóveis simultaneamente pode ser dificultada, sobretudo nos casos em que os imóveis são localizados em localidades distintas. Nesse caso, a excussão poderia ser realizada mediante leilões sucessivos, até mesmo em datas distintas, à medida que cada Cartório liberar a certidão de averbação da consolidação.
Assim, se, com o produto do leilão do primeiro imóvel ofertado, a dívida for amortizada apenas parcialmente, os outros continuariam respondendo pelo saldo remanescente, em conformidade com o princípio da indivisibilidade da garantia[2], e deveriam ser ofertados em segundo leilão pelo valor desse saldo, pois todos os imóveis objeto da garantia permanecem vinculados à dívida até que ela seja extinta[3].
Por esse critério promove-se a execução de modo menos oneroso para o devedor.
É que, mediante consolidações e leilões sucessivos, a consolidação da propriedade do segundo imóvel só será averbada depois da conclusão do leilão do primeiro imóvel, e assim sucessivamente, à medida em que necessário complementar a satisfação do crédito. Assim, uma vez alcançada quantia suficiente para esse fim, os imóveis objeto da garantia que não chegaram a ser excutidos e, portanto, ainda se encontram sob regime da propriedade fiduciária, reverteriam ao patrimônio do devedor mediante simples averbação na respectiva matrícula, deixando de onerar a execução com encargos tributários e emolumentos de duas operações que não serão realizadas, por desnecessárias, a saber, a consolidação, para a qual são exigíveis o ITBI e os emolumentos de averbação, e a nova aquisição pelo devedor, para a qual são também exigíveis o pagamento de novo ITBI e dos emolumentos de registro no Registro de Imóveis.
A sucessividade das ofertas não viola qualquer norma legal e é perfeitamente compatível com a regra do art. 899 do CPC, segundo a qual o leilão de vários bens penhorados deve ser suspenso tão logo apurada quantia suficiente para satisfação do crédito, encargos e despesas da execução.
Independente desse procedimento, nada impede que os contratantes convencionem a vinculação de cada imóvel a uma parcela da dívida e a consequente exoneração da garantia na medida em que satisfeita essa parcela.
As questões aqui suscitadas evidenciam a urgente necessidade de adequação da regulamentação da alienação fiduciária de imóveis aos princípios da responsabilidade patrimonial do devedor, visando pôr fim a controvérsias e afastar ou minimizar o risco de judicialização em relação à efetividade dessa garantia nas operações de crédito em geral.
Afinal, no momento em que se busca a reativação da economia, não se pode esquecer que um eficiente sistema de garantias faz parte do ambiente institucional necessário à sustentabilidade do crescimento econômico.
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[1] “Pleito de sustação da consolidação das propriedades fiduciárias sobre dois imóveis. Garantias, relativas a diversos bens móveis e imóveis, outorgadas em favor de um grupo de credores que decorreu de complexo negócio jurídico. Interpretação teleológica do art. 26, §5º, da lei 9.514/97 em consonância com a causa do contrato. Excussão de um dos imóveis que não pode provocar a extinção da totalidade da dívida e nem a liberação das demais garantias, porquanto a excussão conjunta dos três imóveis rurais, situados em Estados variados da Federação, certamente seria difícil. Recurso desprovido”. (TJ/SP, AgIn 2034093-33.2015.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 8/4/2015).
[2] Código Civil: “Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação”.
[3] A indivisibilidade, como se sabe, não diz respeito ao bem, mas, sim, ao direito de garantia, ainda que essa seja representada por um conjunto de bens.
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