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STJ, Súmula Vinculante 24 e o retorno do direito penal como coação para pagamento de tributos

AÇÃO PENAL

CRÉDITO TRIBUTÁRIO

CRIME TRIBUTÁRIO

DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO

EMBARAÇO À FISCALIZAÇÃO

FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA

LEI 8.137/90

STF

STJ

SÚMULA VINCULANTE 24

Gabriel Quintanilha

Gabriel Quintanilha

23/12/2025

A recente decisão da 6ª Turma do STJ, que por maioria de 3 a 2, admitiu o prosseguimento de ação penal por crime tributário antes da constituição definitiva do crédito, representa um ponto de inflexão importante – e preocupante – na relação entre Fisco, Ministério Público e contribuinte.

A Turma concluiu que, havendo embaraço à fiscalização tributária ou indícios de outros crimes, é possível iniciar a persecução penal antes mesmo do encerramento do processo administrativo fiscal, afastando a incidência da Súmula Vinculante 24 do STF, que exige o lançamento definitivo do tributo para tipificação dos crimes materiais contra a ordem tributária previstos no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90 (STJ. AgRg no HC nº 919313/PB. Sexta Turma. Dje. 23.09.2025).

A decisão foi apresentada como uma “mitigação pontual” da súmula, em cenário de embaraço à fiscalização e possível prática de outros delitos. Contudo, efetivamente, o que se vê é um rearranjo profundo de poderes: o auditor fiscal passa a operar como verdadeiro “gatilho” da persecução penal, e o direito penal tributário volta a flertar com uma função que a Constituição e a jurisprudência tinham buscado afastar: a de instrumento indireto de cobrança de tributo.

1.⁠⁠O desenho constitucional: primeiro o crédito, depois o crime

A Súmula Vinculante 24 dispõe que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”, cumpre dupla função. A primeira é a função dogmática, ao passo que reconhece que o crédito é elemento do tipo material nos crimes do art. 1º, incisos I a IV (sonegação, fraude, omissão de informações), exigindo o resultado de supressão ou redução de tributo, previamente delimitado pela autoridade fiscal.

A segunda função é garantista, pois impede que alguém seja processado criminalmente enquanto o próprio Estado ainda discute, em processo administrativo, se o tributo é devido, em que montante e sob qual qualificação jurídica.

Não por acaso, esse sistema se articula com o art. 83 da Lei 9.430/96, que determina que a representação fiscal para fins penais somente seja encaminhada ao Ministério Público após a decisão final na esfera administrativa. Esse dispositivo foi considerado constitucional pelo STF (ADI 1.571 e, mais recentemente, ADI 4.980), justamente porque traduz uma opção legislativa razoável: aguardar a constituição definitiva do crédito antes de acionar a “face penal” do Estado.

No julgamento da ADI 4.980, o relator, ministro Nunes Marques, foi explícito ao advertir que permitir a antecipação da persecução penal “representa o risco de mover a máquina estatal por situação que possa se mostrar excluída do fato típico”, face à inexistência de crédito tributário constituído, defendendo a necessidade de aguardar o término do processo administrativo por razões de segurança jurídica, ampla defesa e proporcionalidade.

Para além disso, o artigo 395, inc. III, do Código de Processo Penal, determina que a denúncia ou queixa será rejeitada quando “faltar justa causa para a ação penal”. Cuida-se, como bem definiu o Min. Félix Fischer: “é o suporte probatório mínimo ou o conjunto de elementos de fato e de direito (fumus comissi delicti) que evidenciam a probabilidade de confirmar-se a hipótese acusatória deduzida em juízo. Constitui, assim, uma plausibilidade do direito de punir, extraída dos elementos objetivos coligidos nos autos, os quais devem demonstrar satisfatoriamente a prova de materialidade e os indícios de que o denunciado foi autor de conduta típica, ilícita (antijurídica) e culpável” (STJ. AgRg no RHC 867/PR. Rel. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. J. 18.08.2020).

Na ausência de crédito tributário constituído, o que se tem não é indício de materialidade, mas sim sua inexistência.

Esse é o pano de fundo contra o qual a decisão da 6ª Turma deve ser lida.

2.⁠⁠A “mitigação” que transborda: do distinguishing à erosão da súmula

A jurisprudência do STJ já vinha admitindo, há algum tempo, a chamada “mitigação” da Súmula Vinculante 24 em hipóteses muito específicas: quando, além de indícios de crime tributário, há também indícios de outros delitos autônomos, como falsidade ideológica, lavagem de dinheiro ou organização criminosa, que não dependem da constituição do crédito para serem investigados.

Nesses casos, o argumento era: pode-se investigar desde logo os outros crimes, sem oferecer denúncia pelo crime tributário material enquanto não houver lançamento definitivo. O inquérito não seria nulo, desde que não se antecipasse a ação penal tributária.

A decisão agora noticiada dá um passo além: não se trata apenas de permitir investigação preliminar, mas de admitir a própria ação penal por crime tributário antes da constituição do crédito, desde que exista “embaraço à fiscalização” ou acoplamento com outros delitos.

As consequências desse novo posicionamento são claras, na medida em que a garantia sumular deixa de ser um limite objetivo e passa a funcionar como regra com inúmeras exceções, a dogmática dos crimes materiais é relativizada por uma cláusula fluida (“embaraço à fiscalização”), cujo conteúdo é, em grande medida, construído pelo próprio auditor fiscal e abre-se espaço para que a persecução penal seja acionada em paralelo ao processo administrativo, tensionando o modelo consolidado pelo STF.

Não se trata mais de distinguishing pontual, mas de algo muito próximo de uma revogação jurisprudencial “branca” da súmula, sem o devido enfrentamento pelo plenário do STF.

3.⁠⁠A hipertrofia do poder do auditor fiscal

Sob o prisma institucional, a decisão da 6ª Turma do STJ fortalece o papel do auditor fiscal. Isso porque, pela lógica da Súmula Vinculante 24 e do art. 83 da Lei 9.430/96, o auditor apura os fatos, lavra auto de infração, instaura-se o processo administrativo fiscal e, somente após o término da discussão, se o crédito subsistir, caberá a persecução penal.

O modelo é claro: a constituição definitiva do crédito é a fronteira entre a esfera administrativa e a esfera penal. Dessa forma, ao admitir ação penal antes da constituição do crédito, com base em “embaraço à fiscalização”, o STJ desloca essa fronteira para um momento muito mais precoce, no qual o próprio auditor é quem qualifica, em grande medida, a existência de “embaraço”, o relatório fiscal ganha peso desproporcional como fundamento para deflagrar persecução penal e a discussão administrativa torna-se, de fato, “coadjuvante”, uma vez que o contribuinte passa a se defender simultaneamente de um auto de infração e de uma denúncia criminal.

Na prática, cria-se um poder de chantagem estrutural: a ameaça de ação penal, fundada em relatório de fiscalização ainda em disputa, torna-se um instrumento poderoso para induzir o pagamento ou o parcelamento de débitos. É justamente esse cenário que a doutrina crítica havia identificado, no passado, como forma de “coação indireta” na cobrança tributária, algo que a edição da Súmula Vinculante 24 e a afirmação da constitucionalidade do art. 83 buscavam coibir.

O resultado dessa mudança de posicionamento é uma espécie de hipertrofia do poder do auditor fiscal pois ele não apenas arrecada e lança, mas, em certa medida, aciona a engrenagem penal, antecipando efeitos que deveriam depender de uma decisão definitiva sobre o próprio tributo, e o pior: de acordo com a sua interpretação individual dos fatos.

4.⁠⁠Direito penal tributário não é (e não pode ser) instrumento de cobrança

A ideia de utilizar o direito penal como instrumento de garantia de arrecadação é sedutora sob a ótica de eficiência fiscal, mas profundamente problemática do ponto de vista constitucional.

A utilização do direito penal como meio de satisfação do crédito tributário viola princípios fundamentais inarredáveis.

No plano dogmático, a doutrina mais consistente tem insistido que o direito penal é ultima ratio, voltado à proteção de bens jurídicos relevantes e não à otimização da performance arrecadatória. Quando o sistema penal passa a ser utilizado como estímulo para que o contribuinte efetue o pagamento – sob pena de sofrer o estigma de réu criminal, com impactos reputacionais, econômicos e pessoais -, há um cristalino desvio de finalidade.

Alguns pontos merecem destaque. O primeiro deles é a incerteza sobre o próprio crédito. Se o crédito tributário ainda está em discussão administrativa, é porque não há certeza jurídica sobre sua existência, extensão ou qualificação. Permitir que o contribuinte responda criminalmente nesse cenário significa criminalizar sob dúvida, exatamente o oposto do que exige o princípio da legalidade estrita em matéria penal.

Como se não bastasse, há uma assimetria entre o dever de pagar e o risco penal, uma vez que a decisão do STJ aumenta o custo de litigar administrativamente, pois ao impugnar o auto de infração, o contribuinte não enfrenta apenas juros e multas, mas a possibilidade concreta de responder a processo penal. Isso transforma o direito de defesa administrativa em fator de risco penal, incentivando acordos e pagamentos não pela convicção jurídica, mas pelo medo.

Ademais, há uma desfuncionalização clara do sistema de garantias. O STF, ao afirmar a constitucionalidade do art. 83 da Lei 9.430/96 e ao editar a Súmula Vinculante 24, traçou uma arquitetura protetiva: primeiro define-se o crédito; depois, se for o caso, discute-se o crime. Afrouxar esse desenho por via de decisões fracionárias significa esvaziar, sem revogar, garantias já consolidadas.

No limite, o que está em jogo é a transformação do processo penal tributário em mecanismo de pressão arrecadatória, incompatível com a lógica de um Estado Democrático de Direito que se pretende orientado pela proporcionalidade, pela segurança jurídica e pelo respeito ao devido processo legal.

5.⁠⁠“Embaraço à fiscalização”: cláusula aberta e risco de banalização

A justificativa de que a mitigação da súmula se restringe a casos de “embaraço à fiscalização” ou a situações em que há outros crimes correlatos não é suficiente para neutralizar as críticas. Afinal, o que pode ser considerado “Embaraço à fiscalização”?

Trata-se de uma expressão aberta, sujeita a interpretação ampla. Poderia ser caracterizado como tal a recusa em exibir documentos? A demora em atender intimações? Ou seria “embaraço” a simples divergência de interpretação sobre a extensão de um dever acessório?

A depender da resposta, praticamente qualquer conduta defensiva do contribuinte pode ser enquadrada como “embaraço”. E, a partir daí, a exceção torna-se regra: sempre haverá algum elemento de resistência em fiscalizações minimamente complexas. Os atrasos na entrega de documentos são corriqueiros, por exemplo. Os prazos concedidos são exíguos e muitas vezes a Receita requer documentos antigos. O pedido de dilação de prazo seria um “embaraço”?

Além disso, o acoplamento retórico com “outros crimes” acaba funcionando como porta de entrada para a antecipação da persecução tributária, bastando a sugestão da falsidade, fraude ou lavagem, mesmo que não suficientemente demonstradas, para ultrapassar a barreira da Súmula Vinculante 24.

6.⁠⁠O contraste com a evolução recente da jurisprudência

A decisão da 6ª Turma contrasta com movimentos recentes tanto do STF quanto do próprio STJ, em que se buscou racionalizar a persecução penal tributária.

O STF reforçou que a representação fiscal para fins penais só pode ser encaminhada após a decisão administrativa final, julgando constitucional o art. 83 da Lei 9.430/96 e rejeitando teses que buscavam flexibilizar esse marco temporal em nome da “eficiência repressiva”, e a jurisprudência consolidada enfatiza que a Súmula Vinculante 24 protege o contribuinte contra ações penais baseadas em créditos ainda controvertidos, evitando que seja processado por dívida que pode, ao final, revelar-se indevida.

A decisão do STJ, ao permitir a deflagração de ação penal antes da constituição do crédito, reabre exatamente o cenário que a súmula vinculante e o art. 83 pretendiam superar, qual seja, o uso do processo penal como pivô de pressão psicológica, econômica e simbólica para impulsionar o pagamento de tributos que ainda estão sendo discutidos.

Conclusão

Ao admitir ação penal por crime tributário antes da constituição definitiva do crédito, a 6ª Turma do STJ desloca o eixo de garantias construídas em torno da Súmula Vinculante 24 e do art. 83 da Lei 9.430/96.

Sob o argumento de combater o “embaraço à fiscalização” e outros delitos, a decisão aumenta o poder do auditor fiscal, que passa a influenciar de forma decisiva a deflagração da persecução penal, e reabre a porta para o uso do direito penal como instrumento indireto de cobrança tributária – exatamente o que a jurisprudência do STF vinha procurando evitar.

Se o direito penal tributário deve ser, como se afirma, a ultima ratio, não pode ser utilizado enquanto o próprio Estado ainda não definiu se o tributo é devido e, consequentemente, se há ou não um crime. Do contrário, corre-se o risco de transformar a incerteza tributária em certeza penal e é difícil imaginar cenário mais distante da lógica de um Estado que se pretende democrático e de direito.

Autores

Gabriel Quintanilha1 e Juliana Miranda2.

1 Advogado, Sócio do Escritório Gabriel Quintanilha Advogados, Pós Doutorando em Direito pela UERJ, Doutor em Direito, Mestre em Economia e Gestão Empresarial, professor da FGV, da Pós-graduação da UERJ e da EMERJ. Membro do IBDT e da ABDF.

2 Advogada, Sócia do Escritório Gabriel Quintanilha Advogados, Mestranda em Direito, Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS. Professora de Direito Penal. Membra do IAB e coautora de livros jurídicos.

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