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Responsabilidade civil por atos do Judiciário
Kiyoshi Harada
13/04/2021
A responsabilização do Estado por ato judicial é muito rara. A razão disso é muito fácil de descobrir: quem julga o juiz é sempre um outro juiz. Dessa forma, o corporativismo da magistratura, cujos membros parecem estar acima do cidadão comum, tem impedido o pleito de indenização do Estado por erros e até por abusos praticados por alguns juízes que deveriam agir com absoluto respeito no relacionamento com as partes e seus advogados.
Sempre que um magistrado comete excessos no exercício da função pública, excessos que podem até caracterizar crimes, há sempre um sentimento no seio da magistratura de que o juiz não deve ser submetido a julgamento por tolher a independência e autonomia do magistrado.
Só que o advogado, também, é independente e autônomo no exercício da profissão, situando-se na mesma posição hierárquica do magistrado a quem não deve subordinação. Porém, temos casos de advogados que recebem voz de prisão por exceder aos limites razoáveis para o exercício profissional.
Por isso, entendo que a questão não é simples assim, pois “os limites da lei” dependem muito da interpretação de cada aplicador. É preciso pesquisar em cada caso concreto o elemento subjetivo do crime. Por causa disso houve uma reação legislativa que culminou com a aprovação da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, que define os crimes de abuso de autoridade.
A referida Lei foi sancionada com 34 vetos, dos quais 18 foram restabelecidos pelo Congresso Nacional.
Pelo exame superficial dos arts. 9º a 38 que definem os crimes de abuso de autoridade verifica-se que a maioria das condutas tipificadas está relacionada com a atuação de juízes, razão pela qual a Associação Brasileira dos Magistrados intentou a Ação Direta de Inconstitucionalidade, sob o fundamento de que a Lei guerreada cerceia a liberdade do julgador prejudicando a prestação jurisdicional. Realmente, algumas dessas condutas tipificadas podem servir de obstáculo à livre convicção do juiz. O ilustre Presidente do STJ afirmou que nada há a temer, bastando que todos atuem nos limites da lei.
Feitas essas considerações cumpre verificar em que hipóteses o Estado responde objetivamente por danos causados por decisões judiciais.
Relativamente aos atos judiciais, são muitas as teorias tentando defender a tese da irresponsabilidade do Estado, dentre elas: a) a teoria da soberania do Poder Judiciário, por ser a função jurisdicional uma manifestação da soberania estatal; b) a teoria da incontrastabilidade da coisa julgada, segundo a qual o reconhecimento da responsabilidade acarretaria ofensa à coisa julgada; c) a teoria da falibilidade dos juízes, que argumenta que quem litiga em juízo corre os riscos inerentes às falhas humanas; d) a teoria da independência da magistratura, que inexistiria se o juiz tivesse que se preocupar com a possibilidade de suas decisões acarretarem a responsabilidade civil do Estado e a sua própria responsabilidade, em ação regressiva; e) a teoria do risco assumido pelo jurisdicionado, segundo a qual as partes correm os riscos de danos da atuação do Poder Judiciário ao provocá-la, inobstante o a inevitabilidade da jurisdição (COSTA, 2013).
Existem algumas situações concretas que ensejam discussões sobre o tema: os termos usados em decisão prolatada em ação popular e em manifestação pública (STF, RE 228.977); a indenização decorrente da condenação, desconstituída em revisão criminal, da prisão preventiva e da declaração difamatória de agente do Ministério Público (STF, RE 505.393); perdas e danos sofridos em consequência de flagrante ilegalidade, reparada por mandado de segurança (STF, RE 69.568); e a prisão injusta decorrente de erro e má-fé na investigação policial, consubstanciado em homonímia (STF, RE 429.518 AgR) (COSTA, 2013).
A teoria de responsabilidade objetiva do Estado em caso de atos judiciais só é cabível em casos expressamente declarados em lei:
Ementa: Segundo Agravo Interno em Recurso Extraordinário com Agravo. Responsabilidade civil do Estado. Atos judiciais. 1. A teoria de responsabilidade objetiva do Estado, em regra, não é cabível para atos jurisdicionais, salvo em casos expressamente declarados em lei. Precedentes. […] (ARE 828027 AgR-segundo, 2017).
Nesse sentido, reconhecendo previsão legal:
Ementa: Direito administrativo. Agravo Interno em Recurso Extraordinário com Agravo. Vinculação ao juízo de admissibilidade do Tribunal de origem. Inviabilidade. Responsabilidade civil por ato judicial. Hipóteses previstas em lei. Precedentes. 1. O relator não precisa rebater, nem está vinculado aos fundamentos utilizados pelo Tribunal de origem no juízo de admissibilidade. Precedentes. 2. A responsabilidade objetiva do Estado por atos judiciais só é possível nas hipóteses previstas em lei, sob pena de contenção da atividade do Estado na atividade jurisdicional regular. No caso dos autos, não houve prisão além de tempo fixado em sentença, nem erro judiciário. A mera denúncia pelos promotores não enseja dano moral indenizável, mesmo que posteriormente o acusado tenha sido considerado inocente. Precedentes. 3. Agravo interno a que se nega provimento (STF, ARE 833909 AgR, 2017).
Ainda:
Ementa: Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Administrativo 3. Responsabilidade civil do Estado por ato judicial. Hipóteses previstas em lei. Prisão além do tempo fixado na sentença ou erro judiciário. Configuração. 4. Necessidade de reexame do acervo probatório. Súmula 279 do STF. Precedentes. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Agravo regimental a que se nega provimento (STF, ARE 1042793 AgR, 2018).
O STF fixou um critério baseado em erro in judicando (erro na aplicação do direito material) e erro in procedendo (erro na aplicação de norma processual). Aquele não seria passível de indenização, ao passo que, o erro in procedendo seria passível de indenização por ostentar natureza materialmente administrativa que se subsume ao texto do § 6º, do art. 37 da Carta Magna. Nesse sentido, a decisão proferida nos autos do RE nº 832.581 AGR/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 25-2-2016.
Contudo, a jurisprudência da Corte Suprema não identificou o agir com culpa com a decisão acertada ou errada proferida após regular instrução probatória e à luz do princípio da livre convicção do juiz. Eventuais desacertos, na hipótese, dariam margem apenas ao recurso previsto em lei, o que é razoável. Se partisse para condenação do Estado por decisão judicial errônea por não ter aplicado corretamente o direito material vigente ficaria, de fato, cerceada a liberdade do magistrado, tendo em vista a previsão de ação regressiva em hipótese de dolo ou culpa. É fácil de identificar a hipótese de dolo, mas no caso de culpa nem sempre é possível afirmar com certeza se o agente agiu com culpa ou não.
Contudo, a história registra pelo menos um caso de condenação do Estado proferido mediante aplicação do direito material. Referimo-nos ao caso dos irmãos Naves, residentes em Araguari, no Triângulo Mineiro, injustamente condenados pelo Tribunal mineiro depois de duas vezes absolvidos pelo Tribunal do Júri local. Ambos obtiveram direito à indenização que não chegaram a usufruir. Um deles morreu prematuramente em função dos maus tratos infringidos na prisão. Hoje, a responsabilidade do Estado de indenizar o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença está expresso no art. 5º, inciso LXXV da Constituição de 1988.
Por fim, transcreve-se a sentença proferida pelo juiz federal da 26º Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal que responsabilizou o juiz Titular da 21ª Vara do Trabalho de Brasília/DF,pela conduta dolosa ou culposa, independentemente de expressa previsão legal. O julgado a seguir transcrito é rico em ilustrações jurisprudências a respeito:
PROCESSO Nº 0004734-47.2019.4.01.3400
AUTOR: GUSTAVO MUNIZ LAGO
RÉU: UNIAO FEDERAL
SENTENÇA TIPO: A
SENTENÇA
I – RELATÓRIO
Trata-se de ação de indenização por danos morais contra a UNIÃO FEDERAL, por ato do Juiz Titular da 21ª Vara do Trabalho de Brasília/DF.
Aduz, em síntese, que o magistrado obstaculizou dolosamente o exercício profissional do autor como advogado nos autos do processo n. 0001607-88.2017.5.10.0021, negando-lhe a habilitação no processo pelo sistema Pj-e; (ii) caluniou o autor nos autos do processo supramencionado, imputando-lhe falsamente conduta criminal; (iii) agiu de forma intimidatória, utilizando-se da função pública para diminuir a capacidade de resistência do autor submetendo-o a constrangimentos morais.
Citada, a União pugnou pela improcedência dos pedidos.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Da impugnação ao pedido de assistência judiciária gratuita
Rejeito a alegação de impossibilidade de concessão da justiça gratuita, pois o Código de Processo Civil, em seu art. 99, assim dispõe:
Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.
§ 1º Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso.
§ 2º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos. 26ª Vara – Juizado Especial Federal FF32C3633B3BCCCF5C4EB8AAD2CB4009p. 2
§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.
Portanto, tendo a parte autora cumprido a exigência legal, não há razão para negar-lhe o benefício da assistência judiciária gratuita. Ademais, compete à parte adversa comprovar a inexistência ou o desaparecimento do estado de miserabilidade jurídica, o que não ocorre na espécie. Nesse sentido: REsp 473.617/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Quarta Turma, julgado em 02/12/2003; REsp 119970/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 07/10/2010, DJe 25/10/210; AgRG no REsp 1.047.861.
MÉRITO
Inicialmente, é relevante ressaltar que os fatos narrados na petição inicial estão todos demonstrados pela documentação anexada aos autos, especialmente a circunstância de que o cadastro do autor no processo via sistema PJE, indispensável ao exercício do seu mandato, foi injustificadamente indeferido.
Note-se que o autor foi regularmente constituído para atuar na defesa do seu cliente, conforme procuração acostada aos autos, sendo manifestamente desarrazoado o indeferimento do pedido de habilitação do advogado sob alegação de que a parte não pode revogar o mandato do advogado originalmente constituído e que o novo causídico precisaria necessariamente do substabelecimento da advogada anterior.
Dispõe o artigo 11 do Código de Ética e Disciplina da OAB, verbis:
Art. 11. O advogado não deve aceitar procuração de quem já tenha patrono constituído, sem prévio conhecimento deste, salvo por motivo justo ou para adoção de medidas judiciais urgentes e inadiáveis.
No caso dos autos, o cliente enviou telegrama à sua antiga advogada (fl. 31/32 da DOCUMENTAÇÃO I) revogando expressamente seus poderes, bem como apresentou Declaração de Revogação e Cancelamento de Procuração Particular nos autos (fl. 34 da DOCUMENTAÇÃO I), o que demonstra o interesse em constituir novo causídico para prosseguimento do feito.
Ora, a própria advogada renunciou expressamente ao seu mandato nos autos por meio de petição (fl. 35/36 da DOCUMENTAÇÃO 26ª Vara – Juizado Especial Federal FF32C3633B3BCCCF5C4EB8AAD2CB4009p. 3 I), não havendo justificativa para o acolhimento do pedido de desistência formulado pela causídica, sem o consentimento do cliente.
Diante de tal circunstância, após interposição de recurso pelo reclamante, dessa feita, representado pelo autor, a sentença homologatória de desistência foi anulada pelo Tribunal Regional do Trabalho, determinando-se o prosseguimento do feito.
Conforme decisão proferida no processo 0001607- 88.2017.5.10.0021 (decisão fls. 24/40 da documentação inicial), os elementos dos autos comprovam de forma robusta que o pedido de desistência da ação assinado pela Advogada anteriormente constituída pelo Reclamante foi realizado contra a vontade do Autor e, ainda, depois de troca de mensagem eletrônica entre eles em que ambos manifestaram interesse em não mais manter relação profissional, tendo o Reclamante expressamente revogado os poderes conferidos à referida Advogada.
Ressaltou-se, ainda, que conforme a OJ-SDI1-349, “A juntada de nova procuração aos autos, sem ressalva de poderes conferidos ao antigo patrono, implica revogação tácita do mandato anterior”.
Assim, plenamente compreensível a insistência do advogado em se cadastrar no processo, uma vez que sua atuação dependia da habilitação nos autos, inclusive para dar prosseguimento ao feito, sendo, portanto, pertinentes os seus requerimentos. Tanto é que, nos autos do Mandado de Segurança impetrado pelo autor (ao ser proferida a decisão no agravo interno interposto), bem como nos autos do processo correicional do autor (Pedido de Correição Parcial n.º 0000348-87.2018.5.10.0000), determinou-se a habilitação e o cadastro do autor no processo via sistema PJE, conforme vinha requerendo.
Diante do acima exposto, não vislumbro a ocorrência de coação por parte do autor, conforme mencionada pelo Juiz no despacho proferido (fls. 15/16 da documentação inicial), que determinou a expedição de ofício à OAB/DF para apuração dos fatos, sendo desarrazoada e injustificada a negativa do cadastro.
Dito isso, só resta indagar se incide sobre a União, diante das peculiaridades do caso concreto, o disposto no § 6º do artigo 37 da Constituição de 1988, ou seja, se, no caso concreto, a União tem o dever de indenizar o autor pelos danos que lhe foram causados por conduta do Poder Judiciário. 4 Sempre analisei tal tema sob o prisma da natureza jurídica do ato que gerou dano e não, de forma isolada, sob o enfoque da natureza do órgão que o perpetrou ou de sua licitude.
Em sendo assim, não se pode confundir atos do Poder Judiciário com atos jurisdicionais típicos.
A teoria da irresponsabilidade estatal em virtude de danos provocados por atos jurisdicionais típicos giram em torno não da licitude dos atos ou da soberania de que dispõe o Poder Judiciário, visto que todos os atos do Poder Público são praticados sob a égide da soberania estatal.
Em realidade, o processo judicial faz parte da dinâmica da vida em sociedade e as causas judiciais podem levar ao sucesso ou ao insucesso de uma tese jurídica posta ao julgamento dos órgãos jurisdicionais. Por outro lado, conforme exposto anteriormente, é preciso, antes de tudo, analisar a natureza jurídica do ato que gerou o dano alegado pela parte autora.
Sob tais diretrizes, não tenho dúvidas de que o indeferimento do cadastro de advogado devidamente constituído por procuração nos autos do processo não é um ato jurisdicional típico, mas um ato materialmente administrativo praticado pelo Poder Judiciário.
Se foi fruto de um erro, então ingressamos no terreno binário dos erros passíveis de serem praticados pelo Poder Judiciário: o error in iudicando (em regra, erro na aplicação do direito material) e o error in procedendo (em regra, erro na aplicação da lei processual.
Assim, não se tem dúvidas de que o ato judicial mencionado configura um “error in procedendo”, suscetível de indenização, porquanto ostenta natureza materialmente administrativa, nos termos do § 6º do artigo 37 da CF/88.
[…]
DISPOSITIVO
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE EM PARTE o pedido para condenar a União a pagar à parte autora a quantia de R$ 7.500,00 (sete mil e quinhentos reais), a título de danos morais com correção monetária e juros, calculados nos termos do Manual de Cálculos da Justiça Federal e da Súmula 362 do STJ (“A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”).
Sem custas ou honorários advocatícios neste primeiro grau de jurisdição, à vista do disposto no art. 55 da Lei nº 9.099/95 c/c art. 1º da Lei nº 10.259/01. Deferida a assistência judiciária gratuita. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Brasília-DF, 17 de outubro de 2019.
MÁRCIO BARBOSA MAIA Juiz Federal da 26ª Vara/SJDF.
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