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O professor Hugo leu um livro falsificado!
Hugo de Brito Machado Segundo
04/02/2021
Na segunda metade do século passado, notadamente entre os anos 70 e 80, havia grande controvérsia em torno da taxatividade ou não da lista de serviços anexa ao Decreto-Lei 406/68 (hoje Lei Complementar 116/2003). Trata-se de uma lista dos serviços passíveis de tributação pelo imposto, de competência dos municípios e do Distrito Federal, incidente sobre serviços de qualquer natureza (ISS).
Esse foi o contexto em que, em um seminário de Direito Tributário havido no período, debatiam, em uma mesa voltada ao tema, o professor Geraldo Ataliba e o professor Hugo de Brito Machado, pai de quem escreve estas linhas. Eles defendiam posições contrárias relativamente à apontada questão jurídica.
Para Ataliba, a lista de serviços seria meramente exemplificativa, por uma razão clara. Os municípios são entes federativos cuja competência decorre diretamente do texto constitucional. Os tributos que podem e que não podem validamente instituir são aqueles indicados pela Constituição. Seria absurdo, nessa ordem de ideias, pretender que uma lei editada pela União (o Decreto-Lei 406/68, ou hoje a LC 116/2003) pudesse limitar — pela omissão, ao deixar de arrolar na lista — os serviços passíveis de tributação por outros entes federativos. E se a lista indicasse apenas um serviço, como o odontológico, ou o de construção civil, omitindo-se sobre todos os outros? Estaria inviabilizada a competência dos municípios?
Hugo Machado pensava diferente. Para ele, conquanto os municípios sejam entes federativos autônomos, cuja competência decorre diretamente do texto constitucional, como corretamente ensinava o professor Ataliba, não se pode esquecer, de outro lado, que a Constituição atribui à lei complementar o papel de dirimir conflitos de competência (atualmente, artigo 146, I, da CF). Ou seja, as competências que a CF atribui correm o risco de se sobrepor, o que é factualmente verificável, mas juridicamente inaceitável. Daí a necessidade de a lei complementar estabelecer critérios que dirimam tais conflitos. Ao fazê-lo, será inevitável interferir de algum modo no traçado dessas competências, que do contrário conflitariam, interferência que seria admissível constitucionalmente desde que o critério não implique favorecimento de um ente em detrimento de outro, por levar a uma compressão desproporcional de uma das competências envolvidas no conflito que se quer evitar.
O Supremo Tribunal Federal tem diversos precedentes que autorizam essa conclusão, quanto ao referido papel da lei complementar, inclusive posteriores à Constituição de 1988, que reforçou a autonomia de entes federativos periféricos e expressamente veda a concessão de isenções heterônomas (artigo 151, III). Ao apreciar leis estaduais que instituíram o adicional estadual do Imposto de Renda, por exemplo, o STF entendeu que a falta da lei complementar para dirimir conflitos de competência inviabilizaria a própria instituição do imposto, por lei estadual (ADI 627/PA), apesar do que consta do artigo 24, §3º, da CF/88, segundo o qual “inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”. O mesmo decidiu o STF, em matéria de ICMS incidente sobre transporte aéreo de passageiros (ADI 1.600/DF), embora, misteriosamente, o critério tenha sido outro em se tratando de transporte terrestre (ADI 2.669/DF).
E o que isso tem a ver com o ISS e a taxatividade da lista?
É que existe um ponto de muitos conflitos de competência entre Estados e municípios no que tange ao Imposto Sobre Serviços (ISS) e ao imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS). São as operações mistas, assim entendidas aquelas nas quais se presta um serviço com a utilização de mercadorias fornecidas ao tomador quando da prestação.
Basta pensar no cidadão que leva seu carro à oficina mecânica, para submetê-lo a um conserto em que se trocam algumas peças. Ou no dentista que, ao realizar um tratamento ortodôntico, fornece peças do aparelho correspondente ao seu paciente. Incide ISS porque se trata de serviço? ICMS porque há fornecimento de mercadorias? Ambos?
O critério escolhido pelo legislador complementar foi o de que, se o serviço estiver descrito na lista anexa à lei complementar de normas gerais sobre ISS, incidirá apenas o ISS sobre o valor total da operação. Se ele não estiver descrito, incidirá apenas o ICMS sobre o valor total da operação. E, se ele estiver previsto, mas a lista expressamente indicar a incidência de ambos, o ISS será devido sobre a mão de obra e o ICMS sobre as mercadorias, que deverão ser apartados para fins de cálculo (LC 116/2003, artigo 1º, §2º; LC 87/1996, artigo 2º, IV e V). É o que se dá, inclusive, no citado exemplo das oficinas mecânicas (item 14.01 da lista anexa à LC 116/2003): a mão de obra se sujeita ao ISS e as peças substituídas na manutenção, ao ICMS.
Não é preciso detalhar mais o critério apontado, que dá cumprimento ao que exige o artigo 146, I, da CF/88, para entender que ele só funciona se a lista de serviços for taxativa. Entendida a lista como exemplificativa, o critério não faz sentido algum. Esse era o argumento de Hugo de Brito Machado para expor tese contrária à de seu professor e amigo Geraldo Ataliba.
Mas o que isso tem a ver com o título deste artigo?
É que, ao defender sua posição, o professor Ataliba destacou que a defesa de ponto de vista contrário significaria não saber ler a Constituição, na qual estaria consagrada a autonomia dos municípios, incompatível com a definição, em lei federal, do que poderia ser por eles tributado. Quando lhe foi dada a palavra, em seguida, o professor Hugo defendeu os fundamentos de sua posição, acima resumidos. Sobre isso implicar não saber ler a Constituição, retrucou ao mestre que realmente poderia ser o seu caso, mas não o de Aliomar Baleeiro, em cujo livro se poderia ler a defesa da mesma ideia. Baleeiro, como se sabe, foi constituinte em 1946, e também ministro do STF, além de autor de obras de destaque, respeitado por todos, sobretudo pelo professor Geraldo Ataliba, que, ao ouvir essa remissão, não se conteve. Pegou novamente o microfone e atalhou:
“— Hugo, você leu um livro falsificado! Baleeiro nunca escreveu isso!”.
A plateia riu, surpresa com o argumento inusitado. E o professor Hugo, sem saber o que dizer, apenas terminou sua palestra, expondo as razões de seu ponto de vista. Insistiu que se trata de forma para dirimir conflitos de competência entre ISS e ICMS, dando cumprimento a outra norma, também da Constituição, que confere esse papel à lei complementar. Se o critério de solução do conflito escolhido pelo legislador for demasiadamente prejudicial a um ente, em favor de outro, pode ser questionada a sua validade, mas não seria esse o caso da taxatividade de uma lista bastante extensa, que procura abarcar praticamente tudo. Outras palestras se sucederam, sobre temas diversos, os professores em seguida foram confraternizar em um bom restaurante, e não se tocou mais no assunto.
Mas, terminado o evento, já no avião, de volta a Fortaleza, o professor Hugo não tirava aquela frase da cabeça. Livro falsificado? Logo depois, chegando à sua biblioteca, correu para folhear o exemplar no qual lembrava ter lido sobre a taxatividade da lista. Estaria enganado? Teria feito confusão quanto ao autor em que vira a afirmação?
Diante do mais novo exemplar que possuía do “Direito Tributário”, de Baleeiro, passou a palma das mãos sobre a capa e a contracapa, abriu e examinou a encadernação, com alguma incredulidade, como quem confere a autenticidade de bolsas italianas ou relógios suíços oferecidos por preços estranhamente baixos. Estava lá a posição de Baleeiro. Mas… seria falsificado o livro? Como assim?
Prosseguindo no exame do exemplar que tinha em mãos, capa, contracapa, folha de rosto… voilá! A solução para o enigma surgiu-lhe evidente: Ataliba referia-se ao fato de que o livro de Baleeiro vinha sendo reeditado com notas de atualização, feitas depois de sua morte. O professor Flávio Bauer Novelli vinha mantendo o livro de Baleeiro em dia, e também tinha posição pessoal pela taxatividade da lista. O que Ataliba havia sugerido, muito provavelmente, era que Novelli havia inserido no livro sua posição pessoal, que não seria a de Baleeiro. Teria faltado ao professor Hugo atenção para diferenciar a posição do autor e a do atualizador.
Hugo Machado iniciou, então, uma pesquisa em edições anteriores do livro, publicadas quando Baleeiro ainda vivia. E viu que nelas já constava a remissão ao fato de ser a lista taxativa. Tratava-se, em suma, do pensamento de Baleeiro, não de algo inserido posteriormente em notas de atualização. Aliás, os atualizadores da obra de Baleeiro (Novelli, Dejalma de Campos, Misabel Derzi e, por ironia do destino, mais de três décadas depois desse episódio, também o autor destas linhas, que põe em dia o “Uma Introdução à Ciência das Finanças”) sempre tiveram e seguem tendo o cuidado de separar as notas de atualização e o pensamento do autor.
Mas nós, adultos, somos — felizmente — só crianças grandes. Como escreveu Heráclito, em passagem que há uns meses transcrevi para uma pessoa muito querida que nela também se encaixa, o ser humano “só se aproxima do seu eu verdadeiro quando atinge a seriedade de uma criança que brinca”. Tudo isso para dizer à leitora que a história não acabou aí: a partir de então, sempre que estava em um evento acadêmico, presentes vários autores de livros jurídicos, o professor Hugo procurava observar se o professor Ataliba estaria presente, com algum outro autor a conversar com ele, nos intervalos entre as palestras. Em seguida, investigava se haveria, à venda nos estandesque os livreiros geralmente montam em eventos assim, obras daquele autor envolvido na conversa. Confirmada essa situação, mesmo que já possuísse o livro, adquiria novo exemplar e, pedindo licença por interromper a conversa do autor com Ataliba, dizia:
“— Professor, desculpe interromper a conversa de vocês. Acabei de comprar seu livro! O senhor poderia autenticar para mim, por favor?
— Claro, Hugo! Uma dedicatória? Com prazer! Mas… O que você disse? Autenticar? Como assim?
— É, autenticar.
— Autenticar?!
— É… Para, quando eu citar, ninguém dizer que é falsificado!!!”
Apesar de essa última frase ser pronunciada com o tom, o timbre e o volume próprios do professor Hugo (quem já assistiu às suas aulas e palestras sabe do que se trata), Ataliba fingia não entender o que se passava, ficando só a alisar as pontas do farto bigode, bem sério, enquanto esperava seu interlocutor concluir o autógrafo para retomarem o diálogo.
Essa foi a explicação que recebi quando, ainda na graduação, questionei a presença de alguns livros repetidos na biblioteca de meu pai, inclusive das mesmas edições, vários deles autografados, relato que compartilho aqui para realçar o aspecto pitoresco, pessoal, já histórico, e mesmo lúdico, subjacente a essa importante questão de Direito Tributário. Recentemente, a propósito, seguindo a ideia da taxatividade, o legislador editou a LC 157/2016 para que na lista se passasse a fazer alusão a novas realidades, como a elaboração de aplicativos para smartphones e tablets, a computação em nuvem, a colocação de piercings e o transporte intramunicipal de passageiros por aplicativos.
Conheça aqui os livros do autor!
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