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TRIBUTÁRIO
O tributo devido como elemento do tipo nos crimes contra a ordem tributária
Hugo de Brito Machado
13/05/2016
1. INTRODUÇÃO
Motivados pela leitura do parecer do Chefe do Ministério Público Federal na Reclamação nº 16.087/SP, junto ao Supremo Tribunal Federal, voltamos a abordar o tema relativo à necessidade de prévio exaurimento da via administrativa para viabilizar a propositura da ação penal por crime contra a ordem tributária.
Não o fazemos por nenhum interesse profissional, nem por simples vaidade pessoal, mas pelo desejo sincero de contribuir, ainda que modestamente, para o equacionamento adequado da questão, pois nos parece que admitir a ação penal por crime contra a ordem tributária constitui um grave equívoco que pode levar a consequências verdadeiramente absurdas, como a de ver como réu em ação penal quem nada deve ao fisco. Ver colocado como réu uma pessoa que a própria Administração Tributária afirma não lhe dever nenhum centavo.
Temos grande respeito e admiração pelos que exercem a nobre e importante função de Ministério Público, e por isto mesmo nos causa constrangimento ao ver que, ao tentarem defender o interesse público, adotam tese jurídica equivocada. Queremos contribuir, ainda que modestamente, para afastar os equívocos albergados pela tese jurídica equivocada que parece dominar o Ministério Público Federal, como se vê do parecer acima mencionado. Assim, vamos analisar cuidadosamente, um por um, todos os seus fundamentos.
Começaremos examinando a alegada violação da teoria da atividade, para em seguida examinarmos a suposta vinculação do Poder Judiciário a uma decisão administrativa. Depois examinaremos a questão do tributo devido como elemento do tipo penal, e em seguida o problema do prazo prescricional. Em seguida estudaremos a relativização da Súmula Vinculante 24 e depois a questão das medidas cautelares para apuração dos crimes tributários. Mais adiante examinaremos a questão da apuração do fato criminoso mediante inquérito e em seguida a alegada desproteção do bem jurídico tutelado para, finalmente, firmarmos nossas conclusões.
2. VIOLAÇÃO DA TEORIA DA ATIVIDADE
Como primeiro fundamento, o referido parecer do Senhor Procurador Geral da República coloca a teoria da atividade, afirmando:
“A Súmula Vinculante 24 contraria frontalmente o disposto no art. 4º do CP, que adotou a denominada Teoria da Atividade, a qual considera “praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.” Portanto, o crime se consuma com a ação (no caso, necessariamente comissiva de supressão ou redução (caput do art. 1º) de tributo mediante alguma conduta, fraudulenta ou não, prevista nos incisos do art. 1º da Lei nº 8.137/1990.”
E concluindo o que denominou de primeiro fundamento, o mencionado parecer assevera:
“Mantida a interpretação de que o crime somente existe com o lançamento tributário, as consequências podem ser nefastas inclusive para o réu. Mesmo que praticada a ação ou a omissão em data cuja pena seja “X”, mas exaurida e esfera administrativa ulteriormente (momento da ocorrência do crime para o STF em face da Súmula Vinculante 24), em que a pena possa ser “X+1” (pena maior), deverá ser esta nova pena (mesmo que mais grave) a aplicável. É a incidência do postulado do tempus regit actum diante da interpretação que deu o STF a respeito de quando existe crime na situação analisada.”
Ocorre que, embora uma interpretação literal da Súmula Vinculante nº 24, do Supremo Tribunal Federal, possa dar margem a essa argumentação, na verdade a referida Súmula Vinculante não coloca nessa disputa uma questão temporal. Não se trata de aguardar o resultado da conduta, mas de saber se tal resultado efetivamente ocorreu. Não se trata de uma questão temporal, como à primeira vista pode parecer, e sim de uma questão inerente ao conceito jurídico de tributo.
A verdadeira questão consiste em saber se o fato apontado como resultado da conduta imputada ao contribuinte consubstancia, ou não, supressão ou redução de tributo devido. Em outras palavras, a verdadeira questão consiste em saber se os fatos efetivamente ocorridos correspondem, ou não, ao que está na lei definido como elemento típico do crime em estudo.
3. VINCULAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO A UMA DECISÃO DE CUNHO ADMINISTRATIVO.
O segundo fundamento do questionado Parecer do Chefe do Ministério Público Federal consiste em dizer que a Súmula Vinculante 24, do Supremo Tribunal Federal, consubstancia uma vinculação do Poder Judiciário a uma decisão de cunho administrativo.
O eminente Procurador Geral da República sustenta que
“… os precedentes do Supremo Tribunal Federal que redundaram na Súmula Vinculante 24 são bastante enfáticos no reconhecerem que a definição se há ou não tributo (embora na grande maioria das vezes se fale em crédito tributário, que é algo tecnicamente diverso de tributo) seria atribuição exclusiva da administração, e o Poder Judiciário ficaria vinculado àquela decisão, ou seja, definir se há ou não um elemento (objetivo) do crime é atribuição de um órgão fora do Poder Judiciário.
Tecnicamente, não pode haver uma relação de causa e efeito entre a decisão administrativa e a ação penal pelos fatos correlatos. No máximo, as provas produzidas na esfera administrativa podem servir como mais alguns elementos para a decisão por quem tem o poder de resolver a questão: O Poder Judiciário. Até porque as provas produzidas no âmbito administrativo são, muitas vezes, diversas daquelas apuradas em sede criminal.
Aqui, mais um paradoxo: enquanto a discussão administrativa barra a ação penal ou a investigação criminal, a discussão em sede judicial pode (dependendo do caso) apenas impedir o regular andamento da ação penal. Vale mais uma decisão administrativa a uma decisão judicial.
Com efeito, e respeitosamente, não se pode considerar que as provas sobre a existência de crime tributário material sejam apenas aquelas relacionadas com o procedimento de constituição do crédito tributário.
A imposição do comando inserto na súmula em tela, tal como disposta hoje, implica malferimento ao disposto no art. 5º, XXXV, da CF/88.” [1]
E adiante, depois de transcrever diversas manifestações do Supremo Tribunal Federal, assevera o Parecer em referência:
“De fato, não pode haver a subordinação da instância judicial (inclusive a apuração por outros meios legais, como o próprio inquérito policial) ao que apurado exclusivamente na esfera administrativa, muito menos diante de eventual inação da autoridade própria se houver elementos suficientes para demonstrar a materialidade da supressão ou redução tributárias por outros meios que não apenas procedimento de lançamento tributário.
Outra inarredável consequência é que a definição do que (conduta) se transformará em crime fica ao alvedrio da seleção (discricionária) da administração, bem assim ao momento em que isso ocorrerá.” [2]
Como se vê, com o devido respeito, o equívoco do eminente Procurador Geral da República é evidente.
Em primeiro lugar, porque o enunciado da Súmula Vinculante nº 24 não implica malferimento ao disposto no art. 5º, XXXV, da CF/88, pois não exclui da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Na verdade, a Administração Pública tem o direito de cobrar o tributo que entende ser devido ao Estado. O que a Súmula Vinculante exige é que ela, a Administração, diga ter havido lesão a esse seu direito, e não é razoável admitir-se que o Ministério Público possa provocar o Poder Judiciário a proteger um direito, antes que a própria Administração Pública, indiscutivelmente presenta o Estado na condição de titular do poder de tributar e tem, por isto mesmo, a incumbência de lançar e obrar o tributo, diga da existência deste, e da conduta ilícita que o suprime ou reduz.
Em segundo lugar, porque não se trata de vincular o Judiciário a uma decisão de cunho administrativo. Ocorre é que não compete ao Judiciário, nem ao Ministério Público, a tarefa de lançar e cobrar tributo. Essa tarefa compete privativamente à autoridade da Administração Pública.
Compete ao Poder Judiciário a solução dos conflitos submetidos a sua apreciação, e ao Ministério Público, “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” [3]
O Poder Judiciário não tem competência para lançar nenhum tributo. Por isto mesmo, ele não pode dizer que ocorreu supressão de TRIBUTO quando a própria Administração Publica, representada pela autoridade administrativa competente, no exercício regular de seu poder-dever, diz que o tributo não existia.
E quando ocorre o descumprimento do dever legal por parte da autoridade administrativa, o Ministério Público tem o dever de agir contra ela, na defesa da ordem jurídica, para que, uma vez restabelecida a ordem jurídica, inclusive com as consequências do não cumprimento de seu poder dever por parte da autoridade administrativa, seja afirmada pela autoridade competente a existência de supressão ou redução de tributo, a ensejar a ação do Ministério Público contra o contribuinte responsável por tal ilícito.
4. O TRIBUTO COMO ELEMENTO DO TIPO
Afirma também o eminente Procurador Geral da República, no parecer em exame, que ao editar a Súmula Vinculante 24 o Supremo Tribunal Federal considerou que o “crédito tributário” seria elemento do tipo. E assevera:
“Houve nítida violação do disposto no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, que dispõe que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação.”
Segundo referido dispositivo, somente a lei pode definir (de forma limitada e objetiva) o que é um delito.
Efetivamente, a Súmula alterou o conteúdo e a estrutura típica do delito, pois, em nenhum momento, a lei fala em “crédito tributário”, mas em “tributo.”
Ocorre que a Súmula Vinculante 24 não coloca o crédito tributário como elemento do tipo penal em exame, vale dizer, do tipo penal do crime de supressão ou redução de tributo. Não modificou de nenhum modo a definição do tipo penal em tela. Não viola, não está em conflito, com o disposto no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação. Os crimes contra a ordem tributária estão definidos em lei, que lhe comina a penalidade correspondente.
O elemento essencial do tipo penal em exame é tributo, e o que a Súmula Vinculante 24 afirma, com inteira propriedade, é que não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo. Em outras palavras, o que a Súmula Vinculante 24 afirma é que a competência para dizer que a conduta delituosa suprimiu ou reduziu um tributo é da Administração Tributária.
É indiscutível que só pode ser suprimido, ou reduzido, o que existe. E como em nosso ordenamento jurídico pertence ao Poder Executivo, e especificamente à denominada Administração Tributária, a competência para dizer da existência do tributo e fazer a correspondente cobrança, é evidente que à Administração Tributária pertence a competência para afirmar a presença desse tipo penal.
5. O PRAZO PRESCRICIONAL
O parecer em exame, do douto Procurador Geral da República, assevera que a aplicação da Súmula Vinculante 24, do Supremo Tribunal Federal, cria problemas no que diz respeito à prescrição. Alega que a delegação para a aferição da existência ou não do crime ao setor da administração fazendária gerou um grave problema jurídico:
“… de um lado, passados cinco anos para a constituição do crédito tributário, não se pode mais apurar o crime, que, de acordo com a legislação em vigor, prescreve em doze anos. De outro lado, se houver a constituição do crédito tributário (que não é elemento do tipo, e sim o tributo) no prazo de até cinco anos, o prazo prescricional poderá atingir até 22 anos (5 anos para a constituição do crédito, 5 anos para discussões administrativas e mais 12 anos, que é o prazo regular previsto no Código Penal).” [4]
E no final dessa parte de seu parecer, o Procurador Geral da República afirma:
“Em síntese, por interpretação judicial que gerou a edição da Súmula Vinculante alterou-se o prazo prescricional, que varia de acordo com a eventual atuação apenas da autoridade administrativa, porém jamais se identifica com o prazo estipulado no Código Penal.
Também houve modificação substancial das hipóteses em que a prescrição pode ser contabilizada nos moldes do art. 115 do CP, gerando situações mais gravosas aos réus.” [5]
A rigor, porém, a Súmula Vinculante 24 não implica alteração de nenhum prazo prescricional. Nem implicou nenhuma hipótese de suspensão da prescrição. A única mudança introduzida com a referida Súmula Vinculante diz respeito ao início do prazo prescricional, e isto por uma razão, aliás muito simples, conhecida de qualquer pessoa com medianos conhecimentos jurídicos. Essa razão consiste em que a prescrição não começa a correr se ainda não é possível a propositura da ação à qual diz respeito. Assim, se não é possível a propositura da ação penal por crime de supressão ou redução do tributo antes da manifestação final da autoridade administrativa, evidentemente a prescrição só começa a correr a partir da data em que ocorre tal manifestação. E continua a ser de 12 anos, como estabelece o Código Penal.
Afirmamos, pois, com absoluta segurança, que a Súmula Vinculante 24 não causou nenhum problema, nem alterou nenhum prazo, relativamente à prescrição.
6. RELATIVIZAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE 24
No parecer em exame, o eminente Procurador Geral da República aponta situações nas quais o próprio Supremo Tribunal Federal relativizou a regra da Súmula Vinculante 24. É evidente, porém, que o fato de a regra da mencionada súmula comportar relativização não a invalida.
Aliás, existem mesmo certas situações de fato que demonstram a ocorrência de supressão ou redução de tributo, e em tais situações realmente se mostra desnecessário aguardar o julgamento administrativo para se saber que o tipo penal efetivamente materializou-se.
A este propósito, veja-se o que afirmou o Ministro Marco Aurélio, como destaca o próprio parecer em exame:
“Tenho votado quanto à necessidade de esgotar-se o meio administrativo, de formalizar-se o processo administrativo-fiscal, mas, no caso, existe situação peculiar; houve apreensão de notas fiscais frias. Não se trata de insuficiência de recolhimento de tributo, quando essa insuficiência deve estar demonstrada no campo administrativo.”
Todo o problema está na confusão feita pelos que sustentam a tese do parecer. Na verdade a questão não está em saber QUANDO o delito ocorre. A questão está em saber o que é tributo. E como cabe à Administração dizer o que é o tributo devido, nas situações nas quais o contribuinte sustente que não suprimiu tributo, faz-se necessário aguardar a decisão administrativa.
7. MEDIDAS CAUTELARES PARA APURAÇÃO DOS CRIMES TRIBUTÁRIOS.
O eminente Procurador Geral da República sustenta ainda, no parecer em exame, que em face do enunciado da Súmula Vinculante nº 24 seria impossível a utilização de medidas cautelares para a produção de provas de crimes tributários. Em suas palavras:
“Em razão do entendimento consolidado na Súmula Vinculante 24, encontram-se vários precedentes no sentido de que seria inviável a utilização (mesmo em situações excepcionais) de medidas cautelares para a produção de provas de crimes tributários, tais como buscas e apreensões ou interceptações telefônicas, normalmente realizadas no âmbito de inquéritos policiais, como no caso em tela.
O argumento utilizado para a conclusão nesse sentido é que como o crime material de sonegação fiscal só existe com o exaurimento da esfera administrativa, seria absolutamente ilegal e inconstitucional lançar mão (mesmo que demonstrados os indícios da prática de crime e os demais requisitos abstratos das medidas) de buscas e apreensões, interceptações telefônicas ou outros meios cautelares de produção probatória.
Com efeito, as medidas cautelares são essenciais – quando demonstradas suas imprescindibilidades – para demonstrar exata e notadamente a materialidade e autoria dos crimes.
Em razão da adoção do silogismo retromencionado, há inúmeros precedentes jurisprudenciais – derivados da compreensão do comando da Súmula Vinculante 24 – no sentido de que se não há materialidade do crime (que é o que exatamente quer se apurar, inclusive por intermédio do lícito procedimento de inquérito policial, insiste-se), pois ele só existiria com o exaurimento da esfera administrativa, ilícitas seriam as medidas anteriores de investigação.” [6]
Trata-se, também neste ponto, dava máxima vênia, de argumento absolutamente desprovido de fundamento, que resulta da falta de compreensão adequada do próprio conteúdo da Súmula Vinculante 24. Na verdade quando esta afirma que não se tipifica crime material contra a ordem tributária , previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo, não coloca em questão fatos, em sua faticidade, mas o significado jurídico de fatos. Saber se um fato ocorreu, ou não, é uma coisa, e saber se tal fato, tendo ocorrido tem o efeito jurídico de fazer nascer uma obrigação tributária, é coisa diversa. A falta de compreensão da diferença, que existe, entre o fato e o seu significado jurídico, infelizmente tem causado muitas incompreensões em temas jurídicos, sendo a de que aqui se cuida apenas um exemplo.
É possível, sim, medida cautelar para a produção de provas na investigação da ocorrência, ou não de crimes tributários É que a cautelar diz respeito a elementos fáticos, sendo sempre possível. E não ao significado jurídico de fatos.
8. APURAÇÃO DO FATO CRIMINOSO MEDIANTE INQUÉRITO
Sustenta, ainda, o eminente Procurador Geral da República, no parecer em exame, que a Súmula Vinculante 24 impede a apuração de fato criminoso enquanto não exaurida a esfera administrativa. Neste sentido, escreve:
“Com as venias de estilo, a situação implica verdadeira restrição à apuração dos fatos criminosos em prol de uma única autoridade – Receita Federal – que, muitas vezes não realiza as apurações, mesmo que por solicitação expressa de outros órgãos, ao fundamento exclusivo de ausência de conveniência por razões tributário-econômicos ou então em face de dificuldades estruturais.” [7]
E cita alguns precedentes que afirmam a impossibilidade de apuração em inquérito policial ou outro meio de investigação, afirmando em seguida:
“Ora, qualquer procedimento investigatório tem a finalidade de apurar conduta criminosa (sonegação, mediante a supressão ou redução de tributos), que não pode ser condicionada a uma questão a ser dirimida unicamente na seara administrativa, que, na linha da SV 24, tem o poder único de dizer sobre a ocorrência dos crimes (tipicidade).” [8]
Como se vê, o eminente Procurador Geral da República não distingue o fato, como algo do mundo fenomênico, do significado jurídico do fato. É evidente que somente a autoridade da Administração Tributária tem a atribuição de dizer o significado jurídico tributário do fato, vale dizer, a competência para dizer se a ocorrência de um fato tem como efeito o nascimento do dever de pagar tributo.
Por outro lado, ao afirmar que não se tipifica crime material contra a ordem tributária , previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo, a Súmula Vinculante 24 não impede, de modo nenhum, que o Ministério Público determine a investigação que entender necessária à apuração de omissão da autoridade administrativa que a qualquer pretexto deixe de realizar a atividade administrativa necessária à constituição e cobrança dos tributos. Aliás, a própria Lei nº 8.137/90 estabelece meios para esse fim, como veremos no item seguinte deste estudo.
9. DESPROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO TUTELADO
Por último, como oitavo fundamento de seu parecer, o eminente Procurador Geral da República faz referência a algumas leis que concederam parcelamentos de dívidas tributárias e trataram do momento do pagamento para que este tenha o efeito de extinguir a punibilidade relativamente ao crime de supressão ou redução do tributo.
A seu ver, “essas regras não servem como forma de incrementar eventualmente a arrecadação tributária espontânea.” Elas teriam, isto sim, o efeito contrário, de estimular o aumento de práticas criminosas, ocorrendo o chamado efeito espiral.
Na verdade os sucessivos parcelamentos a nosso ver contribuem para que o contribuinte não recolha normalmente os tributos devidos. Isto, todavia, não que dizer que esses contribuintes estejam praticando o crime de supressão ou redução de tributo, pois o simples não pagamento do tributo não é crime. O crime consiste na prática de uma das condutas legalmente descritas na Lei nº 8.137/90, da qual decorre de algum modo a ocultação do fato de cuja ocorrência nasce o dever de pagar o tributo. Ou na omissão de conduta que caracterize o inadimplemento fraudulento de obrigação tributária acessória.[9] Em qualquer caso cabe à Administração Pública agir para verificar a ocorrência de fatos dos quais decorre o dever tributário não cumprido.
Assim, se cabe à Administração, vale dizer, ao Poder Executivo, verificar a ocorrência de fatos dos quais decorre o dever tributário não cumprido, e ocorre omissão da autoridade administrativa, tal omissão constitui um ilícito. Da mesma forma, se a autoridade administrativa diz que tais e tais fatos efetivamente ocorreram, mas não produzem o efeito jurídico de fazer nascer a obrigação de pagar, a autoridade administrativa está praticando ilícito.
Em tais casos deve ser apurada a responsabilidade da autoridade administrativa pela omissão ou pela ação ilícita. E cabe ao Ministério Público a iniciativa.
Ressalte-se que a Lei nº 8.137/90, como afirmamos no final do item precedente deste estudo, estabelece meios para esse fim, a saber:
“Art. 16. Qualquer pessoa poderá provocar a iniciativa do Ministério Público nos crimes descritos nesta Lei, fornecendo-lhe por escrito informações sobre o fato e a autoria, bem como indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.”
É evidente que a primeira providência do Ministério Público, diante de tais informações, é perquirir a autoridade da Administração Tributária a respeito do procedimento administrativo destinado a viabilizar a cobrança do tributo devido.
Se a autoridade administrativa nada fez porque não tinha conhecimento do fato, em face da perquirição do Ministério Público adotará as providências cabíveis. E se continuar omissão, deve ser então responsabilizada criminalmente.
Seja como for, tendo havido omissão da autoridade administrativa o que não é razoável admitir-se é que o Ministério Público deva agir apenas contra o cidadão contribuinte.
10. CONCLUSÕES
Em face de todo o exposto, podemos firmar com segurança as seguintes conclusões:
1ª) – A complexidade das questões suscitadas em face da aplicação da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, bem demonstra a inconveniência da transformação do crime tributário, de crime de mera conduta em crime de resultado, ao contrário do que ocorreu na Itália.
2ª) – A tese adotada pela Súmula Vinculante 24, do Supremo Tribunal Federal, não se opõe à teoria da atividade, adotada pelo art. 4º do Código Penal, pois não se trata de aguardar a apuração do resultado da conduta, mas apenas de saber se a qualificação jurídica dos fatos ocorridos foi feita corretamente.
3ª) – O enunciado da Súmula Vinculante 24 não exclui da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a Direito. Apenas exige que a Administração Pública afirme ter havido lesão a seu direito ao tributo, para que possa ter início a ação penal contra quem a produziu.
4ª) – O enunciado da Súmula Vinculante 24 não vincula o Poder Judiciário a uma decisão administrativa. Ocorre é que compete ao Judiciário, nem ao Ministério Público, mas exclusivamente à Administração Pública, lançar e cobrar tributo. E em face do descumprimento do dever legal por parte da autoridade administrativa, o Ministério Público tem o dever de agir contra ela, para o restabelecimento da ordem jurídica.
5ª) – Ao afirmar que não se tipifica crime material contra a ordem tributária , previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo, a Súmula Vinculante 24 não coloca o lançamento definitivo do tributo como elemento essencial do tipo. Afirma, isto sim, que é elemento essencial do tipo o tributo e compete à Administração Tributária dizer quando este existe e promover sua cobrança.
6ª) – Como a prescrição começa a correr na data em que se faz possível a propositura da ação, é evidente que se a ação penal só é possível depois que a Administração afirma ter havido o fato supressão ou redução de tributo, só a partir de então começa a correr a prescrição, que tem o prazo previsto na lei penal.
7ª) – Na verdade a questão não está em saber quando o delito ocorre, mas em saber o que é tributo. E como cabe à Administração dizer o que é o tributo devido, nas situações nas quais o contribuinte sustente que não suprimiu tributo, faz-se necessário aguardar a decisão administrativa.
8ª) – É possível, sim, medida cautelar para a produção de provas na investigação da ocorrência, ou não de crimes tributários. É que a cautelar diz respeito a elementos fáticos, sendo sempre possível. E não ao significado jurídico de fatos.
9ª) – A Súmula Vinculante 24 não impede a apuração, pelo Ministério Público, de fatos que possam significar supressão ou redução de tributo. Aliás, a própria Lei nº 8.137/90 indica essa possibilidade, em seu art. 16, mas evidentemente essa apuração deve começar investigando a omissão da autoridade administrativa.
10ª) – O que não se pode de nenhum modo admitir é que, em face da omissão ou da conduta ilegal da autoridade administrativa, somente o contribuinte seja responsabilizado pela supressão ou redução de um tributo.
[1] Parecer do Procurador Geral da República na Reclamação nº 16.087/SP, páginas 12 e 13.
[2] Parecer do Procurador Geral da República na Reclamação nº 16.087/SP, páginas 16 e 17.
[3] Constituição Federal de 1988, art. 127.
[4] Parecer do Procurador Geral da República na Reclamação nº 16.087/SP, página 20.
[5] Parecer do Procurador Geral da República na Reclamação nº 16.087/SP, página 26.
[6] Parecer do Procurador Geral da República na Reclamação nº 16.087/SP, páginas 39 e 40
[7] Parecer do Procurador Geral da República na Reclamação nº 16.087/SP, página 44.
[8] Parecer do Procurador Geral da República na Reclamação nº 16.087/SP, página 48.
[9] Hugo de Brito Machado, Crimes Contra a Ordem Tributária, 4ª edição, Atlas, São Paulo, 2015, págs 391 a 404.
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