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TRIBUTÁRIO
Multa de trânsito e o processo de sua cobrança
Kiyoshi Harada
14/08/2019
Para combater os abusos praticados por agentes do trânsito, foi promulgado o projeto de lei de autoria do nobre Vereador Farhat, que se converteu na Lei nº 13.344, de 6 de maio de 2002, a qual impõe três condições básicas para cobrança, pelo Município, de multas de trânsito provenientes de aparelhos eletrônicos (radares, semáforos, lombadas eletrônicas etc.) incidentes sobre infrações cometidas por motoristas condutores de veículos automotores. São elas: apresentação de foto do veículo infrator, indicação de velocidade máxima permitida no local da infração, assim como seu enquadramento legal, e os parâmetros técnicos compatíveis com o mesmo local. Nota-se, de pronto, a preocupação do legislador com o eventual abuso na cobrança de multas de trânsito.
Logo, vozes se levantaram contra essa lei de rara felicidade. A contrariedade, contudo, resulta mais do desconhecimento do direito como um todo, e menos pelo mérito dessa lei, que é indiscutível.
É preciso acabar com os abusos e as arbitrariedades; colocar um ponto-final na industrialização de multas impostas pelos sofisticados instrumentos tecnológicos, importados a peso de ouro, que nem sempre funcionam com a devida precisão técnica e muito menos são capazes de identificar situações em que o motorista comete infrações em estado de necessidade, por exemplo. É necessário parar de investir nas multas como um meio regular de abastecimento do Tesouro, com grave desvio de sua função repressora.
Essa lei, de iniciativa do Vereador Farhat, representa, de certa forma, uma maneira de minimizar os nefastos efeitos da ação equivocada dos agentes públicos, responsáveis pela implantação de regras de trânsito na cidade.
Como as constantes e permanentes alterações nas vias de trânsito não são reguladas por lei, ficando à discrição dos agentes da CET, tornam-se dificílimos a fiscalização e o controle dos atos praticados por esses agentes, que vêm criando, talvez inconscientemente, transtornos aos motoristas, que são obrigados a distanciar-se cada vez mais do local do destino pretendido. Ainda que as inversões de mão de direção ou as proibições de conversões à direita tenham por objetivo descongestionar o tráfego nesses locais, o certo é que os desvios para outras vias públicas igualmente congestionadas só resultam em transtornos. Se for para trafegar por vias congestionadas, a melhor solução é permitir o trânsito em linha reta, atingindo o ponto de destino sem dar voltas quilométricas.
Voltando ao aspecto jurídico da questão, os críticos dessa lei municipal sustentam sua inconstitucionalidade baseada no precedente da lei similar no âmbito estadual, a Lei nº 10.553/2000, que também exigia a foto do veículo infrator como condição para cobrança da multa e que foi suspensa por decisão liminar da Corte Suprema (Adin nº 2.328-4, Rel. Min. Maurício Correia). Entendeu aquela Alta Corte de Justiça do País que somente a União poderia legislar sobre o trânsito, o que está absolutamente correto em face do disposto no art. 22, XI, da CF. O que não está correto é confundir o procedimento de cobrança da multa – não importa se de trânsito, de natureza tributária ou de inobservância das posturas municipais – com definições de infrações de trânsito. Estas, sim, são de competência da União e já estão definidas na Lei nº 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro.
O procedimento para cobrança administrativa da multa ou de qualquer valor pecuniário, a qualquer título, é matéria que se insere no âmbito do Direito Administrativo, onde cada ente político tem a liberdade de editar normas próprias, respeitadas as normas gerais estabelecidas pela União, as quais, em sua maioria, já estão previstas no próprio texto constitucional, como o princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Uma coisa é a definição de infração, ou até mesmo da imposição de multa; outra coisa bem diversa é a forma de cobrança da multa imposta.
Definição de infrações de trânsito com previsão de penalidades respectivas insere-se no campo do direito material (art. 22, XI, da CF), ao passo que o procedimento para a cobrança da multa imposta segundo a lei de regência da matéria insere-se no campo do direito administrativo, abrangido no campo da legislação concorrente da União, dos Estados e Municípios (art. 24, XI, da CF). No caso de legislação concorrente, a União só pode editar normas gerais (art. 24, § 1º, da CF). Assinale-se que, em matéria de processo administrativo, a União já editou as normas insertas na Lei nº 9.784/1999, e nada há nessa lei de normas gerais que impeça o Município de exigir a foto do veículo infrator ou a indicação de velocidade no local da infração, como determina da Lei Municipal nº 13.344/2002.
É preciso nos habituarmos a analisar a lei no contexto da ordem jurídica como um todo, em vez de nos apegarmos cegamente ao que foi decidido neste ou naquele caso concreto, sem maiores cuidados. Enfim, é preciso acabar com o “copismo” para não ficar fazendo eco ao que outros disseram, às vezes, equivocadamente. No caso do IPTU progressivo, por exemplo, a tese de que, por ser imposto de natureza real, não pode ser aplicado o princípio da capacidade contributiva vinha sendo aceita com maior tranquilidade, como se fosse um dogma. Na verdade, essa tese não resiste ao rigor jurídico.
É equivocada por confundir objeto do imposto – que é a propriedade imobiliária, cujo valor não pode variar em função da qualidade pessoal de seu proprietário – com obrigação tributária – que é pessoal, podendo e devendo ser graduada segundo a capacidade contributiva de seu proprietário –, nos termos do mandamento constitucional, por meio de alíquotas progressivas em função do valor venal, objetivamente espelhado, relativamente a cada imóvel. Se o IPTU gravasse o imóvel, como estão alegando, o imóvel sem dono deveria pagar imposto. Foi preciso uma Emenda Constitucional para reverter a equivocada jurisprudência que se formou em seu torno, para permitir a tributação progressiva do IPTU em função do valor venal do imóvel, explicitando o que já estava implícito em face do princípio da graduação de imposto segundo a capacidade contributiva de cada um (EC nº 29/2000).
Concluindo, a lei municipal sob exame nada tem de inconstitucional. Só merece encômios por contribuir para livrar os motoristas das armadilhas montadas por agentes do trânsito. Pena que não tenha eficácia extraterritorial para inibir os abusos das concessionárias de estradas, que ocultam radares em vários pontos estratégicos, causando bruscas freadas com risco de provocar graves acidentes.
Eventual ação direta de inconstitucionalidade, se cabível, só poderá ser aflorada perante o E. Tribunal de Justiça, que não está obrigado a encampar a equivocada decisão liminar do STF.
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