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Sobre o ICM, a amizade e o acaso
Hugo de Brito Machado Segundo
27/05/2021
Entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 1970, o professor Hugo de Brito Machado, graduado em 1966, resolve comentar a legislação relativa ao então Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), na época sem o “S” que lhe inseriu a Constituição de 1988. Escreveu o livro usando uma caneta tinteiro e seu sobrinho, Flaubert Araújo, em seguida datilografou os originais.7
No livro, defendeu ideias que, mais tarde, seriam acolhidas por autores já destacados, tais como a de que “mercadoria” se define pela finalidade dada à coisa móvel e corpórea de cuja circulação se cogita. Daí a não incidência do imposto quando de uma venda ocasional, feita entre dois não comerciantes, de um objeto qualquer, que não foi por eles comprado para ser revendido. O mesmo pode ser dito da alienação de bens do ativo permanente da pessoa jurídica, ainda que seja ela contribuinte do imposto. Essa discussão, aliás, tornou-se central quando da cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas importações feitas por quem não iria revender aquilo que era importado, tendo o STF acolhido o entendimento de que o imposto não poderia ser cobrado, pois não se estava diante de operação relativa à circulação de uma mercadoria. Hoje essa incidência é possível, mas como obra de alteração no texto constitucional, com o advento da EC 33/2001. Modificada a Constituição, hoje se permite a cobrança do imposto sobre a entrada de “bem ou mercadoria” importado do exterior, por pessoa física ou jurídica, “ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade”.
A atualidade da discussão em torno de como se define uma mercadoria, aliás, permanece, por igual, nos debates sobre a tributação do software e os conflitos de competência entre Imposto Sobre Serviços (ISS) e ICMS que lhe subjazem, presentes ainda há poucas semanas na jurisprudência do STF.
Outra ideia constante daquele livro, importante para a compreensão do imposto, era a de que o direito de crédito, inerente à sistemática da não cumulatividade, não depende da real cobrança, ou, pior, do efetivo pagamento do tributo em operações anteriores. O relevante é, para firmar o direito ao crédito, que o imposto seja incidente na etapa anterior, compreensão que por igual terminou por corretamente prevalecer na jurisprudência.
Tudo isso constava dos tais originais, que seguramente tinham algum valor, mas havia um problema. Como um jovem advogado piauiense, em início de carreira na cidade de Fortaleza, no início dos anos 1970, ainda desconhecido, conseguiria publicar o livro? Conversando sobre o assunto com o dono de uma livraria e vendedor de “mapas fiscais”, que por isso atendia pela alcunha de Mapeiro, Hugo Machado recebeu uma oferta de ajuda. Mapeiro tinha trânsito em algumas editoras da região sudeste, disponibilizando-se para conseguir a publicação. E, de fato, conseguiu, deixando Hugo Machado muito satisfeito por lançar seu primeiro livro.
A obra logo se tornou conhecida na cidade, entre os que lidavam com o ICM, e Hugo começou a receber questionamentos:
“Hugo, rapaz, você lançou um livro sobre ICM? Ouvi falar, viu? Mas não encontro para vender nas livrarias!”.
Consultando Mapeiro sobre a questão, este respondeu que o livro poderia ser facilmente encontrado na sua própria livraria, recado que era naturalmente passado a todos que estavam à procura da obra.
Mas o autor, quem sabe por achar que a única loja na qual seu livro poderia ser adquirido talvez não tivesse a visibilidade que ele gostaria, algumas semanas depois consulta Mapeiro sobre a possibilidade de o livro ser distribuído para venda também em outros pontos da cidade. Mas a negativa foi enfática:
Não. Só aqui. Eu comprei toda a edição para revender somente na minha livraria”.
Ao que o autor tentou negociar:
“— Posso, então, comprar pelo menos alguns, para deixar, por minha conta, à venda em outros lugares?
—Não. Só vendo se for tudo”.
Mapeiro possivelmente tinha suas razões para querer vender apenas em sua livraria a obra na qual havia apostado e ajudado a publicar. Mas o autor talvez tivesse motivos igualmente fortes para querer seu livro mais visível, angustiado com tantos potenciais leitores que não tinham sucesso na compra de um exemplar. Em vez de tratá-lo como uma peça rara a ser procurada duramente por quem já tinha ouvido falar de sua existência, Hugo queria deixá-lo em maior destaque, inclusive porque tanto o autor como o livro ainda não eram conhecidos de um público que, encontrando o livro por acaso, poderia ter interesse em adquiri-lo. A questão não era obter retorno financeiro, como os autores de livros jurídicos, com raríssimas exceções, bem sabem, mas ver suas ideias circulando por aí, discutidas e divulgadas. Mas fazer o que diante do impasse?
Em determinada tarde, semanas depois, Hugo Machado conversava sobre o tema com um amigo, o senhor João Cunha, português dono do Edifício Triunfo, prédio comercial onde funcionava seu escritório. Surgiu, então, o questionamento:
“— Ora, então por que não compras tudo, Hugo?
— Não posso, não tenho tanto dinheiro.
— Pois, se estão a procurar o livro, ele deve ser bom! Eu faço questão de te emprestar o valor necessário!”.
E assim se fez. João Cunha emprestou a Hugo o valor com o qual este pôde comprar toda a edição do ICM, que se fez disponível nas diversas livrarias do Estado. O próprio autor se encarregou da distribuição. E o empréstimo terminou virando doação, pois Hugo, depois de vender todos os livros, não conseguiu fazer com que o amigo português aceitasse receber a quantia de volta, por maior que fosse a sua insistência. Essa foi a história da publicação e da circulação do primeiro livro de meu pai, que dele já ouvi tantas vezes.
Mas aqui peço licença à leitora para, nesta narrativa, que talvez já esteja bem menos “tributária” do que o habitual na coluna, abrir uma fenda no tempo, a fim de emendá-la a uma continuação da qual só tive notícia mais de quarenta anos depois. As palavras com as quais reconstruímos os eventos permitem essas coisas, colando o que se nos chega fragmentado.
Em 2019, o professor Edvaldo Pereira de Brito, ilustre tributarista, professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, vem a Fortaleza, a convite do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), para a comemoração dos 40 anos (e das 40 edições) de outro livro de seu amigo de longa data, de congressos e seminários, Hugo de Brito Machado, o “Curso de Direito Tributário”. Mais uma história para, um dia, ser contada, quanto aos bastidores também dessa publicação. O fato é que, durante a pequena solenidade que se organizou em torno das quatro décadas do “curso”, convidado a dizer algumas palavras aos mais chegados que ali estavam, Edvaldo mostra um livro que não saía de suas mãos desde seu desembarque, quando saiu do avião vindo de Salvador para a festa. Era exatamente um exemplar do “ICM”. E, com a vibração que lhe é peculiar, surpreende o auditório, dizendo:
“Sei que a festa é em torno do ‘curso’, mas ela celebra, acima de tudo, a vida, a amizade, e a obra de Hugo Machado, então trago este livro, que marca a primeira notícia que tive de meu amigo e de suas ideias”.
No exemplar, a dedicatória de ninguém menos que Orlando Gomes, que, testemunhou Edvaldo, era muito exigente com o que comprava, lia e, principalmente, presenteava. Tudo porque o ilustre civilista baiano, passeando pelo Ceará em 1971, havia visitado algumas livrarias, e encontrado — graças aos esforços de Hugo, Flaubert, mapeiro e João Cunha, cada um à sua maneira — o livro sobre ICM. Talvez tenha folheado e gostado do que viu, tanto que o comprou para dedicar ao jovem colega, que à época já mostrava interesse pela matéria. Nele escreveu, com bela caligrafia: “Para Edvaldo, uma lembrança do Ceará”.
No emaranhado de linhas formado pelas trajetórias de vida que se cruzam, aproximam e distanciam, quase meio século depois se (re)uniram um exemplar do livro que tanto esforço exigiu para ser publicado, o autor que o escreveu e diligenciou para que circulasse, e o amigo de longa data, com o registro da primeira notícia que um teve do outro, por obra da gentileza de um civilista pelo qual todos estudaram. Prova de que o mundo, embora imenso, pode ser também muito pequeno, principalmente quando o acaso e a amizade fazem unir as pontas soltas de uma história. E de que, quando se escreve e publica uma obra, realmente não se sabe onde, ou com quem, ela vai parar. Ou as alegrias e os amigos que trará. O acaso tem das suas proezas, e um esforço pode aumentar as chances de elas acontecerem.
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