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Kiyoshi Harada

Kiyoshi Harada

17/05/2019

A questão da autonomia orçamentária é uma daquelas não compreendidas adequadamente por parcela ponderável dos doutrinadores. Aliás, o Direito Financeiro, disciplina em que se insere o tema em exame, apesar de ser o pai do Direito Tributário, não tem merecido a mesma atenção deste. Por razões de ordem prática, existe maior preocupação com o estudo do Direito Tributário, que compreende apenas a disciplina de uma parte de um dos objetos de Direito Financeiro, isto é, a receita derivada. Nada mais. A receita originária, o crédito público, a despesa pública e o orçamento continuam sendo objetos do pouco conhecido Direito Financeiro, cujas normas, fundamentalmente, são voltadas para a proteção do interesse público: como obter e administrar as receitas públicas e principalmente como, quando e onde gastar o dinheiro público. Suas normas, por assim dizer, engessam a ação dos agentes públicos (agentes políticos e servidores graduados), que não veem com bons olhos esse importante ramo do Direito Público. Sempre que possível, procuram, por medidas legislativas, contornar a incidência de suas normas, cuja contrariedade configura crime de responsabilidade política (art. 86, VI, da CF).

Daí por que somente o exercício da cidadania, notadamente no que diz respeito ao princípio da legalidade das despesas, que é o similar do princípio da legalidade tributária, poderá conduzir à efetiva e correta aplicação das normas de Direito Financeiro, fazendo com que, entre outras coisas, o orçamento anual passe a representar um verdadeiro instrumento de concretização da vontade média da população, e não um mero amontoado de números e códigos, enfeixados em um luxuoso volume, para deleite dos frequentadores de bibliotáfios.

Enfim, não há vontade política para implantar o primado da probidade na Administração. Quando fustigado pela mídia, o poder político reage com edição de leis dúbias, confusas e, às vezes, inconstitucionais, em vez de aplicar a legislação adequada preexistente. Assim ocorreu com a elaboração da desastrada Lei 8.429/1992, que define os atos de improbidade administrativa, na verdade, fruto de improbidade legislativa, por ter a E. Câmara dos Deputados suprimido, indevidamente, a instância revisora do Senado Federal. Com os acontecimentos que maculam profundamente a imagem da Administração Pública, na década de 1990, fartamente divulgados pela mídia, editou-se a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar 101/2000, como panaceia para a Administração Pública em geral, acometida de doença endêmica.

Em vez de se preocupar em consertar os estragos realizados, diga-se de passagem, de difícil reparação, deveria se concentrar na prevenção dos danos. Por que não se vota o projeto de lei complementar referido no inciso II do § 9.º do art. 165 da Constituição Federal perdido nos escaninhos do Congresso? Aprovado esse diploma legal, estaria fechado o ralo, representado por fundos, fundinhos e fundão, como é o caso do FSE, do FEF, hoje DRU, por onde desaparecem vultosos recursos financeiros arrecadados, por inviabilizar o mecanismo de controle e fiscalização da execução orçamentária.

Autonomia orçamentária não quer dizer exatamente autonomia financeira como muitos pensam. Esta última detém apenas a entidade política, dotada do poder de realizar as receitas públicas, originárias, creditícias, especialmente as derivadas. Não haveria, por exemplo, a independência político-administrativa do Município não fosse o seu poder impositivo a assegurar sua independência financeira. Mera participação no produto de arrecadação de imposto alheio não traria essa independência financeira. Por isso, quando o art. 99 da Constituição Federal faz menção à autonomia administrativa e financeira do Judiciário, na verdade, quis o legislador constituinte referir-se à autonomia administrativa e orçamentária. Conferiu-se ao Judiciário e ao Ministério Público a faculdade de elaborar as propostas orçamentárias,[1] dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias (arts. 99, § 1.º, e 127, § 3.º, da CF) a serem enviadas ao Executivo, no caso do Judiciário Federal, por intermédio dos Presidentes do STF e dos Tribunais Superiores. Depois de unificadas e incorporadas ao Projeto de Lei Orçamentária Anual, este será encaminhado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, até o final de agosto de cada ano.

Autonomia orçamentária significa que determinado órgão, com ou sem personalidade jurídica própria, foi contemplado pela lei orçamentária anual com dotação própria, fixando o montante das despesas autorizadas, no caso do Judiciário e do Ministério Público, por propostas suas.[2] Autonomia orçamentária quer dizer que um determinado órgão constitui-se em uma unidade orçamentária, podendo utilizar-se das verbas com que foi contemplada, mediante observância dos rígidos princípios orçamentários e da medida de disponibilidade financeira do Tesouro.

A Carta Política de 1988 inovou a matéria orçamentária, conferindo ao Poder Judiciário e ao Ministério Público dotações próprias, prescrevendo, ainda, a entrega dos recursos correspondentes até o dia 20 de cada mês, na forma de lei complementar (art. 168 da CF). Entretanto, o duodécimo não está, por ora, regulamentado pela lei complementar referida no texto constitucional. É certo, contudo, que o repasse de numerários não deve ser automático; deve obedecer ao princípio da programação de despesas (art. 47 da Lei 4.320/1964), que é impositivo para órgãos das três esferas de Poder; depende, ainda, de efetiva realização da receita estimada. Não há nem pode haver transferência de verbas hipotéticas como querem alguns. É fora de dúvida, porém, que o Executivo não pode alterar, a seu talante, a data do repasse, que é o dia 20 de cada mês, segundo jurisprudência já firmada pelo STF (RTJ 129/5; 136/891).

Nisso se resume a autonomia orçamentária do Poder Judiciário e do Órgão Ministerial, que não se confunde com a autonomia financeira propriamente dita. Todos os recursos financeiros devem permanecer no Tesouro, por força do princípio de unidade de tesouraria (art. 56 da Lei 4.320/1964). Alguns estudiosos sustentam que os recursos correspondentes a dotações consignadas ao Poder Judiciário (art. 100, § 2.º, da CF) devem ser recolhidos à repartição do Judiciário, como se esse Poder fosse o vocacionado para gerir as finanças públicas. Pontes de Miranda, comentando idêntico dispositivo à luz da Carta Política de 1967 (art. 117, § 2.º), ensina que “o depósito é que guarda as quantias. A permanência noutras repartições, quaisquer que sejam, implica figura penal”.[3]

Outrossim, não procede a tese defendida por alguns setores no sentido de que, por conta dessa propalada autonomia financeira, na verdade, orçamentária, o Poder Judiciário poderia fixar os vencimentos de seus membros e os de seus servidores. A confusão é óbvia, implicando afastamento do princípio constitucional da reserva legal (art. 92, V, da CF). Se isso fosse possível, o Executivo, que sempre deteve a autonomia orçamentária e, também, a financeira, poderia fixar livremente os vencimentos de seus servidores por decreto. Por derradeiro, o velho hábito de o legislador baixar “ato da mesa” para majorar indiretamente os vencimentos de seus servidores, via aumento de gratificações, é inconstitucional. O princípio da reserva legal vale para todos os servidores dos Três Poderes.

A autonomia orçamentária do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público não significa independência financeira propriamente dita e, muito menos, insubmissão ao princípio da reserva legal no que tange à fixação de vencimentos de seus membros e de seus servidores, ressalvados os casos expressos no art. 49, VII e VIII, da CF.[4]

Não se podem, em nome da autonomia orçamentária, tomar medidas conflitantes com o próprio princípio federativo, que garante a independência e a harmonia dos Poderes (art. 2.º da CF) pelo sistema de freios e contrapesos, não admitindo que um deles faça o que bem entender, sem interferência dos demais.


[1] A prática tem demonstrado que a mistura da função jurisdicional com a função administrativa, por gerar disputas políticas indesejáveis e inadequadas no âmbito do Poder Judiciário, não vem enaltecendo a sua imagem.

[2] Não significa, obviamente, que as propostas devam ser aprovadas como formuladas pelos órgãos referidos.

[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: RT, 1967. t. III, p. 621.

[4] Os subsídios de deputados e senadores, bem como os do Presidente da República, do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado são fixados por resolução do Congresso Nacional.


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