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PROCESSO PENAL
Por que cabe, em tese, prisão preventiva de parlamentar ?
Douglas Fischer
17/03/2021
Já publicamos aqui texto anteriormente abordando o caso específico em que um parlamentar federal está sendo mantido preso unicamente por força de prisão em flagrante por crime (assim considerado) inafiançável. Vamos novamente deixar claro que a finalidade complementar desse texto jamais será “defender” os crimes cometidos pelo referido parlamentar, que necessitam sim a devida repressão criminal.
São dois questionamentos que serão o objeto central do presente (e rápido) texto:
- É possível alguém ser mantido preso unicamente por força de prisão em flagrante por crime inafiançável, mesmo depois da realização da audiência de custódia e em se tratando de parlamentar federal, para quem há um regramento específico na Constituição Federal (art. 53, § 2º)?
- Realmente não seria cabível a prisão preventiva de parlamentares federais ?
Por partes, iniciando com a primeira.
Repristinamos novamente nossa compreensão declinada nos Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência (Gen Atlas, 13ª ed., 2021, item 295.5 – já em formato ebook disponível).
É de se ver que, quando editada a Constituição Federal, previu-se redação no sentido de que os parlamentares, desde a expedição do diploma, somente poderão ser presos em flagrante delito de crimes inafiançáveis, devendo os autos ser encaminhados em 24 horas à respectiva Casa (Câmara dos Deputados ou Senado Federal), a quem competirá, por maioria, resolver sobre a prisão, isto é, sobre a sua manutenção.
Veja-se primordialmente que a compreensão sistemática do direito permite a leitura (não apenas literal) de que o que foi tratado ali era, exclusivamente, a prisão em flagrante por crime inafiançável, que é uma “prisão administrativa” (não há ordem judicial prévia para a prisão em flagrante). Exatamente por isso é que deveria ser submetida à respectiva Casa legislativa para que, no controle do ato administrativo de prisão, fosse analisada a conveniência ou não da manutenção da prisão (que, na época, em se tratando de crime inafiançável, manteria alguém preso por si só – esse dado é de extrema relevância para o que virá a seguir).
Tanto o legislador sabia (ou deveria saber) a distinção entre prisão em flagrante (mesmo sendo hipótese de crime inafiançável) e prisão preventiva que, no art. 86, § 3º, em relação ao Presidente da República, dispôs-se expressamente que, “enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão”. Ou seja, seria necessário o trânsito em julgado nas infrações penais comuns, descabendo, inclusive, a “prisão cautelar” preventiva. Essa ressalva expressa não existe em relação aos parlamentares. Como destacado, a Constituição Federal regula exclusivamente as prisões em flagrante por crimes inafiançáveis.
Poucos notaram é que, hoje, segundo compreensão uníssona do STF (ao menos até a recente decisão de um parlamentar federal), o fato de um crime ser inafiançável não tem relevo nenhum para manter alguém preso por si só.
Para os “leigos” falar em crime inafiançável dá a (errônea) ideia de que a pessoa ficará presa por si só, só pelo flagrante de crime inafiançável.
Não é mais ainda.
E ainda bem que não é !
Para alguém ficar preso hoje, sendo afiançável ou não o delito praticado, é necessário que estejam presentes os requisitos da prisão preventiva, nos termos do art. 312 do CPP:
“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
§ 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).
§ 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada’.
Noutras palavras, ausentes os requisitos da prisão preventiva, é hipótese de análise de aplicação das medidas cautelares menos gravosas (aquelas inseridas no art. 319 do CPP) ou então de concessão de liberdade sem nenhuma cautelar.
O que são essas medidas cautelares menos gravosas ?
Antes uma explicação: no sistema anterior de prisões preventivas (de crimes afiançáveis ou inafiançáveis), havia apenas duas opções ao juiz: mantém preso ou solta.
Atualmente (desde 2011, na verdade, com as alterações da Lei nº 12.403), é possível ao juiz um “caminho do meio”, aplicando aos casos em que não for proporcional (necessária, adequada e proporcional em sentido estrito) a prisão preventiva, aplicar as “medidas cautelares diversas da prisão”, que são as seguintes:
”I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
IX – monitoração eletrônica.
Veja-se: a fiança (para os casos que sejam afiançáveis), desde 2011, é uma medida cautelar menos gravosa, e não mais um requisito autônomo para manter alguém preso no caso de flagrante de crime inafiançável.
Aliás, havia até um paradoxo até as alterações dessa lei em 2011. Um sujeito cometia um crime inafiançável (em tese “mais grave”), mas era solto se não houvesse os requisitos da prisão preventiva. Outro cometia um delito afiançável (em tese “menos grave”) e somente era solto se pagasse antes a fiança, sem que se fizesse a análise dos requisitos da prisão preventiva (essa era a razão pela qual sempre nos manifestamos em processos judiciais até 2011 no sentido de que, inclusive para os crimes “afiançáveis”, deveria ser feita, antes, a análise dos pressupostos da prisão preventiva – mas isso é outra história).
Prosseguindo, hora de dizer de forma bem direta: ninguém pode (ou poderia …) ficar preso exclusivamente pela prática de um crime considerado inafiançável pela lei.
Tanto isso é verdade que, nos termos do art. 287 do CPP (conforme explicitado pela Lei nº 13.964/2019), “se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia”.
No caso de flagrante (de não parlamentar, por ora para melhor compreender), o que deve fazer o juiz do processo?
Conforme o art. 310 do CPP, “após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; ou II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança”.
São 4 as opções, na verdade:
- Se a prisão em flagrante for ilegal, relaxa o flagrante (mas não há impedimento para decretar a preventiva – não entraremos na discussão se pode ser de ofício ou não, embora o entendimento majoritário está caminhando no sentido de que não poderia);
- Se presentes os requisitos da preventiva, decretá-la;
- Se não for necessária a prisão preventiva, pode fixar uma medida cautelar menos gravosa (acima);
- Se nenhuma das hipóteses se revela necessária, deve conceder a liberdade(que a lei e boa parte da doutrina – nós não, como se vê de todas as linhas dos Comentários ao CPP – “insiste” em chamar de provisória, um erro grave: provisória é a prisão, liberdade é a regra, mas isso é “outro problema” incutido pela repetição de dogmas).
O Supremo Tribunal Federal – há muito – vem dizendo que, ao contrário do que previsto na lítera fria da lei (inclusive com repercussão no art. 53, § 2º, CF, dizemos nós), ninguém mais pode (ou poderia …) ficar preso apenas pelo flagrante de crime inafiançável, se ausentes os requisitos da preventiva (ou de cautelares menos gravosas).
Reportando novamente aos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência, ao tratarmos das imunidades processuais (item 304.2.2), trazemos em complemento o seguinte:
[…] Na verdade, há muito tempo (e bem antes mesmo da legislação que introduziu o sistema das medidas cautelares diversas da prisão, a Lei nº 12.403/2011) o Supremo Tribunal Federal vem atribuindo interpretação diversa da original quanto à compreensão do que seria a inafiançabilidade. Sem ora entrar no debate de que muitas vezes a própria Constituição peca por não usar os termos técnicos corretos, para a Suprema Corte (a intérprete dela) a inafiançabilidade não significa mais (e há bastante tempo) que o preso em flagrante por crime inafiançável deverá permanecer (só por este fato) preso. Para a manutenção da prisão é necessária a análise da ausência de algum requisito que não permita a liberdade (ainda chamada, indevidamente, de provisória). Significa que o flagrante (de crime afiançável ou inafiançável) há muito não mais possui a mesma compreensão, notadamente aquela quando da edição do Código de Processo Penal (adotada também na redação da Constituição Federal nesta parte), em que a prisão por crime inafiançável, em verdadeira antecipação, permitia a manutenção dela, a prisão, só por esse fato. O flagrante tem sua importância sim, especialmente para colheita de elementos quanto ao fato criminoso. Mas a compreensão vetusta e deslegitimada pela CF/88 gerava situações incompreensíveis: se alguém cometesse um delito inafiançável (em tese mais grave), era analisada diretamente a possibilidade de concessão de liberdade; já se o delito fosse afiançável (em tese menos grave), partia-se direto para a fixação da fiança, sem mesmo a análise de possibilidade de liberdade. Era um contrassenso sem tamanho.
Então, já de muito, para o Supremo Tribunal Federal, a inafiançabilidade não implica prisão automática, devendo-se analisar os pressupostos da preventiva ou, agora mais recentemente, de medidas cautelares pessoais. Logo, a compreensão do art. 53, § 2º, CF também merece uma tripla (re)valoração axiológica na hermenêutica sistêmica após esta nova compreensão do STF sobre o conceito e consequências da inafiançabilidade.
A primeira delas é que a inafiançabilidade referida no § 2º não tem, tecnicamente, mais nenhuma importância pelo prisma da liberdade.
Numa interpretação isolada da norma em comento, a prisão em flagrante (independentemente do delito cometido) implicaria que a casa legislativa teria que ser comunicada da prisão em flagrante (mas apenas quando crime inafiançável) e a consequência seria apenas uma: deveria necessariamente soltar o preso, pois a prisão em flagrante por si só não teria mais o condão de mantê-lo preso, e a casa não tem poderes para expedir a prisão preventiva (reserva de jurisdição).
A segunda delas é que, dentro de uma visão sistêmica do ordenamento jurídico, o art. 53, § 2º, CF/88 não pode ser “lido” de maneira isolada exatamente por não existirem garantias absolutas. Manter a interpretação desta regra desta mesma maneira implicaria o reconhecimento de uma garantia irrestrita para que parlamentares em exercício que praticassem crimes jamais poderiam ser presos.
A terceira, como desmembramento da anterior, está no fato de que não se pode conceber um ordenamento jurídico em que, de forma excepcional, não permita que o Poder Judiciário (sempre por ordem fundamentada da autoridade competente) determine a prisão cautelar ou imponha medidas cautelares menos gravosas diante da comprovação indubitável da existência de elementos que justifiquem uma (art. 312, CPP) ou outra restrição (art. 282, CPP). […]
Vamos ao segundo: realmente não seria cabível a prisão preventiva de parlamentares ?
Vamos reforçar que a Constituição tratou apenas das prisões em flagrante por crime inafiançável em relação aos parlamentares. Em nenhum momento – como fez em relação ao Presidente da República – vedou a prisão, por crimes comuns, senão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (ou seja, em relação ao Presidente da República há sim – e só em relação a ele – vedação constitucional de qualquer tipo de prisão, inclusive a preventiva).
Não há imunidade constitucional (princípio absoluto) que garanta aos parlamentares não serem presos preventivamente.
Claro que a situação a justificar a prisão preventiva deveria ser extremamente grave, assim como a imposição de cautelares menos gravosas.
Acorremos ao que já escrito há bastante tempo na obra retromencionada, na qual criamos um exemplo. Embora possa chocar em primeira vista (mas para demonstrar exatamente a que ponto chegaria se mantida a leitura isolada do art. 53, § 2º, CF/88 com os olhos na compreensão vetusta acerca da “inafiançabilidade”), basta imaginar situação em que parlamentar atue como serial killer, praticando reiteradamente crimes dolosos contra a vida (até como forma de eliminar testemunhas em processos que eventualmente este mesmo parlamentar possa estar respondendo por fatos anteriores). Se não fosse preso em flagrante pelos crimes, nada aconteceria (pois não se poderia impor uma prisão autônoma). Se fosse flagrante, nenhuma consequência teria também (ao menos na nossa compreensão), pois, como dito, a casa legislativa deveria necessariamente soltar após a comunicação da prisão pelo órgão competente.
Isso não é novidade em precedentes pouco anteriores do STF.
Veja-se que no
[…] “julgamento do HC nº 89.417, oportunidade na qual, acolhendo voto da e. relatora, Ministra Cármen Lúcia, a Corte Suprema assentou que: “a norma constitucional que cuida da imunidade parlamentar e da proibição de sua prisão, ressalvada a hipótese prevista na regra antes mencionada, não pode ser tomada em sua literalidade, menos ainda excluída do sistema constitucional, como se apenas aquela regra existisse, sem qualquer vinculação com os princípios que a determinam e com os fins a que ela se destina”. Destacou-se que “a Constituição não diferencia o parlamentar para privilegiá-lo. Distingue-o e torna-o imune ao processo judicial e até mesmo à prisão para que os princípios do Estado Democrático da República sejam cumpridos; jamais para que eles sejam desvirtuados. Afinal, o que se garante é a imunidade, não a impunidade. Essa é incompatível com a Democracia, com a República e com o próprio princípio do Estado de Direito”. Foi reconhecido expressamente que “imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio. E esse, sabe-se, é mais uma agressão aos princípios constitucionais, ênfase ao da igualdade de todos na lei”. Concluiu-se que “aplicar como pretende o impetrante a norma do art. 53, §§ 2º e 3º da Constituição, quer dizer, como espaço jurídico que impede que o Poder Público cumpra a sua obrigação para chegar à apuração, e, se for o caso, à eventual punição de alguns pela proibição de adotar as providências devidas para se chegar ao fim do direito, além de se impedir que se extinga o ambiente institucional contaminado por práticas que podem se mostrar delituosas e ao possível cometimento de infrações que se vêm perpetrando no ente de federado, simplesmente porque não se pode aplicar o direito, seria chegar à mesma equação de ineficácia à narrada em numerosas passagens literárias. Mas a vida não é ficção e a moral e o direito não hão de ser históricas para ser contadas sem compromisso com eficácia”. Na sequência, uma indagação: “E se a olhos vistos não se poderia cumprir aquela exigência constitucional, como se poderia aplicar a norma insculpida no art. 53, §2º, da Constituição da República, sem que se tivesse o comprometimento de todos os princípios constitucionais, incluídos os mais caros para que o público seja do povo e o particular seja de cada um sem ser pago por todos, inclusive moralmente?”, respondendo que “a situação descrita nos autos patenteia situação excepcional e, por isso, absolutamente insujeita à aplicação da norma constitucional em sua leitura isolada e seca”.
A conclusão foi no sentido de que “aplicar, portanto, isoladamente a regra do art. 53, § 2º e 3ª da Constituição da República, sem se considerar o contexto institucional e o sistema constitucional em sua inteireza seria elevar-se acima da realidade à qual ela se dá a incidir e para a qual ela se dá a efetivar. O resultado de tal comportamento do intérprete e aplicador do direito constitucional conduziria ao oposto do que se tem nos princípios e nos fins do ordenamento jurídico”, enfatizando que “à excepcionalidade do quadro há de corresponder a excepcionalidade de forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional, não permitindo que para prestigiar uma regra – mais ainda, de exceção e de proibição e aplicada a pessoas para que atuem em benefício da sociedade – se transmute pelo seu isolamento de todas as outras do sistema e, assim, produza efeitos opostos aos quais se dá e para o que foi criada e compreendida no ordenamento. Tal é o que aconteceria se se pudesse aceitar que a proibição constitucional de um representante eleito a ter de submeter-se ao processamento judicial e à prisão sem o respeito às suas prerrogativas seria um álibi permanente e intocável dado pelo sistema àquele que pode sequer não estar sendo mais titular daquela condição, a não ser formalmente. Se, para que o sistema jurídico constitucional possa ser garantido em sua integridade vem a se mostrar imprescindível à autoridade judicial competente garantir o afastamento precário e momentâneo daquela proibição para, de forma igual para todos os cidadãos, se chegar ao prosseguimento de uma ação penal e o desbaratamento da situação de doença ética, jurídica e política que as práticas parecem ter imposto às instituições de um Estado-membro da Federação”.
Portanto, dizemos nós: numa situação dessas, que deve ser para situações limítrofes da excepcionalidade (a prudência e necessidade são imperativas no equilíbrio), plenamente viável a prisão preventiva como forma de garantir a ordem pública ou, em outros casos menos graves, medidas cautelares diversas.
Com a devida vênia, menos convincente ainda é a “postura intermediária” que “se criou” defendendo o descabimento da prisão preventiva, mas a possibilidade de aplicação medidas cautelares menos gravosas (aquelas do art. 319 do CPP), desde que não interfiram no exercício do mandato parlamentar.
Ora, o mandato parlamentar, de reconhecimento popular, é importante, mas não absoluto a ponto de permitir que se mantenha no cargo alguém que esteja cometendo crimes que justifiquem, eventual e excepcionalmente, uma prisão preventiva ou qualquer medida cautelar menos gravosa.
O “controle político” deve valer sim para as prisões em flagrante (decisão administrativa), conforme previsto na Constituição (art. 53, § 2º).
Mas a prisão preventiva ou qualquer medida cautelar menos gravosa é atribuição exclusiva do Poder Judiciário, sem que se veja aí qualquer “interferência” nos poderes, pois o tema aqui tratado é jurisdicional, de exclusividade do Poder Judiciário, especificamente da Suprema Corte.
Rejeitamos a “possibilidade de o Congresso revisar ato do Poder Judiciário (ainda que a medida interfira diretamente o exercício do mandato), por tratar-se de matéria em que há, tecnicamente, reserva de jurisdição”.
Relembremos a decisão na ADI n. 5.526, Relator do acórdão Ministro Alexandre de Moraes: “3. A imunidade formal prevista constitucionalmente somente permite a prisão de parlamentares em flagrante delito por crime inafiançável, sendo, portanto, incabível aos congressistas, desde a expedição do diploma, a aplicação de qualquer outra espécie de prisão cautelar, inclusive de prisão preventiva prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal. 4. O Poder Judiciário dispõe de competência para impor aos parlamentares, por autoridade própria, as medidas cautelares a que se refere o art. 319 do Código de Processo Penal, seja em substituição de prisão em flagrante delito por crime inafiançável, por constituírem medidas individuais e específicas menos gravosas; seja autonomamente, em circunstâncias de excepcional gravidade. 5. Os autos da prisão em flagrante delito por crime inafiançável ou a decisão judicial de imposição de medidas cautelares que impossibilitem, direta ou indiretamente, o pleno e regular exercício do mandato parlamentar e de suas funções legislativas, serão remetidos dentro de vinte e quatro horas a Casa respectiva, nos termos do § 2º do artigo 53 da Constituição Federal, para que, pelo voto nominal e aberto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão ou a medida cautelar. […] (ADI n. 5.526-DF, STF, Plenário, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 11.10.2017, publicado no DJ em 7.8.2018. O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente a ação direta de inconstitucionalidade, assentando que o Poder Judiciário dispõe de competência para impor, por autoridade própria, as medidas cautelares a que se refere o art. 319 do Código de Processo Penal, vencido o Mini. Marco Aurélio, que, ao assentar a premissa da inaplicabilidade da referida norma legal a parlamentares, declarava o prejuízo do pedido. Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, também por votação majoritária, deliberou que se encaminhará à Casa Legislativa a que pertencer o parlamentar, para os fins a que se refere o art. 53, § 2º, da Constituição, a decisão pela qual se aplique medida cautelar, sempre que a execução desta impossibilitar, direta ou indiretamente, o exercício regular de mandato parlamentar, vencidos no ponto os Ministros Edson Fachin (Relator), Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Celso de Mello. Redator para o acórdão o Min. Alexandre de Moraes).
Em nossa visão, o tema é técnica e relativamente simples, mas há sempre a possibilidade de “problematizar” para extrair interpretações que vedem as prisões preventivas dos parlamentares (respeitosamente aos entendimentos em sentido contrário, claro).
Não se olvide ainda – e exclusivamente como reforço argumentativo – que há proposta de emenda constitucional para esclarecer e regulamentar expressamente (o que inexiste hoje e difere de “vedação”) a possibilidade de conversão das prisões em flagrante em prisões preventivas (seria a redação ao § 2-B, I a ser acrescido ao art. 53 da CF).
É verdade também que o Supremo Tribunal Federal restringiu as prerrogativas dos parlamentares federais quanto “ao foro privilegiado” no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal nº 937. A partir do que lá fixado, os parlamentares federais poderão ser processados fora do STF nos casos em que o crime não foi cometido durante o mandato ou ainda quando não relacionado às funções por ele desempenhadas (destacamos que há muito tempo antes e salvo melhor juízo sem nenhuma abordagem semelhante, defendemos esse posicionamento adotado pelo STF até de forma mais restritiva. Vide capítulo de nossa autoria intitulado “Prerrogativa de foro e competência originária do Supremo Tribunal Federal: uma (re) leitura dos preceitos da Constituição Brasileira como forma de maximização do princípio republicano da isonomia”. In: Zanellato, Vilvana Damiani (org.). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: temas relevantes. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014).
Novamente dentro do exemplo dado anteriormente, se um parlamentar fosse um “serial killer” (crime sem qualquer relação com o mandato) e não fosse preso em flagrante em nenhum dos fatos praticados, quem decretaria a preventiva ?
Resposta: o juiz (de primeiro grau) competente de acordo com as regras de processo penal.
Algum “problema nisso” ?
Nenhum, pois haveria a possibilidade de “controle” do ato, mediante a interposição de habeas corpus às instâncias superiores, como seria a hipótese de qualquer cidadão preso preventivamente.
Hora de encerrar, mas precisamos insistir: em nossa compreensão, o “problema” está criado pelas “interpretações” sucessivas a respeito do tema.
Quando feita a redação da Constituição Federal, não se vedou expressamente preventivas para parlamentares, apenas tratou da hipótese de prisão em flagrante por crime inafiançável (que, reiteramos, à época manteria alguém preso por si só, daí ser possível a “revisão” do ato administrativo de prisão em flagrante pela Casa legislativa). Como ninguém mais pode ficar preso em flagrante delito só pelo flagrante (independentemente de o crime ser afiançável ou não), a Câmara só tem uma alternativa: soltar o parlamentar “preso em flagrante”.
Aí entra a questão de ser possível ou não a prisão preventiva.
Entendemos possível a prisão preventiva, pois a Constituição Federal foi omissa, devendo-se fazer sim uma interpretação restritiva (para situações excepcionais) das regras (gerais) do CPP (art. 312). E insistimos: ninguém poderia ficar preso só pela prisão em flagrante por crime inafiançável.
Prerrogativas sim, privilégios injustificáveis não.
E por fim, embora fosse até desnecessário, mas vamos deixar claro que a discussão aqui é eminentemente jurídica. E salvo melhor juízo sempre.
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