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Legítima defesa na tentativa

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10/11/2023

Parecia superada a questão da compatibilidade da descriminante da legítima defesa com a tentativa de homicídio em face do nosso direito positivo. Entretanto, ùltimamente, alguns julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo esposaram a tese da incompatibilidade entre a figura delituosa do crime tentado e a legítima defesa (“Rev. dos Tribunais”, vols. 209, página 121, e 211, pág. 99). Como são nomes ilustres os dos subscritores dêsses acórdãos, no propósito de colaborar modestamente para a discussão da matéria, resolvemos reexaminar o assunto, demonstrando o nosso ponto de vista, já tantas vêzes defendido em casos concretos.

Realmente, sustenta-se que, teòricamente, existe incompatibilidade entre a excludente e a tentativa. Mas, esquece-se de que ao júri não são propostas teses de direito e, apenas, questão de fato. Não se lembra de que a defesa goza de plenitude, assegurada pela Constituição vigente. Não se recorda de que a instituição do júri voltou a ser soberana. Todavia, não antecipemos argumentos e estabeleçamos uma seqüência natural em nosso trabalho, examinando a matéria por partes:

a) Basta uma simples leitura do questionário a ser proposto ao júri, em tais casos, para se verificar que aos jurados são submetidos dois quesitos sôbre dois fatos, depois do referente ao fato principal, a saber:

1º fato: o réu iniciou a execução; e

2º fato: o crime não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do réu.

Não se indaga ao júri sôbre a intenção do réu, porque, hoje, não se cogita mais dela para a caracterização da tentativa, como acontecia ao tempo da Consolidação e do velho Cód. Penal. o artigo 13 da Consolidação foi relegado. O Código Penal atual orientou-se objetivamente na indagação dos requisitos constituendos da figura criminal (critério que, aliás, também adotou na configuração do crime continuado).

Pois bem, – e é o que mais importa, – tendo se manifestado sôbre êsses dois fatos, o júri entra a apreciar as outras questões de fato que lhe são propostas (os demais quesitos)

b) Por que entra o júri a decidir sôbre as outras questões?

1º) porque é de sua competência privativa o julgamento de crimes doloso contra a vida (art. 141, § 28, da Constituição). Subtrair-lhe a competência para julgar a figura criminal, sob a alegação de que se trata de atentado doloso contra a vida, seria negar ao júri sua função privativa (até, precípua), o que importaria infringir o cânone constitucional:

2°) porque admitir-se que o júri, afirmando a tentativa, já houvesse condenado o réu, seria aceitar o absurdo de um tribunal sem competência para absolver;

3°) porque retirar ao júri a faculdade de apreciar a defesa invocada e inscrita na lei penal, seria cometer-se a monstruosidade de se conceber um princípio constitucional inexeqüível, com o que se estimularia um tribunal a mentir, negando a tentativa quando provada, sempre que quisesse beneficiar o réu e, assim mesmo, só o podendo fazer com perda a competência que lhe foi privativamente garantida;

4º) porque negar-se ao júri o direito de decidir sôbre os fatos invocados defesa, seria a infirmação dos princípios fundamentais da instituição do júri, das garantias individuais de plenitude de defesa e da soberania do tribunal;

5°) porque não se inscreveram questionário os quesitos da defesa pleito da e não submetê-los ao exame do júri seria flagrante desobediência ao dispo nos arts. 484, nº II, e 485 do Cód. de Processo Penal.

c) Não se indaga ao júri senão sôbre questões de fato. Primeiramente, sôbre o fato principal. Depois; sôbre os dois fatos constitutivos da tentativa: início da execução e não-consumação da morte por circunstâncias alheias à vontade do agente. Feito isso, o júri é perguntado sôbre outras questões de fato, articuladas e constitutivas da descriminante. Nenhuma incongruência se verifica. Em caso julgado pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por unanimidade de votos dos eminentes desembargadores MÁRCIO MUNHOZ, GOMES DE OLIVEIRA e AZEVEDO MARQUES, foi reconhecida a inexistência de contradição ou de incongruência em decisão do júri que, depois de afirmar êsses mesmos quesitos, reconheceu que o réu agiu em estado de completa perturbação dos sentidos e da inteligência (“Rev. dos Tribunais”, volume 99, pág. 369).

Ora, se a dirimente foi admitida depois de afirmados êsses mesmos quesitos, embora dentro dela não se encontre lugar para a vontade, porque se referiam êles apenas a questão de fato, não se vê por que razão psíquica, lógica ou jurídica se deva concluir que, afirmados os mesmos quesitos, se proíba o júri de questionar sôbre se o acusado teria agido em legítima defesa própria (de direitos ou de outrem), quando, para a configuração dela, o elemento querer é fundamental.

d) Para se demonstrar a que absurdo, data venia, conduziria a tese da incompatibilidade, basta que observemos que ela leva à seguinte conclusão: se o réu, ao invés de tentar matar, praticando um fato menos grave no sentido de sua repercussão social e do dano à vítima, efetivamente matasse, excedendo-se, quiçá, na repulsa, revelando-se menos senhor de sua vontade, êle, aí, poderia invocar a legítima defesa. Mas, tendo usado apenas dos meios necessários para se defender, tendo feito ao atacante mal menor (suficiente para repulsa), revelando-se índole perfeita, o réu não poderia valer-se da legítima defesa. Ora, sabido é que a interpretação da lei que conduz a conclusões absurdas não é legitima. Certo é, outrossim, que o bom-senso repele essa interpretação e não há, em verdade, direito que possa ser contrário ao bom-senso.

Tentativa e quesitos de legítima defesa

e) A questão não é nova. Sempre se requereu ao júri, em caso de tentativa, a inserção dos quesitos da legítima defesa quando esta afigurava-se caracterizada aos defensores e sempre foram as perguntas admitidas e respondidas (sendo que, às vêzes, alternativamente, pleiteava-se a desclassificação). De fato. Já na edição de 1932 de seu livro “Da Tentativa”, sustentava o desembargador VASCO SMITH VASCONCELOS:

Legítima defesa. Não são necessários argumentos de ordem jurídica para a demonstração de que a justificativa de legítima defesa própria, e de terceiro, ou da honra, se coaduna perfeitamente com a figura do delito tentado, motivo pelo qual abstenho-me de fazer comentários” (ob. cit., pág. 89, nº 29).

Sempre se apresentou ao júri a legítima defesa em casos de tentativa, sem qualquer estranheza ou crítica de incongruência e, isso, mesmo antes do nosso atual Código, quando a lei cogitava da intenção (art. 13 da Consolidação das Leis Penais), e o critério era acentuadamente subjetivo, não havendo razão para se mudar essa diretriz jurídica. Assim, citemos nesse sentido, entre outros, os seguintes julgados:

1°) O proferido na apelação número 12.435, de Bauru, em 3 de agôsto de 1944, em que se questionou sôbre tentativa, tendo sido formulados ao júri quesitos sôbre a legítima defesa, o que foi admitido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesse acórdão, relatado pelo desembargador BERNARDES JÚNIOR, encontramos o seguinte tópico:

“Era êste acusado de uma tentativa de homicídio. Três as hipóteses que podiam ocorrer no seu julgamento: ou seria êle absolvido pelo reconhecimento da justificativa da legítima defesa, que êle invocava, ou seria condenado de acôrdo com o libelo, ou o júri lhe desclassificaria o crime para lesões corporais” (“Rev. dos Tribunais”, vol. 154, pág. 88).

2°) O proferido na apelação número 15.549, da Capital, em que o juiz absolveu o denunciado por tentativa de homicídio, reconhecendo a seu favor a justificativa da legítima defesa. O despacho foi reformado, mas não se negou a possibilidade da defesa reconhecida, motivando a reforma apenas a alegação da falta de prova da causa excludente (“Rev. dos Tribunais”, vol. 159, pág. 562). Foi relator o desembargador BERNARDES JÚNIOR e participaram do julgamento os desembargadores VICENTE DE AZEVEDO e PAULO COSTA.

3°) O proferido na apelação número 14.249, de Pederneiras; em que se reconheceu positivamente a possibilidade de reconhecimento da legítima defesa em caso de tentativa de morte, pelos votos dos desembargadores AZEVEDO MARQUES, AUGUSTO DE LIMA e RENATO GONÇALVES. Dêsse julgado constam afirmações como estas:

“Finalmente, de maneira imperfeita ou prejudicial, foram formulados os quesitos da legítima defesa, especialmente o primeiro…

“A legítima defesa é sem dúvida uma questão de direito e sob êsse aspecto define-a a nossa lei penal. Entretanto, quando proposta ao júri, deve objetivar fatos: aquêles fatos que, segundo a definição legal, caracterizam e condicionam essa causa excludente da criminalidade” (“Rev. dos Tribunais”, vol. 163, pág. 98).

4°) Outros julgados mais recentes aceitam a perfeita, congruência entre a tentativa e a legítima defesa. Assim, entre êles, os que vêm publicados na “Revista dos Tribunais”, vols. 192, pág. 116, 208, pág. 96, 221, pág. 113, e 222, pág. 66. Eminentes julgadores se pronunciaram nesse sentido, através dêsses acórdãos: MANUEL CARLOS, CUSTÓDIO SILVEIRA, ODILON COSTA MANSO, TRASÍBULO DE ALBUQUERQUE, OTÁVIO LACORTE e CANTIDIANO GARCIA.

5°) Na apelação nº 19.938, de Jaú, a matéria foi largamente debatida pelas partes, tendo o Tribunal confirmado por unanimidade a decisão do júri, que reconheceu a legítima defesa num caso de tentativa de morte. Vê-se, pois, que se vem admitindo reiteradamente a perfeita compatibilidade da legítima defesa com os crimes tentados.

Teoria da incompatibilidade

f) Pela teoria da incompatibilidade, chegaríamos a outra conclusão berrantemente antijurídica, que é a seguinte: tôda a tentativa seria punível, ou, ainda, não haveria possibilidade de defesa no caso de tentativa de morte. Realmente: não se poderia invocar a dirimente da irresponsabilidade (arts. 22 e 24, § 1º), porque nela há a ausência da vontade, o que é repelido pela tentativa, que reclamaria vontade determinada; não se poderiam alegar as justificativas da legítima defesa, do estado de necessidade e do cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito, porque tôdas elas, com um mesmo fundo de vontade determinada, não se coadunariam com a indeclinabilidade de dolo na tentativa. Ora, isso seria absurdo, por se admitir uma figura criminal sem defesa, com a condenação fatal do agente, o que é repelido por todos os princípios de direito penal.

g) Imagine-se uma hipótese de tentativa branca, em que a vítima não fôsse fìsicamente lesada. Aí, seria impossível uma defesa de desclassificação do delito. Então a única solução seria constranger-se o réu a mentir para se obter a negativa do crime tentado, ou, se êle se revelasse realmente honesto e não mentisse, para esconder sua vontade determinada, seria fatalmente condenado pela simples razão de não lhe ampararem as justificativas legais. Evidentemente, seria uma conclusão também absurda, que jamais poderia ser desejada pelo legislador do Cód. Penal.

Configuremos outro exemplo: o ladrão assalta a casa de A, o qual entra em luta com o assaltante, saindo ferido gravemente. Mas, consegue tomar o revólver ao assaltante e com esta arma desfecha cinco tiros no ladrão, com positiva intenção de matá-lo, não o atingindo, entretanto, já por se encontrar ferido, já por sorte do gatuno, que foge. A comparece em Juízo e afirma sua intenção de matar o assaltante, Está, configurada a tentativa. Não há ferimentos que possibilitem a desclassificação. Não se trata de crime impossível, mas puramente de tentativa de morte. Pois bem, aceita a incompatibilidade, A não teria sua ação justificada. O juiz nem o Tribunal do Júri lhe poderiam reconhecer a legitimidade de defesa de seu lar e de sua pessoa. Êle quis matar, logo sua ação é dolosa, e deve ser condenado. Poderá haver maior disparate?!…

h) O exemplo acima focalizado serve para demonstrar o enorme vício de lógica da argumentação dos defensores da incompatibilidade, quando dizem que a ação não pode ser justificada porque é dolosa, sendo certo, ao revés, que a ação não pode ser justificada porque é dolosa, sendo certo, ao revés, que a ação não é dolosa porque é justificada. É aí que reside a grande confusão em que se alicerça tôda a sustentação da corrente oposta à nossa.

i) Se vingar o ponto de vista daquela corrente, chegar-se-ia, na prática, a conseqüência profundamente ruinosa para o próprio interêsse social: os agentes não limitariam a sua ação ao terreno da defesa e, quando a agressão reclamasse apenas repulsa sem morte, êles se empenhariam em ir ao máximo, ao homicídio, porque só assim poderiam invocar a legítima defesa, que se pretende recusar aos que agem com menos prejuízo para a vítima e para a sociedade, aos que apenas tentam matar para se defender.

j) No caso da legítima defesa, o agente tem a sua vontade determinada para o fim, que é defender-se. Quer defender-se, matando ou ferindo. Se mata, pode invocar a justificativa. Se fere, também pode invoca-la. Por que, então, não poderia se não mata e apenas fere para matar, ou mesmo se não fere e apenas tenta matar? Não há uma razão de ordem psicológica, jurídica ou lógica pela qual se lhe negue êsse direito nesta última hipótese, menos grave pelas suas conseqüências e pelos seus motivos morais. Como se disse, o vício de argumentação da corrente contrária está em afirmar que a ação não pode ser justificada porque é dolosa, quando, ao contrário, a ação não é dolosa porque é justificada. Não se pode confundir vontade com dolo. No crime de homicídio, o agente quer a morte do adversário, para se defender. Sua ação é completa e alcança o objetivo. Mas, deixa de ser dolosa, porque é justificada. Não há razão pela qual se deva recusar a mesma justificação para a hipótese de simples tentativa.

k) Também o ponto de vista oposto ao nosso conduziria o nosso raciocínio no sentido da impossibilidade da tentativa nos casos de dolo indeterminado. Entretanto, a jurisprudência dominante e a grande maioria dos escritores são pela admissibilidade da tentativa no dolo indeterminado (cf. MENDES PIMENTEL, “Revista dos Tribunais”, vol. 25, pág. 128; FRANZ VON LISTZ, “Tratado de Direito Penal Alemão”, tomo I, pág. 328, nº 5, 2° tradução do Dr. JOSÉ HIGINO DUARTE PEREIRA, in “Rev. dos Tribunais”, volume 63, pág. 122; “Rev. dos Tribunais”, vol. 154, pág. 544).

Inadmissibilidade de tentativa nos crimes de ímpeto

Ainda, segundo a tese contrária à nossa, seria inadmissível a tentativa nos crimes de ímpeto, em que não se pode falar em intenção determinada, consciente e querida, em que há impossibilidade da determinação na resolução tomada sob paixão. Mas, hoje, é dominante, na doutrina e na jurisprudência, a possibilidade da tentativa nos crimes de ímpeto (“Rev. dos Tribunais”, vols. 148, pág. 46, e 158, página 87; MENDES PIMENTEL, in “Rev. dos Tribunais”, vol. 25, pág. 130; GALDINO SIQUEIRA, “Direito Penal Brasileiro”, parte geral, pág. 171).

l) Nunca é demais que se recorde a grande verdade de que o júri julga questões de fato (“Rev. dos Tribunais”, volumes 104, pág. 52, 142, pág. 530, e 162, página 543), pois prefere êle “o verdadeiro julgamento do cidadão pelos seus pares” (NOÉ AZEVEDO, “As garantias da liberdade individual”, pág. 205), não lhe interessando as sutilezas das questões acadêmicas ou doutrinárias. Dessa sorte, uma vez que revele conscientemente o seu desejo de absolver, respondendo aos quesitos, no uso de sua soberania, não se lhe podem opor embargos ao seu propósito.

m) Ao contrário de se repelirem, a tentativa e a legítima defesa harmonizam-se perfeitamente. A legítima defesa reclama pleno conhecimento da necessidade, uma vontade determinada. No dizer de OBARRIO: a legítima defesa é um fato instintivo, é uma lei da natureza. O perigo a determina, a necessidade a justifica. A lei positiva não podia deixar de reconhecê-la como um direito inalienável do indivíduo, não permitindo que a pessoa súbita e violentamente agredida seja vítima indefesa. Na tentativa, também há essa vontade. Ela pode ser dirigida honestamente para o mesmo fim: repelir uma agressão injusta. A vontade só será perniciosa, dolosa, se não nascer de uma situação de legitima defesa. Quem age nessa situação de legítima defesa exercita um direito, obra em nome da sociedade e por interêsse dela mesma, ativa-se, enfim, lìcitamente. Logo, se age lìcitamente, não se pode proclamar a priori que agiu dolosamente.

n) É raciocínio evidentemente viciado o que parte da premissa de que tôda tentativa é fruto de colo determinado. Aí há uma generalização lógica, notadamente quando é sabido que o dolo não se presume. Não é verdade que a tentativa de morte, quando o agente encontra-se no exercício de um direito, defendendo-se de uma agressão injusta, em atitude justificada, agindo lìcitamente, seja dolosa. Portanto, a premissa é inexata. O argumento deve ser armado de outra forma: todo indivíduo que age em legítima defesa pratica um ato ilícito, que não é doloso. Se o réu age em legítima defesa, pratica, pois, ato lícito. Logo, quem assim faz, não atua dolosamente, porque em legítima defesa.

Êsse raciocínio é perfeitamente regular, satisfaz às exigências da lógica, atendendo às regras dessa forma de argumento.

É verdade que, além daqueles dois acórdãos citados de início, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, na apelação nº 16.701, de Santa Cruz do Rio Pardo, entendeu ocorrer contradição nas respostas que afirmam a tentativa e a legítima defesa. Entretanto – data maxima venia – os motivos de decidir dêsse último acórdão, em que pêse à autoridade dos votos vencedores, não convencem, parecendo-nos que a razão está com o eminente desembargador vencido.

De fato, o julgado, no seu final, acaba por admitir a inserção dos quesitos de legítima defesa no caso de tentativa, em obediência ao art. 483, nº III, do Cód. de Proc. Penal. Apenas, subordina essa inserção a uma questão de ordem no questionário. Ora, isso quer dizer que é possível invocar-se a legítima defesa em caso de tentativa e que, pois, o júri pode reconhecer a justificativa.

O julgado, portanto, subordinou a defesa a um simples formalismo não substancial, para se chegar, em verdade, ao mesmo resultado final.

Se, em substância, em essência, foi reconhecida a admissibilidade da defesa, havendo já o júri se mostrado esclarecido em relação às questões de fato e julgando êle apenas o fato, parece-nos que melhor se atenderiam aos princípios da plenitude de defesa e da soberania da instituição não se negando efeito ao seu veredicto, não se anulando a decisão do Tribunal popular e soberano, por uma simples sutileza de ordem meramente formalística, teórica ou fetichista. Aliás, na hipótese, não teria ocorrido prejuízo, indispensável à caracterização de nulidade, nos têrmos do artigo 563 do Cód. de Proc. Penal.

o) Note-se, ainda, que o legislador tratou, no mesmo título, do crime consumado e tentado (pois não se contesta que a tentativa é uma figura de crime), aí estabelecendo as causas excludentes para tôdas as modalidades de crime (consumado ou tentado), sem a distinção que ora se pretende criar. Ora, onde a lei não distingue, lícito não é ao intérprete distinguir, notadamente em prejuízo do réu ou da defesa, cuja plenitude é proclamada dentro de um princípio constitucional.

p) Assim como não há direito (bem jurídico) que não seja suscetível de lesão ou periclitação, não há ato praticado para a defesa dêsse bem atacado que não mereça a justificativa, uma vez que revestido dos requisitos do art. 21 do Cód. Penal. Entender-se que é preciso matar para que o agente se beneficie com a justificativa, quando o revide já se torna completo sem a morte, seria exigir precisamente a falta de moderação, o excesso, ou a defesa fora do “limite razoável da necessidade” (Exposição de motivos do Cód. Penal).

VINCENZO LA MEDICA afirma: “Por isso, visto que tôdas as infrações ofendem ou ameaçam os bens e interesses tutelados pela lei penal, e são, portanto, feridas com a pena como conseqüência jurídica do fato que viola a lei penal, quando intervém uma causa de exclusão da punibilidade, deve ela, natural e conseqüentemente, aplicar-se em relação a tôdas as infrações, isto é, tanto aos delitos como às contravenções” (“O Direito de Defesa”, pág. 202).

Fazendo, embora, restrição ao entender do grande jurista, no tocante à extensão generalizada da excludente às contravenções, certo é que está êle com a melhor doutrina quando sustenta que, “quando intervém uma causa de exclusão da punibilidade, deve ela, natural e conseqüentemente, aplicar-se em relação a tôdas as infrações”, inclusive, pois, à figura delituosa do crime tentado.

q) Objetam os nossos ilustres opositores que se o júri afirmasse que o agente excedeu culposamente os limites da legítima defesa, o caso seria insolúvel. Ainda aí não estão com a razão. De fato, se o júri afirmasse o excesso culposo, a tentativa não seria punida, porque inexiste ela nos crimes culposos. Não seria punível a tentativa de morte. Mas, o excesso, objetivamente verificado (as lesões), seria punido com o crime culposo; operando-se, assim a desclassificação do caso para o artigo 129, § 6º, do Cód. Penal, com transferência de competência para o juiz singular. Da mesma forma se procederia se o caso fôsse de tentativa branca, passando o juiz a decidir sôbre se se verificaria ou não tentativa de lesão, a ocorrência de fato contravencional ou de qualquer outra modalidade de delito.

Nessa hipótese, ainda, de tentativa sem lesão, se o júri afirmasse erradamente o excesso, revelaria apenasmente não se achar esclarecido para decisão do caso, o que não importa reconhecer que não devesse ser apreciada a defesa.

r) Também reputamos valiosas as opiniões dos consagrados juristas professôres JOSÉ FREDERICO MARQUES (“O júri e sua nova regulamentação legal”, pág. 182), MAGALHÃES NORONHA (“Revista dos Tribunais”, vol. 221, pág. 113) e FLÁVIO QUEIRÓS DE MORAIS (“Rev. dos Tribunais”, vol. 192, pág. 11), perfilhando a tese da inexistência da pretendida incompatibilidade.

Por êsses motivos, continuamos a sustentar, dentro do nosso direito penal vigente, a inexistência de incompatibilidade entre a legítima defesa e a tentativa. Elas são perfeitamente harmônicas e podem ser apreciadas e decididas legitimamente pelo júri e pelo juiz singular, sem risco de incongruência.

Sobre o autor

Teófilo Xavier de Mendonça, advogado e professor na Faculdade de Direito de Bauru, Estado de São Paulo.

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