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Juiz das garantias: muito barulho por nem tanto
Eugenio Pacelli
13/03/2020
Há algo que se deve aprender desde o primeiro ano nas Faculdades de Direito: antes de se debater qualquer questão jurídica é preciso definir previamente em que nível se situará a discussão. Em matéria de novidade legislativa, então, cumpre combinar com o interlocutor se o que se irá debater é a validade da nova lei, ou se será a sua pertinência ou viabilidade prática, ou, ainda, se, tal como veio, trata-se de uma legislação ruim ou boa, do ponto de vista de nossas preferências dogmáticas e teóricas.
Desde o ano de 2009, quando a Comissão de Juristas instalada pelo Senado da República apresentou seu Projeto de Novo CPP, e da qual tivemos a honra de compor, como Relator-Geral, discute-se arbitrariamente a questão do juiz das garantias. Mas, ao invés de apreciar o aludido projeto, que desde o ano de 2010 lá se encontra (na Câmara dos Deputados), o nosso Parlamento preferiu pinçar daquele texto algumas ideias, dentre as quais, de novo, sobressai o debate sobre o juiz das garantias.
De início, advirta-se que a grande questão não reside na sua instituição formal, a ser feita por norma interna dos órgãos do Poder Judiciário que detém a competência para deliberar sobre a conveniência da composição de sua jurisdição. No entanto, com ou sem a regular formalização do juiz das garantias, o que importa mesmo discutir é o quanto disposto no artigo 3º-D, da Lei 13.964/19, a dispor que “O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos artigos 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo”.
O objetivo da norma é tão claro o quanto se pode exigir. É ali que efetivamente se institui o juiz das garantias, estabelecendo-se a divisão de funções jurisdicionais em um mesmo processo. A rigor, aliás, somente se poderá falar em processo após o recebimento da denúncia ou queixa; a fase anterior, de investigação, não se faz no processo, embora ali se possa exercer funções tipicamente jurisdicionais, como é o caso da decretação de medidas cautelares da competência privativa do Poder Judiciário.
Portanto, criada está a divisão de tarefas. Mas, como sói acontecer, com alguns deslizes legislativos. Basta ver que a nova lei faz referência ao recebimento da denúncia com remissão ao artigo 399, do CPP. Todos sabemos que esse momento processual, de recebimento da peça acusatória, ocorre na fase do artigo 396, CPP, que, após a citação do acusado, dá início ao processo. O artigo 399 já pressupõe a apreciação preliminar da viabilidade de questões de mérito, prevendo, inclusive, a absolvição sumária.
Não surpreende, então, o equívoco que remete o impedimento do magistrado aos dispositivos dos artigos 4º e 5º, CPP, que cuidam da tramitação ordinária do inquérito policial. Nesse ponto, não poderia ter sido mais infeliz o legislador. Ora, uma coisa é tentar consolidar o ideal da neutralidade do juiz que julga o caso penal, chegando-se até ao ponto de afastar aquele magistrado que, na fase de investigação, examina previamente questões de alta relevância e defere — ou indefere — medidas cautelares pessoais, reais ou probatórias.
Outra, muito diferente, é afastar o juiz que tenha atuado na fase de investigação unicamente como controlador da regularidade de sua tramitação, o que ocorre quando o juiz apenas concede prazo para a prorrogação do inquérito, sem se imiscuir em nenhuma questão prévia. Nesse passo, parece-nos injustificável a regra de afastamento. Escolha infeliz e insustentável em uma visão de sistema mais consistente, considerando-se apenas os novos dispositivos então acrescentados. Em síntese: não tendo havido a decretação anterior de qualquer medida cautelar na fase de investigação, nada justifica a aplicação da regra de afastamento. Portanto, ter-se-ia aqui, hipótese de não aplicação específica à hipótese excepcional, sem prejudicar a validade intrínseca da Lei.
Não será nesse pequenino espaço que se poderá descer a detalhes de maior profundidade em relação ao juiz das garantias. Mas não se pode deixar de fazer algumas observações.
Em primeiro lugar, nada tem de inconstitucional a previsão legislativa que cria causa específica de impedimento do magistrado, ao fundamento da existência de risco fundado de antecipação de juízo em fase anterior ao exercício da ampla defesa. Isso existe mundo afora. Não é preciso tanto barulho por isso.
Mas pode-se criticar, e muito, o tratamento que a nova Lei reserva ao referido juiz (das garantias), nas comarcas onde houver unicamente um magistrado (artigo 3º-D, parágrafo único). Observe-se que nesses casos a aplicação da regra do impedimento criará inúmeros obstáculos à persecução em juízo, dadas e conhecidas as limitações de recursos humanos em tais comarcas. Nas capitais e comarcas maiores não haverá maiores perturbações, sobretudo se considerados os proveitos da nova regra. Quanto à previsão de substituição por rodízio, nova crítica, e mais severa. Ora, à Lei cabe apenas fixar a regra do impedimento e não a forma pela qual se dará a substituição do juiz impedido. Nesse ponto, parece-nos presente invasão de matéria reservada à organização judiciária de cada Poder Judiciário. Estamos no campo da invalidade, pois.
De toda sorte, a regra de impedimento, que constitui uma ampliação das garantias processuais individuais, ainda que sejam indemonstráveis os receios quanto à perda de imparcialidade, pode ser criticada unicamente quanto à sua pertinência, mas jamais quanto à respectiva validade. É válida a opção legislativa. Pode-se não concordar com ela e até julgá-la contraproducente aos interesses da persecução, a despeito de que uma tal argumentação dependerá de uma série de circunstâncias estranhas à norma. Mas é norma válida e deve ser cumprida, ainda que com os ajustes hermenêuticos dogmaticamente possíveis e justificados.
Ojuiz das garantias, do ponto de vista formal, dependerá de atos das autoridades competentes para a regulação do bom andamento das atividades jurisdicionais. Mas, do ponto de vista material, será a norma do impedimento do juiz que determinou medidas cautelares na fase de investigação a grande responsável pela consolidação da ideia do incremento de nova garantia processual individual na ordem brasileira. Com ou sem a formalização do juiz das garantias, todo aquele que atuar na fase de investigação e determinar o afastamento de liberdades públicas estará impedido de atuar como juiz do processo. A partir da vigência da lei, é claro.
Nesse particular, parece-nos que os debates estão se encaminhando para o exame de questões despregadas da nova sistemática. A aplicação de lei processual é imediata, respeitados os atos já praticados. A nosso aviso, todas as investigações em curso — a partir da vigência da Lei — e que se submetam aos requisitos da prejudicialidade judicial (decisões de quebras de sigilos, prisões etc) determinarão o afastamento do juiz para o respectivo processo, se ainda não oferecida a denúncia ou queixa. Processos já instaurados (com denúncia ou queixa recebidas), evidentemente, não serão atingidos. Com ou sem a formalização do juiz das garantias.
E por que se deixou ao juiz da investigação a apreciação da denúncia, para recebimento ou para a sua rejeição? Para consolidar, ao máximo, a regra da imparcialidade, evitando-se qualquer antecipação do juiz no exame do mérito das pretensões acusatórias. Para nós, providência desnecessária, se considerarmos que o recebimento da peça acusatória há de ser parnasiano, sem incursão mais profunda nas questões de fato e de direito.
Por fim, os tribunais. Não há como negar a singularidade de órgãos colegiados.
Note-se que o Plenário do Supremo Tribunal Federal é composto de 11 magistrados, em número de cinco apenas para as Turmas. A aplicação da regra de afastamento do Relator que tiver decretado medidas cautelares na fase de investigação (nas ações penais originárias) implicaria, em princípio, a redução do colegiado para número par, a par de outros inconvenientes. Por isso, pensamos que as normas regimentais deverão resolver o problema, com o acréscimo de novo regramento das substituições de magistrados impedidos.
Uma última palavra. É claro que o juiz do processo não poderia ficar adstrito às decisões do juiz da investigação. Não porque sejam pessoas diferentes, mas porque são fases absolutamente distintas e o mesmo juiz sempre pôde, desde muito tempo, rever seus atos, quanto à necessidade da respectiva manutenção ou mesmo de sua invalidação.
Leis são assim. Dividem opiniões e preferências. Mas saibamos o que uma coisa e o que é outra.
FONTE: Eugênio Pacelli Advocacia e Consultoria
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