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CLÁSSICOS FORENSE
PROCESSO CIVIL
REVISTA FORENSE
Venda De Ascendente A Descendente. Natureza Da Nulidade E Prescrição, de Francisco Pereira De Bulhões Carvalho
Revista Forense
24/01/2024
SUMÁRIO: O art. 1.132 do Cód. Civil proíbe qualquer espécie de venda, quer real, quer simulada, de ascendente para descendente, sem consentimento dos demais. Admitido que o art. 1.132 proíba apensa venda simulada, a respectiva ação anulatória teria natureza complexa e especial e jamais poderia ser confundida com simples ação de simulação. Natureza da nulidade decorrente da violação do art. 1.132: a) sistema da nulidade absoluta; b) sistema da nulidade relativa por presunção legal absoluta da simulação; c) sistema da nulidade relativa por simulação a ser provada; d) sistema da nulidade relativa não enumerada expressamente no artigo 147 do Cód. Civil; e) sistema da ineficácia absoluta; f) sistema da ineficácia relativa ou inoponibilidade. Em qualquer caso, o art. 178, § 9°, V, do Cód. Civil é inaplicável para regular a prescrição da ação oriunda da violação do art. 1.132. Natureza e efeitos da venda efetuada por interposta pessoa: a) lei alguma autoriza um descendente a se opor a doação ou a venda fictícia que seu ascendente efetua a um estranho, salvo no que exceder sua parte disponível. Tal transação, considerada autônomamente, seria válida, ainda quando simulada. Não poderia portanto ser anulada mediante simples ação de simulação, com prescrição de quatro anos; b) entender que, mediante o simples expediente de interposição de pessoa, um ato nulo se transforme em anulável por simulação e que a prescrição de 30 anos se reduza a quatro anos, é qualquer coisa de extravagante e que, a ser admitida, derruiria todos os princípios fundamentais do direito e da própria ordem social.
1.O art. 1.132 do Cód. Civil
Deveremos examinar, sucessivamente: 1°) qual a natureza da nulidade decorrente da violação do art. 1.132 do Cód. Civil; 2º) qual o tempo da prescrição; 3º) se o prazo da prescrição decorre da data das escrituras de venda ou do falecimento do ascendente-vendedor; 4º) se influi sabre o prazo da prescrição a circunstância da venda proibida pela lei ter sido feita por interposta pessoa.
Natureza da nulidade
1° PONTO: NATUREZA DA NULIDADE
2. O dispositivo a ser examinado é do teor seguinte:
“Os ascendentes não podem vender aos descendentes sem que os outros descendentes expressamente consintam”.
Trata-se de um texto legal de redação meramente proibitiva, isto é, em que o legislador se limitou a proibir a prática de determinado ato, sem determinar a sanção para o caso de não ser obedecido.
No caso, entretanto, toda a doutrina está acorde em que a violação do citado preceito importa a nulidade do ato.
Resta, porém, esclarecer a natureza dessa nulidade.
A questão apresenta-se tão complexa que vemos CLÓVIS BEVILÁQUA, um dos nossos mais insignes jurisconsultos, além de autor do projeto do Código, parecer hesitar na classificação da nulidade decorrente da infração do art. 1.132 entre os casos de nulidade absoluta ou relativa, como veremos adiante.
a) Sistema da nulidade absoluta
3. Ao comentar o art. 145, V, do Código Civil, CLÓVIS BEVILÁQUA aponta o art. 1.132 como sendo um dos casos típicos da nulidade absoluta a que se reporta aquêle dispositivo, segundo o qual “é nulo o ato jurídico quando a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito”: “Algumas vêzes (comenta o referido escritor) o Código, em vez de dizer o ato é nulo, diz tal pessoa não o pode praticar. Tais são, por exemplo, os casos dos arts. 1.132, 1.133 e 1.134” (“Código Civil Comentado”, 4ª ed., pág. 404, obs. 2, in fine, ao art. 145).
Tal é a doutrina tradicional em nosso direito, que nos veio das Ordenações (4, 12), donde passou assim sintetizada para a Consolidação das Leis Civis de TEIXEIRA DE FREITAS:
“Art. 382. Não podem vender:
“§ 1º Os pais aos filhos, aos netos e “aos mais descendentes, sem consentimento dos outros filhos, ou descendentes.
“Art. 383. Serão nulas as vendas feitas em contravenção do § 1° do artigo antecedente, e no mesmo caso estão as trocas desiguais”.
Em face a texto tão claro, não discrepavam os comentadores (CARLOS, DE CARVALHO, “Direito Civil”, arts. 1.038, letra a, e 1.040; M. I. CARVALHO DE MENDONÇA, “Contratos”, vol. 1, número 141; MARTINHO GARCÊS, “Nulidades”, II, nº 130; CLÓVIS BEVILÁQUA, “Direito das Obrigações”, § 131).
Ao redigir o seu projeto de Cód. Civil, CLÓVIS BEVILÁQUA teve em mente sem dúvida reproduzir o direito anterior, quanto à proibição de venda entre ascendentes e descendentes, salvo consentimento dêstes, que, pelo art. 1.271 dêsse projeto, poderia ser expresso ou tácito.
Por mera inadvertência, entretanto, o nosso codificador não fêz seguir o preceito proibitivo em questão de sanção expressa de nulidade. E o mesmo ocorreu também em relação aos dispositivos subseqüentes, que vieram a constituir os artigos 1.133 e 1.134 do Cód. Civil, relativos à compra pelos tutôres, mandatários, empregados públicos, etc., de bens confiados à sua guarda ou administração.
Sòmente quanto à troca desigual, ocorreu ao legislador deixar expressa a decretação de nulidade:
“É nula a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes” (art. 1.164, II, do Cód. Civil).
Tal terá ocorrido porque o nosso legislador se terá inspirado como modêlo no texto da Consolidação das Leis Civis que colocou em dispositivos diferentes e sucessivos a proibição da venda (art. 382) e a sanção de nulidade (art. 383).
Foi também esta a técnica adotada pelo Código português, que, em seguida a vários preceitos proibitivos, nos artigos 1.562 e 1.565, correlatos aos dos nossos 1.133 e 1.132, coloca a regra geral de que “os contratos de compra e venda, quer feitos diretamente, quer por interposta pessoa, com quebra das disposições contidas nos artigos antecedentes, serão de nenhum efeito” (art. 1.567).
Apesar daquela omissão, relativamente aos arts. 1.133 e 1.134, a jurisprudência nunca deixou de os interpretar muito naturalmente, entendendo que o simples fato da compra por parte de tutôres, mandatários e demais pessoas ali indicadas de bens confiados à sua administração, seria nula por infração à regra legal.
Sòmente no caso do art. 1.132 é que uma corrente de doutrinadores achou que deveria procurar um outro motivo especial de nulidade, não decorrente da simples violação do texto daquele dispositivo.
Imaginaram então que o “motivo” da proibição constante do art. 1.132 deveria ter sido evitar simulação de venda em favor dum descendente para fraudar a legítima dos demais, e, por isso, a nulidade decorreria da simulação da venda e não da pura e simples realização da venda proibida pela lei.
Entretanto, em primeiro lugar, o motivo apontado pelas Ordenações para essa proibição não era, apenas o de evitar simulações, como também o de evitar demandas, entre ascendentes e descendentes, in verbis: “por evitarmos muitos enganos e demandas que se causam e podem causar das vendas, etc.” (Ordenações, 4, 12).
Em segundo lugar, a simulação sòmente traz a nulidade do ato aparente (venda) subsistindo a validade do ato real (doação), que, pelo art. 1.171 do Código Civil, valeria como adiantamento da legítima.
Ora, esta não é positivamente a sanção decorrente da violação do art. 1.132.
Em terceiro lugar, o art. 1.132 não alude à prova de simulação e, como diz, com muito propriedade, o ministro NÉLSON HUNGRIA, “não se pode rastrear o motivo da lei para subverter o seu texto peremptório e iniludível. O legislador, advertido pela lição da experiência que aconselha a não-permissão da venda de ascendente a descendente, para conjugar simulações lesivas do interêsse dos demais descendentes, resolveu proibi-la apriorìsticamente, salvo assentimento dos últimos. Não há indagar se houve ou não simulação. A venda tem de ser declarada nula se qualquer dos demais descendentes não consentirem e pleiteiem em Juízo. Dizer-se que o art.1.132 encerra apenas uma presunção juris de simulação, elisível pela prova em contrário, é, data venia dos que opinam diversamente, construir inteiramente à margem da letra categórica e incontornável da lei” (ac. de 27 de dezembro de 1951, no rec. ext. nº 19.739, 1ª Turma do egrégio Supremo Tribunal Federal, in “Diário da Justiça” de 19 de maio de 1952, página 2.278; e “Arq. Judiciário”, vol. 102, pág. 267).
Como observou o ministro POLICARPO DE AZEVEDO, em acórdão unânime do Tribunal de Justiça de São Paulo, a propósito do art. 1.132, “não é simulação ” ou fraude a causa determinante da anulação do contrato. A falta do consentimento expresso dos descendentes do vendedor é que vicia o ato da alienação” (apud JAIR TOVAR, “Rev. de Direito”, vol. 98, pág. 481).
Com a mesma segurança, mostra JAIR LINS: “O autor não tem de provar que a sua legitima está desfalcada: a única obrigação que é imposta é da prova de que a venda se fêz entre ascendente e descendente. Nada mais” (parecer, transcrito por CARVALHO SANTOS, “Código Civil Interpretado”, vol. 16, pág. 80).
Embora dividida a jurisprudência, a referiria orientação tem sido adotada em numerosíssimas decisões dos tribunais, inclusive nas mais recentes do egrégio premo Tribunal Federal, como se poderia verificar, percorrendo os repertórios de julgados (ac. de 25 de junho de 1953, do, egrégio Supremo Tribunal, rec. ext. número 22.778, in “REVISTA FORENSE”, vol. 158, pág. 121; ac. de 27 de dezembro de 1h51, supracitado, confirmando ac. do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; ac. de 12 de janeiro de 1953, do mesmo Supremo Tribunal, “Arq. Judiciário”, vol. 108, pág. 281, rec. ext. nº 19.165; ac. do mesmo Tribunal, no rec. ext. número 8.898, citado pelo de 12 de janeiro de 1953, e publicado no “Diário da Justiça” de 13 de fevereiro de 1947; pág: 292; ac. da 2ª Turma, de 18 de julho de 1944, relator ministro OROZIMBO NONATO, rec. ext. nº 4.794, “Arq. Judiciário”, volume 74, pág. 25, confirmando decisão do Tribunal de Pernambuco; acs. do Tribunal do Rio Grande do Sul de 1 de setembro de 1942, “REVISTA FORENSE”, volume 94, pág. 318; de 24 de junho de 1945, “REVISTA FORENSE”, vol. 104, pág. 94; de 8 de dezembro de 1944 (Câmaras Reunidas), “REVISTA FORENSE”, vol. 102, pág. 501; acs. do Tribunal de São Paulo, de 28 de, abril de 1922, “Prática Civil”, de OLIVEIRA FILHO, 3, pág. 235; de 4 de agôsto de 1931, “Rev. dos Tribunais”, volume 80, pág. 326; de 8 de fevereiro de 1944, “Rev. dos Tribunais”, vol. 148, página 589; de 19 de fevereiro de 1947, “REVISTA FORENSE”, vol. 114, pág. 148; ac. do Tribunal do Distrito Federal, de 18 de janeiro dó 1942, “Arq. Judiciário”, vol. 82, pág. 228, etc.).
b) Sistema da nulidade relativa por presunção legal absoluta de simulação
4. Contra o sistema da nulidade absoluta, entretanto, ocorre uma objeção gravíssima.
Nos têrmos do art. 146 do Cód. Civil, a nulidade absoluta pode ser alegada por qualquer interessado e deve ser pronunciada ex officio pelo juiz, quando conhecer do ato ou dos seus efeitos e a encontrar provada.
Ora, certamente tal não poderia ocorrer em relação ao art. 1.132 do Cód. Civil, onde a nulidade foi estabelecida como medida de proteção dos interêsses dos descendentes, do vendedor; que não consentissem na venda a outro descendente.
Tratar-se-ia, em tal caso, duma nulidade tìpicamente de caráter relativo, isto é, instituída a favor de determinado interessado e que sòmente por êle pode ser alegada, segundo o conceito clássico de PLANIOL: “L’action en nullité est un moyen de protection pour une personne déterminée; c’est donc à cette personne seule que l’action doit appartenir; elle seule peut annéantir l’acte, en se servant de l’arme que la loi lui met en main. A l’égard de toute autre personne, l’acte est aussi valable; aussi solide, que s’il n’étadt affecté d’aucune cause de nullité” (“Traité El. De Droit Civil”, vol. 1, n° 343).
É verdade que, na enumeração do artigo 147 do Cód. Civil, são apontados apenas como casos de anulabilidade os correspondentes à incapacidade relativa, ou vício resultante de êrro, dolo, coação, simulação ou fraude.
Entretanto, como veremos (infra número 9), o próprio Código indica como anuláveis outros casos que não podem ser incluídos no citado art. 147 (arts. 239, 388, 1.177, 1.439, etc.).
5. A interpretação, portanto, límpida e clara do art. 1.132 do Código leva-nos a admitir que o mesmo constitui um caso de ato anulável fora da enumeração Incompleta do art. 147.
Tem-se procurado, porém, turbar a clareza dessa conclusão, procurando restringir a aplicação do art. 1.132 sòmente ao caso da venda encobrir uma doação em prejuízo das legítimas.
Cita-se, para, tanto, um comentário de CLÓVIS BEVILÁQUA, segundo o qual “as vendas realizadas contra essa proibição (do art. 1.132) são nulas”, mas “naturalmente são, os descendentes que promovem a declaração da nulidade, porque é em benefício da igualdade das legítimas que a lei prescreve a nulidade das vendas” (“Código Civil Comentado”, vol. 4, obs. 4, a, ao art. 1.132).
Ora, nesse parecer está apenas o reconhecimento do caráter relativo da nulidade resultante da violação do art. 1.132 e está indicado o motivo pelo qual sòmente aos descendentes é reconhecida a qualidade para pedir a declaração dessa nulidade. Não se afirma, porém, que sòmente quando tenham sido prejudicados em suas legítimas, os descendentes possam prevalecer-se do direito que lhes faculta o art. 1.132.
Nem poderia ter sido isso afirmado pelo egrégio mestre. Do contrário, valeriam as vendas proibidas pelo art. 1.132 enquanto não prejudicassem as legítimas dos demais descendentes, e o art. 1.132 tornar-se-ia redundante e sem qualquer finalidade, porquanto o resguardo das legitimas já se encontra feito pelo artigo 1.176 do Cód. Civil.
6. Deve-se também observar que, embora CLÓVIS ensinasse que a razão da proibição do art. 1.132 “é evitar que, sob color de venda, se façam doações prejudicando a igualdade das legítimas”, jamais afirmou que a declaração da nulidade dependesse de prova da simulação da venda.
Ao contrário, aquêle eminente jurisconsulto, ao mesmo tempo que proclamava ser o preceito do art. 1.132 do Código Civil “idêntico” ao das Ordenações, 4, 12 (“Código Civil Comentado”, vol. 4, obs. ao art. 1.132), afirmava que, pelo sistema destas, “na venda e na troca desigual essa intenção (de fraudar as legítimas) é legalmente presumida, “sem se admitir prova em contrário“.
Num parecer publicado em “O Direito”, vol. 83, pág. 401, escreveu ainda êle: “A redação da Ordenação 4, 12 tem por fim evitar que os herdeiros necessários sejam prejudicados em suas legítimas por qualquer modo indireto ou capcioso, e pareceu ao legislador que na venda e na troca desigual a fraude sempre se poderia mostrar sob a aparência de um contrato comutativo, mas não assim nas outras convenções. Nestas é preciso que se prove a intenção de fraudar as legítimas para que sejam anuladas; na venda e na troca desigual essa intenção é legalmente presumida, sem se admitir provarem contrário“.
Nem seria possível decidir de outra forma em face ao texto expresso das Ordenações, que estabeleciam:
“E fazendo a tal venda ou troca sem consentimento dos filhos, ou sem nossa expressa licença, será nenhuma e de nenhum efeito“.
Estava ali determinada uma nulidade absoluta, que nem mesmo dependeria de ação, como esclarece o mesmo dispositivo das Ordenações:
“E por morte do vendedor, a coisa que assim fôr vendida ou trocada, será partida entre os seus descendentes, que seus herdeiros forem, como que estivera em poder do vendedor e fôra sua ao tempo de sua morte, sem por isso pagarem preço algum ao que a comprou”.
É certo que TEIXEIRA DE FREITAS, transladando êsses preceitos para os artigos 582, § 1º, 583 e 584 da Consolidação das Leis Civis, refere-se, na sua nota 8, à prova da fraude às legítimas, mas sòmente no caso de outros contratos diversos das vendas e tocas desiguais, como se pode ver comparando-o dois itens em que se divide a referida nota.
Sua doutrina coincide, portanto, com a de CLÓVIS BEVILÁQUA.
Igual era o parecer de CARLOS DE CARVALHO, autor da “Nova Consolidação das Leis Civis” (arts. 1.039, a, e 1.040), e que afirma: “A Ordenação 4, 12 consagra uma presunção legal absoluta de fraude ou simulação“. E mais adiante, no mesmo parecer, escreve: “Presunção legal absoluta de fraude e simulação, o preceito da Ordenação 4, 12 há de limitar-se aos casos particulares e especiais nela referidos, sendo incivil tôda a ampliação por analogia” (parecer em “O Direito”, vol. 83, pág. 399).
LAFAYETTE também ensinava: “Em regra, pelo nosso Direito, o pai pode tratar com o filho independente de audiência ou consentimento dos outros filhos. Esta regra sofre, porém, exceção em se tratando de troca ou venda feita pelo pai ao filho, casos em que, paro a validade da venda ou da troca, é necessário e imprescindível o consentimento dos outros filhos, consentimento êsse que pode ser expresso ou tácito (Ordenação, L. 4°, tít. 12; Cons. das Leis Civis, artigo 582, § 1º, nota 2)” (Pareceres, volume 1, pág. 68, parecer nº 40).
Por isso também, visto como lhe parecia que “a proibição de alienar inclui a de não-hipotecar”, entendia LAFAYETTE que a nulidade da hipoteca, feita por ascendente a descendente sem consentimento dos outros descendentes não dependia de prova de simulação ou ofensa às legítimas (“O Direito”, vol. 83, pág. 396).
Presumindo, portanto, juris et de jure, a simulação da venda e a fraude às legítimas, a doutrina de CLÓVIS era afinal a de que a venda proibida pelo artigo 1.132 era anulável a simples requerimento de qualquer ascendente que não houvesse prestado seu consentimento, sem necessidade de qualquer outra indagação ou prova.
c) Sistema da nulidade relativa por simulação a ser provada
7. Uma singular doutrina, entretanto, tem tido acolhida entre nossos juristas e encontrado um amplo eco nos tribunais.
Encontra-se ela prestigiada especialmente por CARVALHO SANTOS, segundo o qual “os ascendentes (sic) podem pedir não a nulidade da venda, quando de fato ela foi real, pois veremos dentro em pouco, em tal caso não pode ela ser anulada, mas sim a revogação da doação, nos casos em que a lei a permite, em nada prejudicando êsse direito a simulação (vide comentário ao artigo 1.165)” (“Código Civil Interpretado”, 2ª ed., vol. 16, pág. 84).
Adota, assim, o eminente comentador do nosso Código o ponto de vista de AZEVEDO MARQUES para quem “o intuito do art. 1.132 do Cód. Civil, bom ou mau, é unicamente impedir que os pais façam doações a alguns filhos com prejuízo das legítimas dos outros, disfarçando-as sob a capa de venda, sem pagamento do justo preço. Ora, provando-se que o pai-vendedor recebeu o justo preço da venda, esta será válida, ainda que falte o consentimento dos outros descendentes” (apud CARVALHO SANTOS, “Código Civil Interpretado”, vol. 16, pág. 66; Rev. dos Tribunais”, vol. 71, pág. 3).
Essa tese da validade da venda real encontrou acolhida até mesmo em acórdão da 1ª Turma do egrégio Supremo Tribunal Federal (ac. de 3 de janeiro de 1949, no rec. ext. nº 14.310, “Direito”, vol. 58, pág. 201).
Procurou-se dessa maneira restaurar uma antiga opinião de SILVA, de há muito esmagada pela crítica de LOBÃO, que nos informa: “Enquanto SILVA, no nº 31, “diz que, como a razão é a alma da lei, cessando a fraude e o prejuízo dos filhos cessa a razão da lei, e subsiste válida a venda: É um êrro grave: Porque esta lei, que se funda em uma presunção geral, não cessa ainda quando a sua presunção cessa em algum caso particular. CARVALHO, “de Testam.”, p. 2, nº 452; e é necessário que a razão da lei cesse universalmente, MENOCH., “de Praesumpt.”, L. 1; Q. 80, nº 14, optime Britt. in “Cap. 1 de Locat.” p. 2, n° 38, pág. 307 (edição de 1742), optime “Patuz Theolog. mer.”, tom. 1, Fr. 1, Cap. 7, § 7, pág. 113, aonde reprova os probabilistas contrários” (LOBÃO, “Notas a Melo”, Tít. 4, § 14, nº 16).
De igual categoria de construção arbitrária e à margem da lei, era também esta outra opinião preconizada pelo mesmo SILVA (Rep., nº 31 cit.), GAMA (Decreto 295, nº 12), PHAEBO (p. 1, n° 80), que limitavam a (proibição da venda apenas aos filhos sob pátrio poder, excluindo o emancipado; o que tudo foi justamente profligado por LOBÃO, AGOSTINHO BARBOSA e BORGES CARNEIRO (Código Filipino, nota 1ª Ord. 4, 12).
Na revista “O Direito”, vemos que o advogado ANTÔNIO FRANCISCO RIBEIRO procurou também ressuscitar essa tese da restrição da proibição legal aos descendentes sob pátrio poder, fundando-se na comparação com o preceito vigente no Cód. Civil francês (art. 1.596), italiano (art. 1.557), espanhol (art. 1.459), chileno (art. 1.796), argentino (art. 1.359) (“O Direito”, vol. 77, ano de 1898, página 593).
A admitirmos que o intérprete pudesse dessa maneira modificar a seu talante o texto legal, a lei seria substituída pelo arbítrio, e a ordem social pelo caos.
Para nos convencermos de que o artigo 1.132 não se refere apenas “venda simulada”, basta lermos o seu texto.
Ali se fala pura e simplesmente em “venda” e não em “venda simulada”.
De outra parte, para declarar simulada uma venda, não seria preciso um dispositivo especial. Bastariam as regras gerais sôbre simulação.
E, declarada simulada uma venda, de acôrdo com os princípios gerais, “a simulação não anula o ato dissimulado, que ” de fato é a expressão verdadeira do querer das partes, anulando apenas o ato dissimulado, que não era o querido e, portanto, era verdadeiramente viciado” (CARVALHO SANTOS, ob. cit., vol. 2, páginas 390 e 408, nº 8 ao art. 105; ESPÍNOLA, “Manual do Código Civil”, volume III, 1ª parte, nº 138, “Efeitos à declaração de simulação na ação exercitada por terceiros”, pág. 560; M. I. CARVALHO DE MENDONÇA, “Obrigações”, vol. II, nº 580).
“Par l’action en déclaration de simulation” – escreve DE PAGE – “Les tiers font donc tomber, à leur égard, un acte estensible qu’ils prétendent n’être pas conforme à la réalité, un acte “simulé” et à ce titre, fait en fraude de leurs droits” (“Traité Elémentaire de Droit Civil Belge”, vol. 2, nº 640).
“Les tiers auxquels les parties apposent l’acte apparent ont le droit de démontrer que cet acte n’est qu’un vain simulacre, et de mettre à nu la convention vraire que les parties ont tenue secrète. C’est ce qu’on appelle l’action en déclaration de simulation” – ensina PLANIOL, “Traité Elémentaire de Droit Civil”, volume 2, nº 1.201.
Sòmente seria anulado também o ato secreto se, em relação a êle, ocorresse outro motivo especial de nulidade, coma reconhecem todos os autores acima citados.
Ora, nenhum motivo legal existiria, fora do art. 1.132, para, declarada simulada uma venda e real uma doação de ascendente para descendente, anular essa doação dissimulada em venda, a pretexto de evitar prejuízos às legitimas dos demais descendentes.
O Código, com efeito, tem, a êsse respeito, um sistema próprio e bem definido: no seu art. 1.171 proclama a validade da doação dos pais aos filhos e garante a integridade das legítimas dos filhos não contemplados, mandando imputar a doação na legítima do que tiver sido por ela beneficiado (art. 1.171, combinado com os arts. 1.272, parágrafo único, 1.785 e 1.786).
Os partidários da opinião de que o art. 1.132 proíbe apenas a “venda simulada” têm de ser coerentes: se entendem que o referido dispositivo visa apenas impedir que, mediante uma doação dissimulada, “a legítima dos outros herdeiros seja fraudada” (CARVALHO SANTOS, obra e vol. cits., pág. 66), deveriam anular apenas a venda simulada, subsistindo, porém, o ato como doação dentro dos limites permitidos pela lei, isto é, obrigado o respectivo beneficiário a trazer à colação o bem doado por ocasião da sucessão de ascendente comum, segundo o determinado pelos citados arts. 1.171 e 1.786 do Cód. Civil.
8. Na realidade, como vimos, o intuito do legislador no art. 1.132, como, há mais de três séculos, disseram as Ordenações em relação a dispositivo análogo, não foi o de defender as legítimas, mas o de evitar “enganos e demandas” entre ascendentes e descendentes, perturbando a paz e a harmonia que devem reinar dentro das famílias:
“Por evitarmos muitos enganos e demandas que se causam e podem causar das vendas, que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descendentes, determinamos que ninguém faça venda alguma a seu filho, ou neto, nem a outro descendente. Nem outrossim faça com os sobreditos troca, que desigual seja, sem consentimento dos outros filhos, netos, ou descendentes, que houverem de ser herdeiros do dito vendedor” (Ord., 4, 12).
Se um ascendente quiser vender a algum descendente, deverá obter o consentimento de todos os outros. Se faltar algum, segundo o sistema vindo das Ordenações, a venda será nenhuma e de nenhum efeito, sem necessidade de ser proposta ação alguma para anulá-la. E, por morte do ascendente, a coisa assim nulamente vendida seria partilhada entre os herdeiros de vendedor, “como se esta estivesse em poder dêste” (Ord. citada).
Pretender que a lei só tenha vedado a “venda simulada” é obrigar o descendente preterido a propor “demanda” contra o ascendente para provar e anular o “engano” praticado, o que constitui precisamente o inconveniente que o legislador tinha procurado evitar com aquela drástica e total proibição.
Há, além disso, a considerar ser muito difícil de se conceber, na prática, uma venda real entre ascendente e descendente com justa avaliação e efetiva numeração de preço, dadas as relações de ordem sentimental entre comprador e vendedor.
Por isso compreende-se que o legislador tenha admitido, em tal caso, como norma prudente de ordem geral, a presunção absoluta de simulação, sem cabimento de prova em contrário, como ensinou CLÓVIS BEVILÁQUA.
d) Sistema da nulidade relativa não enumerada expressamente no art. 147 do Cód. Civil
9. Conclui-se, portanto, que, dentro do sistema adotado pelo nosso Cód. Civil que divide as nulidades sòmente em absolutas (atos nulos) e relativas (atos anuláveis), a infração ao art. 1.132 produz uma nulidade relativa típica, dado que como tal se deve considerar tôda nulidade decretada como medida de proteção a favor de determinada pessoa e que sòmente por ela possa ser argüida.
Pouco importará que, por motivo de defeito técnico, o caso especial de nulidade relativa do art. 1.132 não tenha sido incluído expressamente na classificação
dos atos anuláveis, feita pelo art. 147 do citado Código.
Em tal artigo, devido a influências doutrinárias e legislativas que não vêm a pêlo estudar, o legislador incluiu apenas: 1°) a incapacidade relativa de agente definida no art. 6º; 2º) os vícios de consentimento (êrro, dolo e coação); 3°) os atos lesivos ao patrimônio de terceiros (simulação e fraude). Êstes dois últimos casos foram fundidos num só dispositivo (art. 147, nº II), mas sua distinção (atos anuláveis e rescindíveis) ainda permaneceu no art. 178, § 9°, V, do Código.
Deixaram, assim, de ser incluídos na enumeração do art. 147 duas ordens de atos que deveriam ser tidos como anuláveis, na técnica do Código (nulidade relativa):
1°) Atos que o próprio Código, em dispositivos especiais, considera também anuláveis, tais como: a) os atos do marido não autorizados pela mulher, proibidos pelo art. 235 e declarados anuláveis pelo art. 239; b) os atos do pai em relação aos bens do filho (art. 388) e que só podem ser anulados a requerimento do filho, seu representante legal ou seus herdeiros (art. 383); c) a doação do cônjuge adúltero a seu cúmplice, a cuja anulação alude o art. 1.177; d) o seguro por valor superior ao real ou reiterado pelo seu todo (art. 1.438), que é, anulável (artigo 1.439), etc:
2º) Atos que o Código denomina “nulos” ou que se limita a proibir sem cominar expressamente a pena de nulidade e que, por sua natureza, devem ser tidos como apenas relativamente nulos.
Assim:
a) A alienação irregular de bem dotal é proibida “sob pena de nulidade”, mas a nulidade da alienação só pode ser promovida pela mulher ou pelos seus herdeiros (arts. 293 e 295).
b) A doação inoficiosa é declarada nula pelo art. 1.176, no que exceder a meação disponível pelo doador no momento da liberalidade, mas a anulação somente pode ser pedida pelos herdeiros legitimários (CARVALHO SANTOS, ob. cit., vol. 16, pág. 404; CLÓVIS BEVILÁQUA, obs. ao art. cit.).
c) A alienação do imóvel aforado sem aviso prévio ao senhorio direto (artigo 683) torna o ato ineficaz em relação ao senhorio direto (art. 685).
d) A compra por tutôres, etc., de bens de cuja administração sejam encarregados é apenas anulável por provocação da parte interessada, por envolver meros negócios particulares, ao ver de alguns autores (SEBASTIÃO DE SOUSA, “Compra e Venda”, nº 29), não obstante o art. 428, nº I, do Cód. Civil impor a “pena de nulidade”. E o mesmo se dirá da compra por mandatário de bens a êle confiados (art. 1.133, nº II).
e) Enfim, entre ainda outros casos, focalizaremos especialmente o do artigo 1.164, nº II, do Cód. Civil, que declara “nula a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes”.
Segundo a regra tradicional do nosso direito, tanto a troca desigual, como a venda, na hipótese acima invocada, não podem ter sua nulidade invocada pelo próprio ascendente autor do ato proibido (Código Filipino, nota 1, pág. 793, à Ordenação, 4, 12).
Também não se pode conceber como possa um estranho argüir uma nulidade instituída a favor de descendentes que recusaram seu consentimento.
Por isso entendemos, com CLÓVIS BEVILÁQUA, que a nulidade prescrita pelo art. 1.164; II, do Cód. Civil, sem embargo da regra do art. 145, V, do mesmo Código, tem mero caráter relativo (CLÓVIS BEVILÁQUA, “Código Civil Comentado”, 3ª ed., obs. 5ª ao art. 1.132, página 309).
Retomando em ordem inversa uma argumentação do eminente jurisconsulto EDUARDO ESPÍNOLA, que sustenta não se poder estabelecer regime de nulidade diferente para a venda e para a troca desigual entre ascendente e descendente (“Manual do Código Civil”, vol. III, IV, nº 127), diremos que, em vez de dever ser absolutamente nula a primeira porque o Código determinou ser “nula” a segunda, deve a primeira ser apenas “relativamente” nula, conforme a boa razão, porque também o deverá ser a segunda, corretamente interpretado o texto do art. 1.164, II, do Cód. Civil.
3º) Atos de caráter misto, nulos com certos característicos de anuláveis.
Numa tese de concurso de 1936, sôbre “Natureza da Incapacidade dos Menores e 16 anos”, tivemos ocasião de sustentar que os arts. 83 e 1.488 do Cód. Civil contêm um caso de nulidade de caráter híbrido.
Com efeito, nos têrmos expressos do art. 145, I, do Código, são nulos absolutamente os atos praticados por menores de 16 anos, como, em geral, dos absolutamente incapazes enumerados no art. 5º do mesmo Código.
Entretanto, não só o casamento dêsses absolutamente incapazes é apenas relativamente nulo (art. 183, nº IX, combinado com o art. 209 do Código), como também seus contratos em geral (art. 83).
Sua incapacidade não pode ser alegada pela outra parte contratante em benefício próprio, e suas obrigações são suscetíveis de fiança (art. 1.488). Suas obrigações, portanto, padecem de nulidade de caráter meramente relativo, só alegável pelo interessado a favor de quem foi instituída, embora conservem certos requisitos da nulidade absoluta, porque não suscetíveis de novação (art. 1.007) e, por identidade de motivo, de ratificação.
10. É indubitável que o Cód. Civil incide nos mais graves defeitos de técnica na classificação das nulidades.
Admitindo-se, entretanto, que êle só acolheu a distinção entre atos nulos e atos anuláveis, é forçoso concluir que a enumeração dos atos anuláveis excede a indicada no art. 147 do mesmo Código e abrange, entre outros, o caso previsto no art. 1.132.
e) Sistema da ineficácia absoluta
11. Se desviarmos, agora, o estudo da questão do ponto de vista prático da simples interpretação do Cód. Civil, para o ponto de vista doutrinário, de lege ferenda, da exata classificação do caso previsto no art. 1.132, veremos que a mesma teria de ser deslocada do terreno da nulidade para o da ineficácia.
Tratar-se-ia duma venda cuja eficácia estaria subordinada à condição suspensiva da prestação de consentimento de todos os descendentes do vendedor.
Ocorreria, em tal caso, com o artigo 1.132 fato análogo ao que se verifica com o art. 382, por exemplo, segundo o qual “o filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento“.
Destas últimas palavras não se segue que o consentimento do filho maior deva ser prestado no mesmo ato de reconhecimento, sob pena de nulidade, como já se tem entendido em relação ao art. 1.132 (HOMERO PRATES, in “Direito”, vol. XI, pág. 95).
Com efeito, se o Código admite o reconhecimento por testamento, claro é que o consentimento do filho reconhecido tem de ser prestado posteriormente, mormente sendo o testamento cerrado (CARVALHO SANTOS, ob. cit., vol. 5, pág. 471).
Não se trata, portanto, de formalidade exigida para a validade do ato, mas para a sua eficácia.
Enquanto o filho maior não presta o seu consentimento, o reconhecimento não tem qualquer efeito e decai desde que aquêle seja definitivamente negado.
É um caso de ineficácia. pendente e não de nulidade. Aquela tem efeito mais drástico do que esta porque não depende de ação para retirar ao ato qualquer aparência de efeito.
Ocorre com a ineficácia, entretanto, o mesmo do que com a nulidade: pode ser absoluta ou relativa.
No caso do reconhecimento, como sòmente interessa ao filho reconhecido, enquanto êste não presta seu consentimento, não produz nenhum efeito. É, portanto, um caso de ineficácia absoluta.
Já assim não acontece, entretanto, no caso do art. 1.132. O ato é válido e eficaz entre as partes contratantes. Pende, entretanto, contra êle, a qualquer tempo, a intervenção de qualquer dos descendentes que não hajam prestado seu consentimento, para retirar-lhe qualquer aparência de eficácia.
f) Sistema da ineficácia relativa ou inoponibilidade
12. Investigações recentes têm pôsto em relêvo a figura de ineficácia relativa ou inoponibilidade a terceiros, perfeitamente distinta quer da nulidade quer da ineficácia absoluta.
O seu exemplo típico é o da venda da, coisa alheia. Fundada no art. 1.599 do Cód. Civil francês, a doutrina oscilava entre admitir sua nulidade absoluta e nulidade relativa.
Entretanto, hoje admite-se geralmente tratar-se de ato válido e eficaz entre as partes contratantes e apenas inoponível ao verdadeiro proprietário, que pode, a qualquer momento, exercer seu direito de reivindicação sôbre a coisa, sem ter que demandar a nulidade da venda a que foi estranho (OROZIMBO NONATO, in REVISTA FORENSE”, vols. 93, pág. 73, e 95, pág. 563; CUNHA GONÇALVES, “Compra e Venda no Direito Comercial Brasileiro”, nº 27; SEBASTIÃO DE SOUSA, “Da Compra e Venda”, nº 112).
O mesmo se dirá no caso de aluguel de coisa comum sem consentimento dos outros. A êsse respeito, o nosso Cód. Civil contém simples disposição proibitiva:
“Nenhum condômino pode, sem prévio consenso dos outros, dar posse, uso ou gôzo da propriedade a estranhos”.
CARVALHO SANTOS, comentando êsse dispositivo (correlato ao do art. 635), apóia-se em AUBRY et RAU (“Droit Civil”, vol. 5, § 364), para declarar que tal contrato é anulável no seu todo a pedido do condômino que não houver dado o seu consentimento.
Logo em seguida, entretanto, o mesmo autor indica um acórdão do Tribunal de São Paulo, em que o referido contrato é considerado “nulo” (ob. cit., vol. 8, nº 4, ao art. 633, págs. 350-351).
Na realidade, porém, uma análise jurídica mais acurada mostra não se tratar de contrato nulo ou anulável, mas simplesmente ineficaz contra os proprietários não ouvidos (PLANIOL et RIPERT, “Traité Pratique”, vol. 10, nº 443).
DE PAGE explica-o excelentemente: “On voit par ce qui précede qu’en matière de bail de la chose indivise il ne peut jamais être question de contrat “nul”. Le bail est, soit valable, soit inopposable, d’après l’angle sous lequel on l’envisage (voy. au surplus et comparez supra, n. 509). Dans la pratique, il est, pourtant, à tout moment question de bail “nul”. On dit notamment que les autres indivisaires, se fondant sur le fait que l’indivisaire-bailleur a outrepassée ses pouvoirs, peuvent demander la “nullité” du bail. C’est une erreur. Ce bail est, pour eux, une res inter alios acta dont ils n’ont aucune qualité pour demander la nullité (voy. supra, n. 509 e t. II, n. 788). Ils peuvent le considérer comme inexistant en ce qui les concerne, inopposable, et les droits qu’ils ont sur la chose suffisent presque toujours pour empêcher la jouissance du preneur (expulsion pour occupation sans titre ni droit, notamment). Ils n’ont pas à faire “annuler” le titre du preneur. Et en supposant qu’il faille recourir à une décision de justice, c’est uniquement à l’inopposabilité – et non à la nullité – que les autres indivisaires peuvent conclure” (DE PAGE, “Traité Elémentaire de Droit Civil Belge”, vol. 4, número 510, pág. 510).
O nosso Cód. Civil admite a favor do descendente legitimário certos direitos que às vêzes se aproximam do condomínio, como já mostrou CLÓVIS BEVILÁQUA (obs. 4ª ao art. 1.176, in “Código Civil Comentado”).
E a prova está em que, se o ascendente fizer doação excedente à parte que, no momento da liberalidade, puder dispor em testamento, o herdeiro legitimário pode propor ação, ainda em vida do doador, para reduzir a doação à quota disponível dêste, ressalvada sua legítima (art. 1.176 do Cód. Civil).
O art. 1.132 do Cód. Civil estatui uma restrição semelhante à capacidade do ascendente em vender sua propriedade. Se quiser fazê-lo em favor de algum descendente, tem necessidade de autorização dos outros descendentes.
Êstes têm, já então, um direito próprio sôbre a coisa.
Se a venda foi efetuada sem consulta a algum descendente, será válida entre as partes contratantes, mas inoponível ao descendente que não consentiu.
Durante a vida do ascendente, o referido descendente não tem direito próprio para reivindicar a coisa. Tal direito sòmente surge na ocasião da abertura da sucessão.
Ocorrendo esta, e tornando-se o descendente proprietário da coisa, em virtude do direito hereditário (art. 1.572 do Cód. Civil), pode pedir a coisa de quem quer que a detenha, sem necessitar de anular uma venda que, em relação a êle, é inoponível.
É o sistema que se encontra literal-mente consagrado pelas Ordenações:
“E por morte do vendedor, a coisa que assim fôr vendida ou trocada, será partida entre os seus descendentes, que seus herdeiros forem, como se estivera em poder do vendedor e fôra sua ao tempo de sua morte, sem por isso pagarem preço algum ao que a comprou” (Ord., L. 4, tít. 12).
13. Em nosso direito, há, sôbre a matéria, um magnífico estudo de GONDIM FILHO, em que trata, de inoponibilidade sob a denominação imprópria de “nulidade relativa”.
Aí alude, por exemplo, ao caso de alienação do imóvel dotal, feita em contravenção ao art. 293 do Cód. Civil. Aplica à mesma os princípios da venda de coisa alheia. “Se os bens dotados alienados passaram para segundo, terceiro, quarto e quinto adquirentes, a mulher para havê-los proporá diretamente contra êste a ação de reivindicação, sem necessidade de ação de rescisão, contra o primeiro adquirente”.
Refutando um ponto de vista de FERRINI, mostra GONDIM FILHO que a inoponibilidade (que êle denomina “nulidade relativa”) não se confunde com anulabilidade. Ao passo que, no caso desta, o ato é provisòriamente tratado como válido, naquela o ato é provisòriamente tratado como nulo. (GONDIM FILHO, “Revista de Jurisprudência Brasileira”, volume 48; ano 1940, págs. 130 e 243).
Procuramos acrescentar, no presente trabalho, algumas idéias novas, que requererão estudo mais aprofundado, mormente em face à redação do nosso Código Civil, que chegou a ponto de considerar taxativamente “nulos” atos que, por sua natureza intrínseca, são na realidade válidos, embora ineficazes (arts. 256, parágrafo único, 1.425 e 1.743, parág. único), ou inoponíveis (arts. 823, 1.176, etc.).
Reservamo-nos para desenvolvê-las melhor num livro em preparo, sôbre “Nulidade dos Atos Jurídicos”.
Presentemente só interessa a análise da questão dentro do texto do Cód. Civil, que só conhece duas classes de ineficácia: a dos atos nulos e a dos anuláveis.
Cremos ter deixado demonstrado que, pelo sistema do Código, a infração do artigo 1.132 produz apenas nulidade relativa. Trata-se de ato anulável, não contido na restrita enumeração feita pelo artigo 147 do Cód. Civil, mas produzindo os mesmos efeitos.
Tempo Da Prescrição
2º PONTO: TEMPO DA PRESCRIÇÃO
14. a) No caso de se admitir o sistema da nulidade absoluta. Em tal caso, quando a ação anulatória fôsse prescritível, seu prazo seria necessàriamente de 30 anos, segundo a norma geral do artigo 177 do Cód. Civil.
b) No caso de se admitir o sistema da nulidade relativa não discriminada no artigo 147 do Código. A prescrição continuaria ainda em tal caso a ter, o prazo de 30 anos, porque o art. 178, § 9°, V, do Código só prevê a hipótese de ocorrer algum dos atos anuláveis previstos no art. 147, como é fácil verificar do simples confronto entre ambos êsses dispositivos.
Reza o art. 178, § 9°, V:
“Prescreve em quatro anos a ação de anular ou rescindir os contratos para a qual não se ter estabelecido menor prazo, contado êste:
a) no caso de coação, do dia em que ela cessar;
b) no de êrro, dolo, simulação ou fraude, do dia em que se realizar o ato ou o contrato;
c) quanto aos atos dos incapazes, do dia em que cessar a incapacidade”.
Correlatamente, dispõe o art. 147:
“É anulável o ato jurídico:
I. Por incapacidade relativa do agente (art. 6º);
II. Por vício resultante de êrro, dolo, coação, simulação ou fraude (artigos 86 a 113)”.
A coincidência é perfeita entre os casos enumerados pelo art. 147 e aquêles cuja prescrição é indicada nos três itens do art. 178, § 9º, V, do Cód. Civil.
Embora na parte preliminar dêste último dispositivo tenha sido feita referência genérica à ação anulatória de contratos, a mesma está vinculada à segunda parte em que estão fixadas as datas em que a referida prescrição se deve iniciar.
E, por essa enumeração feita na segunda parte daquele dispositivo, vê-seque o legislador teve em vista apenas os.casos de anulação previstos no art. 147, tanto assim que sòmente a êles alude para determinar a data do início de sua prescrição.
Daí resulta que a prescrição de quatro anos ali estabelecida é fixada apenas para os casos de anulabilidade enumerados no art. 147 do Cód. Civil e não pode ser estendida por analogia a outros casos, porque a matéria de prescrição é de interpretação estrita, tanto quanto foi restrita à indicação daqueles casos, a intenção do legislador, ao redigir o citado art. 178, § 9°, V.
E tanto isso é exato que:
a) a ação do marido para anular os atos da mulher praticados sem seu consentimento está prevista especialmente no art. 178, § 7º, VII;
b) a ação da mulher para anular os atos do marido declarados anuláveis pelo art. 239 tem o prazo de quatro anos fixado pelo art. 178, § 9º, I;
c) a ação do filho para anular os atos de administração do pai prescreve em um ano, segundo o art. 178, § 8º, III;
d) a ação do cônjuge para anular doação feita pelo cônjuge adúltero está regulada no art. 178, § 7º, VI, etc.
Quanto à ação anulatória fundada na violação do art. 1.132 do Cód. Civil, não cabe nem no art. 178, § 9º, V, do Código, nem em qualquer outro dispositivo especial.
Deve-lhe, portanto, ser aplicável a norma do art. 179 do mesmo Código: prescrição em 30 anos.
15. c) No caso de se admitir o sistema da nulidade relativa por simulação. Já vimos precedentemente que o artigo 1.132 proíbe não só a venda simulada como a venda real.
Admitamos, entretanto, para argumentar que só proíba a venda fictícia.
Nem por isso o ato poderá ser totalmente anulado apenas por motivo de simulação, como se tem pretendido.
Com efeito, uma simulação relativa, por exemplo, pressupõe a prática de dois atos simultâneos: a) a dum ato simulado, fictício, aparente (venda); b) e a dum ato dissimulado, verdadeiro, secreto (doação). “O primeiro serve apenas para iludir os terceiros quanto a vontade das partes” (ESPÍNOLA, “Fatos Jurídicos”, III, parte I, nº 122).
Por meio da ação de simulação, retira-se apenas o véu que cobre o ato verdadeiro, ou seja, “anula-se” apenas o ato simulado, fazendo com que surjam à luz e subsistam as relações decorrentes do ato dissimulado, isto é, daquele ato que as partes realmente quiseram constituir, ocultando-o sob a aparência do ato simulado (ESPÍNOLA, ob. cit., nº 127).
Havendo, portanto, uma venda simulada entre ascendente e descendente, a ação de simulação apenas iria afastar a aparência de venda, tornando eficaz a doação anteriormente dissimulada.
Não iria anular a doação, porque, pelo sistema do Código, é válida a doação de ascendente a descendente, considerada adiantamento de legítima (art. 1.171), sujeita a colação, e devendo apenas ser reduzida quando exceda a legítima do donatário e parte disponível (art. 1.790, parágrafo único).
Se se quiser considerar, portanto, anulável “todo” o ato no caso de infração ao art. 1.132, não será apenas por motivo de simulação, mas em virtude duma proibição simultânea e inteiramente especial.
Tal proibição, portanto, poderá referir-se a um ato complexo, que envolva também a simulação, mas não poderá ser confundido com um ato simples de simulação; da mesma forma, como, por exemplo, em matéria penal, ninguém poderá assimilar o roubo ao furto, porque aquele contém um elemento acrescido à simples lesão do interesse patrimonial, que determina a incriminação do fato sob um título especial no Cód. Penal (MANZINI, “Trattato di Diritto Penale”, volume IX, 1ª parte, nº 3.282).
Incidiria, por isso, em êrro grave quem, para o efeito do cálculo da prescrição, pretendesse dividir a prescrição do crime de roubo em prescrição do crime de furto e o da violência, separadamente.
Assim também no caso da “venda simulada”, que se pretende por hipótese contida no art. 1.132, não seria possível considerar separadamente a prescrição da ação de simulação, tendente apenas a anular o ato ostensivo (venda fictícia) e não o ato oculto (doação), e a prescrição de todo o ato, quer ostensivo, quer aparente.
Tratar-se-ia de modalidade de prescrição inteiramente autônoma e que não se acha prevista no art. 178, § 9º, nº V, do Cód. Civil.
O prazo dessa prescrição, portanto, continuaria a ser de 30 anos, segundo a regra do art. 179 do Cód. Civil.
Data Em Que Se Inicia O Curso Da Prescrição
3º PONTO: DATA EM QUE SE INICIA O CURSO DA PRESCRIÇÃO
16. No caso de entendermos que a nulidade decorrente da violação do artigo 1.132 é de caráter absoluto ou de caráter relativo não constante da enumeração do art. 147, ou de caráter complexo abrangendo ação de simulação e ação anulatória especial, não interessaria a questão relativa à data inicial da prescrição, já que seu prazo seria sempre do 30 anos, como vimos.
Vamos, entretanto, imaginar, por absurdo e apenas para argumentar, que se tratasse efetivamente apenas duma mera ação de simulação.
Ainda assim continuaria inaplicável ao caso previsto no art. 1.132 do Cód. Civil o disposto no art. 178, § 9º, nº V, do Cód. Civil.
Com efeito, precisamente a jurisprudência tem em regra assentado que no caso de infração ao art. 1.132 o prazo da ação anulatória começaria a correr sòmente após a morte do ascendente-vendedor e não a partir. da data em que se realiza o ato incriminado, porque, sòmente a partir daquela morte, o descendente teria interêsse em reivindicar para si o imóvel vendido.
Admitido êsse ponto de vista (aliás muito controvertido), raciocinemos: se, de acôrdo com o texto expresso do art. 178, § 9º, nº V, letra b, o prazo da prescrição começa a correr “do dia em que se realizar o ato ou o contrato”, e se, no caso de infração ao art. 1.132, a prescrição só começasse a correr a partir da morte do ascendente-vendedor, sem que tenha ocorrido, por êsse motivo, caso que autorize a suspensão ou interrupção do curso da prescrição, claro é que a prescrição da ação anulatória resultante da infração do art. 1.132 é especial e não está prevista no art. 178, § 9º, nº V, letra b, do Código Civil.
Contra esta conclusão, o ilustrado ministro LUÍS GALLOTTI opôs o “tranqüilo princípio da actio nata, antes da qual não corre prescrição” (voto em acórdão de 27 de julho de 1953, in “Arq. Judiciário”, volume 108, pág. 547).
Sem dúvida, de acôrdo com êsse princípio, que é correntemente admitido, “o prazo de prescrição das ações se conta da data em que poderiam ter sido propostas (Cód. Civil, art. 177), ou do dia em que o credor pode intentar a sua demanda (PLANIOL, “Droit Civil”, 2° volume, nº 850; CARPENTER, “Manual do Código Civil”, pág. 77)” e “Só pode promover ação quem no momento seja titular de um direito concreto” (CARVALHO SANTOS, ob. cit., vol. 16, pág. 100, cit. parecer de DANIEL DE CARVALHO, “REVISTA FORENSE”, vol. 49, pág. 377).
Sôbre essa matéria existe também um brilhante estudo feito pelo ministro OROZIMBO NONATO, como relator de acórdão de 18 de julho de 1944.
Lembraremos, entretanto, que, como mostra ALMEIDA OLIVEIRA, em trecho citado por aquêle ilustradíssimo ministro, “salvo o caso de dia marcado pela lei, a prescrição nasce com a ação, ou começa a correr desde que o credor pode ir a juízo requerer a condenação do réu” (ALMEIDA OLIVEIRA, “Prescrição”, página 280, apud OROZIMBO NONATO, voto citado, in “REVISTA FORENSE”, volume 102, pág. 258, e “Arq. Judiciário”, volume 74, pág. 26).
Ora, precisamente no caso do art. 178, § 9°, nº V, letra b, do Cód. Civil, a lei determina taxativamente a data em que se inicia o prazo da prescrição.
Se, no caso de infração ao art. 1.132, não é daquela data do contrato que deve correr a prescrição, mas duma data ulterior em que surja o interêsse legítimo por parte do demandante, está claro que se terá tornado inaplicável à espécie o disposto no art. 178, § 9°, nº V, letra c, em questão.
Caberá sem dúvida a norma geral do art. 177 que admite o início da contagem da prescrição a partir da “data em que a ação poderia ter sido proposta”, isto é, a partir da data em que surja o referido interêsse do demandante.
Mas o prazo, em tal caso, será de 30 anos, como está expresso nesse art. 177 do Cód. Civil.
Venda Por Interposta Pessoa
4º PONTO: VENDA POR INTERPOSTA PESSOA
17. Existe ainda uma singular doutrina, propugnada por FILADELFO AZEVEDO, que sustenta se dever distinguir entre a venda direta entre ascendente e descendente e a venda por interposta pessoa. No primeiro caso, a prescrição seria de 30 anos, e no segundo de quatro anos (“Um Triênio de Judicatura”, vol. III, pág. 88, nota 349).
Pedimos vênia, entretanto, para sustentar que semelhante doutrina não se coaduna nem com a boa lógica, nem com a boa razão jurídica.
Com efeito, quando, um ascendente outorga escritura definitiva de venda a um de seus descendentes, ou efetua uma venda real ou uma venda fictícia. Neste último caso, a ficção poderá consistir em aparentar um contrato (venda) quando na realidade existirá um outro (doação). Poderá também ser feita por meio do disfarce de interposição de pessoa.
No caso dessa interposição, a mesma constituirá um dos elementos integrantes e fundidos irremovìvelmente na única e verdadeira transação querida e efetuada entre as partes, a saber: a venda (ou doação fingida de venda) de ascendente a descendente.
Se entendêssemos, portanto, que os negócios efetuados aparentemente com uma pessoa interposta deveriam ser encarados de maneira autônoma e independente da transação principal entre ascendente e descendente, aquêles negócios jamais poderiam ser objeto de qualquer ação anulatória a êles circunscrita.
Com efeito, não há lei alguma que proíba a alguém que tenha descendentes fazer doação ou venda fictícia a favor de pessoa estranha, salvo no que exceder sua parte disponível no momento da transação, caso em que poderia apenas ser reduzido no seu limite, ex vi do art. 1.176 do Cód. Civil.
Muito menos se poderá apontar qualquer lei que impeça alguém de efetuar uma compra fictícia em que figure como vendedor pessoa estranha à sua família, sem licença dos irmãos do comprador.
Tais transações, consideradas autônomamente, são válidas, ainda quando simuladas.
O que é proibido é que um ascendente, utilizando-se do fingimento de interposição de pessoa (numa só ou em várias escrituras sucessivas), venda real ou fictìciamente bens a um de seus descendentes sem consentimento dos demais.
Não há, portanto, como se falar em ação de simulação para anular negócios dados como realizados com pessoa interposta, e com prescrição de quatro anos, independentemente de ação de nulidade para desfazer venda efetuada por ascendente a descendente com prescrição de 30 anos.
18. Além dessa impossibilidade de ordem lógica, há uma impossibilidade de ordem jurídica que obriga à rejeição da referida doutrina.
O Cód. Civil, ao proibir a prática de determinado ato, adota uma das três modalidades seguintes de redação:
1ª) Alude, em sua proibição, especificadamente, ao recurso da interposição de pessoa para fraudar a lei.
Assim, dispõe o art. 428, nº 1, do Código Civil:
“Ainda que com autorização judicial não pode o tutor, sob pena de nulidade: adquirir por si, ou por interposta pessoa, por contrato particular, ou em hasta pública, bens móveis, ou de raiz, pertencentes ao menor”.
Aí se encontra a “pena de nulidade” taxativamente estipulada para o caso não sòmente da compra direta feita pelo tutor ao pupilo, como também para a compra por êle realizada “por interposta pessoa”.
Refere-se o legislador ùnicamente à nulidade da transação entre o tutor e o pupilo, em que a interposição de pessoa poderia figurar como mero artifício acessório, e jamais como uma transação lògicamente cindível da transação principal.
A prevalecer, entretanto, a doutrina que estamos combatendo, o negócio feito pelo tutor mediante o artifício de interposição de pessoa deveria constituir objeto duma ação anulatória preliminar por simulação em relação à pessoa interposta, com a prescrição de quatro anos, antes de poder ser feita a anulação da transação principal entre tutor e pupilo, com prescrição de 30 anos.
Ficaria assim letra morta a disposição supracitada do art. 428, nº 1, do Cód. Civil.
19. A igual absurdo seriamos levados na interpretação do art. 1.720 do Código Civil, que determina:
“São nulas as disposições em favor de incapazes (arts. 1.718 e 1.719), ainda quando simulem a forma de contrato oneroso, ou os beneficiem por interposta pessoa“.
A necessidade duma prévia ação de simulação para anular o contrato oneroso aparente ou provar a qualidade de pessoa interposta em relação ao beneficiado no testamento, com prescrição de quatro anos; elidiria a sanção de nulidade absoluta, com prescrição de 30 anos imposta pelo citado art. 1.720.
20. 2ª) Às vêzes o Cód. Civil, ao proibir o ato ou contrato, faz uma referência expressa à sua simulação sob a aparência de um outro ato, para fraudar a lei, sem destacar especialmente o recurso da interposição de pessoa como modalidade dessa simulação.
Nesse sentido, podemos apontar o artigo 248, nº IV:
“Independente de autorização, pode a mulher casada reivindicar os bens comuns móveis ou imóveis doados ou transferidos, pelo marido à concubina (art. 1.177).
Parág. único. Êste direito prevalece esteja ou não a mulher, em companhia do marido, e ainda que a doação se dissimule em venda ou outro contrato“.
“Art. 1.177. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outra cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts. 177, § 7°, n° VI, e 248, nº IV)”.
Aqui o legislador, ao declarar anulável a doação do marido à concubina, estende expressamente a nulidade arda ao caso da doação se dissimular em venda ou outro contrato.
Parece, porém, evidente que a alusão a uma das formas de simulação consistente, em ficção de contrato diverso da venda não exclui.também o caso da simulação pela interposição de pessoa.
E também não seria razoável que a ação anulatória da doação do marido à concubina, em caso de simulação, devesse ser precedida de ação de simulação, com a prescrição curta de quatro anos a partir da data do ato, elidindo a possibilidade da ação anulatória no correr do casamento e até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.
21. 3ª) Enfim; a terceira modalidade de redação usada pelo Cód. Civil é a de proibir pura e simplesmente a prática do ato, sem aludir ao uso de simulação para encobri-lo.
É o que ocorre, não sòmente no artigo 1.132, como em geral em todos os preceitos proibitivos do Código.
Destaquemos, por exemplo, o do artigo 1.133:
“Não podem ser comprados, ainda que em hasta pública:
I. Pelos tutôres, curadores, testamenteiros e administradores os bens confiados à sua guarda e administração.
II. Pelos mandatários, os bens de cuja administração ou alienação estejam encarregados.
III. Pelos empregados públicos, os bens da União, dos Estados e dos Municípios, que estiverem sob sua administração, direta ou indireta. A mesma disposição aplica-se aos juízes, arbitradores, ou peritos que, de qualquer modo, possam influir no ato ou no preço da venda.
IV. Pelos juízes, empregados da fazenda, secretários de tribunais, escrivães e outros oficiais de justiça, os bens, ou direitos, sôbre que se litigar em tribunal, juízo, ou conselho, no lugar onde êsses funcionários servirem, ou a que se estender a sua autoridade”.
Sendo tal disposição legal meramente proibitiva, discute-se se sua infração importa nulidade absoluta ou relativa.
CARVALHO SANTOS, por exemplo, sustenta existir sempre nulidade absoluta (vol. 16, pág. 118), enquanto, para SEBASTIÃO DE SOUSA, a nulidade só é absoluta nos casos dos ns. III e IV do artigo 1.133 e não nos dos ns. I e II (“Da Compra e Venda”, págs. 67 e 68).
Ora, se a doutrina admite sem contestação como nulo, por imoral e contrário à ordem pública, que, por exemplo, um funcionário adquira para si os bens do Estado que estejam sob sua administração (art. 1.133, nº III), sendo imprescritível tal nulidade ou tendo a prescrição de 30 anos, por se tratar de nulidade absoluta, seria absurdo que, agindo êle pela ficção de interposta pessoa, o ato passasse a ser anulável com prescrição de quatro anos.
22. Pato análogo ocorrerá sempre que determinado ato dever ser considerado nulo, de acôrdo com a lei.
Entender que, mediante o simples expediente de interposição de pessoa, um ato nulo se transforme em anulável por simulação, e que a prescrição de 30 anos se reduza a quatro anos, é qualquer coisa de extravagante e que, a ser admitido, derruiria todos os princípios fundamentais do direito e da própria ordem social.
FRANCISCO PEREIRA DE BULHÕES CARVALHO, Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal
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