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PROCESSO CIVIL
A Tutela Específica e o Princípio Dispositivo – Ampla Possibilidade de Conversão em Perdas e Danos por vontade do Autor
Daniel Amorim Assumpção Neves
14/01/2015
I – O incremento dos poderes do juiz no processo civil moderno
A ciência processual avançou consideravelmente nas últimas décadas, sendo inegável que a visão a respeito da atuação do juiz no processo sofreu consideráveis mutações nesse avanço. Deixou-se no passado a ideia de que o juiz ideal seria aquele juiz passivo, conhecido como “juiz Olimpo”, que não tinha qualquer atuação mais presente no processo que não fosse a mera condução da demanda à sua conclusão. Quanto menos interferisse melhor seria, acompanhando com segura distância o embate travado entre as partes, até mesmo porque uma participação mais ativa poderia macular o inafastável principio da imparcialidade.
Essa visão era mais condizente com a da época – atualmente ultrapassada – em que se atribuía ao processo a noção de instituto privativo das partes, que por meio do exercício de suas vontades poderiam fazer nele e dele o que bem entendessem. Ideia ultrapassada de que o processo pertenceria ao direito privado, e não, conforme se entende contemporaneamente, ao direito público. Ao juiz cobrava-se tão somente o controle da atuação parcial das partes – até mesmo para evitar desvios de conduta -, e ao final a prolação de decisão que resolvesse o conflito de interesses apresentado à sua apreciação, como ato de império do Estado.
Cumpre ressaltar que tal distanciamento do juiz, em especial na fase probatória, que sempre foi a tônica de sua atuação nos diversos países da tradição da commom law, começa a sofrer ressalvas, com o que se percebe que timidamente tais países começam a entregar ao juiz uma autonomia maior no tocante à instrução probatório, ampliando sua atuação oficiosa nesse campo[1]. Registre-se, inclusive, que dentre os princípios e as regras de processo civil (principles and rules of transnational civil procedure), aprovadas pelo Conselho da Unidroit (Instituto para a Unificação do Direito Privado) e pelo American Law Institute (Instituto de Direito Americano) no segundo semestre de 2004, há um nítido aumento dos poderes instrutórios do juiz[2]. Apesar da inegável tendência do aumento dos poderes instrutórios do juiz, é preciso consignar que ainda há resistências, inclusive em países de tradição romano-germânica, como a Espanha[3].
No Brasil, seguindo-se essa tendência que se pode acreditar mundial, conforme se passou a considerar o processo como instituto pertencente ao direito público, a figura do juiz distante e absolutamente indiferente começou a não mais se coadnuar com a atividade jurisdicional pretendida. A aceitação de que a jurisdição não deva se satisfazer tão somente com o escopo jurídico, mas também social, econômico e político, passou a demandar do juiz uma atuação bem diferente daquela afastada e despreocupada com a qualidade da prestação jurisdicional. Passou-se a demandar do juiz uma participação mais ativa, mais presente, mais oficiosa.
Preocupado com a qualidade do trabalho que desenvolve, o juiz, como representante do Estado no processo, passa a atuar cada vez mais intensamente à procura da tão almejada qualidade da prestação jurisdicional. Como óbvio interessado em prestar um serviço de qualidade, o juiz passa a cada vez mais atuar na relação jurídica processual, ainda que não haja o requerimento expresso de qualquer das partes, seja no campo probatório, no concernente à repressão de atos ligados a má-fé e deslealdade processual, ou ainda na busca de efetivação de suas decisões.
Segundo as precisas lições de José Carlos Barbosa Moreira, “a tendência a dar maior realce ao papel do juiz corresponde, como bem se compreende, a uma acentuação mais forte do caráter publicístico do processo civil. O interesse do Estado na atuação correta do ordenamento, através do aparelho judiciário, sobrepõe-se ao interesse privado do litigante, que aspira acima de tudo a ver atendidas e satisfeitas as suas próprias pretensões. É a antiga visão do “duelo” entre as partes, ao qual assistia o juiz como espectador distante e impassível, que cede o passo a uma concepção do processo como atividade ordenada, ao menos tendencialmente, à realização da justiça”[4].
Muito se fala hoje, com arrimo no art. 130, CPC, em poderes instrutórios do juiz, que de ofício poderia determinar a produção de provas independentemente da atuação das partes. Afirma-se que se a boa decisão só pode existir com a maior proximidade possível da verdade, cabe ao juiz, ainda que ex officio, determinar a produção de provas para seu convencimento sobre os fatos alegados[5]. A pena de litigância de má-fé (arts. 17/18, CPC) e do ato atentatório à dignidade da jurisdição (art. 14, par. único, CPC) e da justiça (arts. 600/601), pode ser decretada de ofício, não se exigindo pedido da parte eventualmente prejudicada, bem como as multas previstas por embargos de declaração meramente protelatórios (art. 538, par. único, CPC) e agravo interno manifestamente inadmissível ou improcedente (art. 557, CPC). No concernente a efetivação da decisão, ganha ênfase o disposto no art. 461 e 461-A, CPC, referente à tutela específica.
Apesar da inegável importância de todos os aspectos ligados aos poderes do juiz no âmbito do processo civil, nossa maior preocupação com o presente artigo é analisar a atuação do juiz, em especial de ofício, na busca do cumprimento de sua decisão nos casos de tutela específica (fazer/não fazer e entrega de coisa).
A análise que nos propomos a realizar parte da premissa de que embora o juiz tenha amplos poderes na busca do cumprimento de suas decisões, é necessário se traçar alguns limites a tal atuação, em especial em hipóteses em que o juiz atue contrariamente à vontade da parte que entende estar beneficiando com sua atuação mais ativa. A grande questão que procuraremos enfrentar é saber até onde podem ir os poderes oficiosos do juiz na busca da satisfação da tutela específica do direito de um autor que discorda das medidas adotadas pelo juiz, preferindo abdicar de uma tutela específica ainda possível pela conversão daquela obrigação em perdas e danos (execução por quantia certa).
Não defenderemos a exclusão da atuação de ofício do juiz, até porque isso seria rumar contra toda a doutrina e agora também contra texto de lei expresso (art. 461, § 5º, CPC)[6]. Mas pretendemos demonstrar que o poder do juiz não é tão ilimitado quanto aparenta ser, encontrando determinados limites na vontade das partes. Por mais público que seja o processo considerado atualmente, não devemos jamais esquecer que primordialmente o processo se presta a resolver um conflito envolvendo autor e réu, que inclusive jamais chegaria ao conhecimento do juiz se não tivesse o autor demandado, em razão do princípio da inércia da jurisdição. A grande questão é até que limite interessa a satisfação da tutela específica, ainda contra a vontade do titular do direito?
II – As diferentes formas de satisfação da decisão concessiva das tutelas de fazer, não fazer e entrega de coisa
Tem-se que admitir que o legislador, quando cuidou das formas de satisfação da decisão que concede a tutela de fazer, não fazer e entrega de coisa, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro previsão das mais modernas, já que na busca do cumprimento da decisão judicial com a real satisfação da parte, o art. 461, CPC (e por tabela também o 461-A), faz uma interessante soma de esforços para a satisfação plena do direito. Prevê tanto medidas ligadas à tradicional execução forçada, com nítida característica de sub-rogação, ou seja, de substituição da vontade do derrotado pela do Estado, como também medidas novas, ligadas à execução indireta, que ao contrário do que ocorre na sub-rogação, não pretende substituir a vontade do derrotado, e sim criar uma pressão psicológica apta a força-lo ao cumprimento de sua obrigação. Tudo para a efetiva obtenção da tutela específica[7].
Basta para se chegar a tal conclusão a leitura do art. 461, § 4º: “O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente do pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito” e do § 5º do mesmo artigo: “Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.”
De forma uníssona a doutrina aponta ser a multa prevista no art. 461, § 4º, CPC – repetida desnecessariamente no parágrafo seguinte (§ 5º) – a maior expressão da atualmente chamada “execução indireta”. Essa nova espécie de busca da satisfação do direito do credor abandona as antigas técnicas de sub-rogação, e ao invés de substituir a vontade do devedor, o pressiona psicologicamente ao cumprimento da obrigação com a conseqüente satisfação específica do credor. Não há substituição de vontade, e sim pressão para que a vontade do devedor seja tendente ao cumprimento da obrigação.
Além da multa – abrasileirada do francês para o nome “astreinte” – existem outras formas de pressão psicológica ao cumprimento da obrigação derivada da tutela específica. A nova previsão do art. 14, CPC, em especial o inciso V, par. único, aponta como ato atentatório à dignidade da jurisdição a criação de obstáculos à efetivação da decisão judicial e o descumprimento de pronunciamento mandamental, aplicando-se pena de multa no responsável com valor que pode atingir até 20% do valor da causa.
Há uma diferença fundamental entre a multa astreinte e a multa prevista no art. 14, V, par. único, CPC, diferença essa, inclusive, que permite a cumulação de ambas. No primeiro caso, ainda estamos no terreno da prevenção, ou seja, o objetivo é que a mera ameaça da aplicação da multa convença a parte a não descumprir sua obrigação. No segundo caso, embora também a mera previsão legal possa ser entendida como uma pressão psicológica, a multa passa a ser devida após o cometimento do ato atentatório, com nítida característica punitiva[8].
Parte da doutrina entende que o desrespeito ao cumprimento da decisão judicial nos casos de tutela específica tipifica o crime previsto no art. 330, CPC: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa”. O ato praticado no âmbito do processo civil geraria um efeito externo a esse, ensejando o início da persecução penal, com a devida instauração do inquérito policial para averiguar a ocorrência de crime, inclusive para alguns doutrinadores ensejando a possibilidade de prisão em flagrante[9]. Apesar de ter tal medida natureza de sanção, é inegável que a simples possibilidade de uma punição na esfera penal poderá servir como forma de pressão para que a parte cumpra desde já sua obrigação, não se opondo às decisões do juiz.
Para alguns, inclusive, a prisão nem mesmo necessitaria se justificar no flagrante à prática criminosa, podendo ser utilizada como forma de pressão psicológica. Seria mais um instrumento à disposição do juiz civil, na busca pela efetivação da tutela jurisdicional. Para essa parte da doutrina, nem mesmo a vedação à prisão civil contida na Constituição Federal – com suas conhecidas exceções – seria impeditivo da prisão civil como meio de coerção psicológica[10]. O legislador parece não concordar com tal entendimento, levando-se em conta que em oportunidade recente vetou sugestão do Instituto Brasileiro de Direito Processual para a aplicação de prisão no caso de reiteração do ato atentatório à dignidade da jurisdição (art. 14)[11].
Além da execução indireta, ou seja, de meios de pressão psicológica que buscam levar o devedor ao cumprimento de sua obrigação, o art. 461, CPC, não se esquece da execução forçada, prevendo medidas materiais à disposição do juízo para que o direito do credor seja satisfeito. O § 5º, do artigo supra mencionado, nada mais faz do que elencar, em caráter meramente exemplificativo[12], algumas medidas materiais que podem ser realizadas pelo juiz na busca da efetivação da tutela específica ou de resultado prático equivalente.
Percebe-se que tais medidas materiais fazem parte da tradicional forma de execução forçada, que disponibiliza meios para que o Juízo, representante estatal na demanda, substitua a vontade do devedor pela sua, satisfazendo o direito do credor. Com a aplicação dessas medidas de execução forçada, o juiz, tanto quanto nas hipóteses de aplicação das medidas de execução indireta, estará buscando a satisfação da tutela específica, entregando ao credor exatamente aquilo que teria com o cumprimento voluntário da obrigação. Ainda que seja possível ao juiz a concessão de “resultado prático equivalente”, inegável que as medidas buscaram num primeiro plano a efetiva satisfação do direito do credor.
III – A intangibilidade da vontade humana e a prestação de tutela específica – visão atual concernente à melhora da prestação jurisdicional
A diversidade de medidas colocadas à disposição do juiz na busca da entrega ao autor da exata tutela jurisdicional que se faz merecedor só foi possível em virtude de uma nova tomada de posição no que se refere a intangibilidade da vontade humana, que considerada efetivamente intocável pode levar a frustração de direitos que dependem de ato positivo ou omissivo do devedor. Com a habitual acuidade Ada Pelegrini Grinover nos lembra que durante muito tempo o direito brasileiro, sem conseguir fazer a necessária distinção entre infungibilidade jurídica e infungibilidade natural, louvava como regra absoluta aquela contida no artigo 1.142 do Código Civil francês, pelo qual “toda obrigação de fazer ou não fazer resolve-se em perdas e danos e juros, em caso de descumprimento pelo devedor”[13].
Significa dizer que durante muito tempo a condenação específica de fazer ou não fazer – também da entrega de coisa – dependia para sua satisfação em grande parte da boa vontade do devedor, considerando-se que a mesma somente se executaria conforme prescrito pela obrigação no caso de aceitação da ordem por parte desse. Em outras palavras, a imperatividade da ordem judicial não se operava sozinha, necessitando de um “auxílio” do devedor para se tornar efetiva no caso concreto.
Ocorre que essa estrutura não mais condizia com os objetivos traçados pelo Direito Processual como um mero instrumento que desse ao vencedor exatamente aquilo que ele teria se não precisasse do processo. Chiovenda já havia assim apontando, com a habitual precisão, que o processo como mero instrumento na obtenção do direito material deve atuar de forma a entregar esse mesmo direito almejado, sob pena de não ter exercido sua função como deveria[14]. A automática conversão da obrigação de fazer e não fazer, ou ainda de entrega de coisa, em perdas e danos, era acintosa a tal pensamento. Se o autor pretende uma condenação do réu em fazer algo ou deixar de praticar alguma conduta, a entrega a ele de quantia em dinheiro não condiz com o desejado. Satisfaz-se assim o credor, mas não da forma pela qual seria satisfeito se o devedor tivesse cumprido voluntariamente a obrigação, e nisso encontra-se a inadequação da solução.
Buscando uma tutela mais efetiva e, principalmente, mais próxima do que verdadeiramente obtido pelo vencedor do processo judicial, o legislador em 1994 modificou substancialmente o art. 461, CPC, prevendo a partir daí meios de obtenção da exata tutela ou ainda de tutela que leve ao resultado prático equivalente ao adimplemento. O objetivo do legislador nesse ponto estava claro: conceder meios materiais ao juiz para que o preceito contido na sentença seja cumprido, ou ao menos que o autor obtenha aquilo que tem por direito. Note-se que a previsão do art. 461, CPC, em especial no tocante à execução indireta, não foi totalmente novidade no ordenamento nacional, considerando-se a previsão de prisão civil nas hipóteses de depositário infiel e devedor inescusável de alimentos.
IV – O conflito entre a vontade do titular do direito e a busca da tutela específica
De tudo que já foi afirmado no presente texto, fica claro que os poderes colocados à disposição do juiz na busca da satisfação de um direito reconhecido judicialmente – seja em caráter provisório (tutela antecipada), seja em caráter definitivo (sentença transitada em julgado) – é algo altamente positivo no tocante a qualidade da prestação jurisdicional prestada pelo Poder Judiciário. Armar o juiz de diversos meios materiais para substituir ou coagir a vontade do devedor torna mais factível a idéia de que o direito reconhecido será justamente aquele objeto da satisfação. Se a obrigação é de fazer, o ato será realizado, se de entrega, a coisa será entregue, relevando a um segundo plano a conversão em perdas e danos, que somente se verificará nas hipóteses de frustração de tais medidas.
Segundo as lições de Araken de Assis, “toda execução, portanto, há de ser específica. É tão bem sucedida quanto entrega rigorosamente ao exequente o bem perseguido, objeto da prestação inadimplida, e seus consectários”[15].
Essa idéia de melhor qualidade na prestação jurisdicional invariavelmente converge com a própria vontade do autor, que uma vez em juízo para satisfazer seu direito, verá com bons olhos medidas adotadas pelo juiz, ainda que de ofício, na busca da entrega de tal satisfação. O que se afirma, até mesmo com ares de obviedade, é que o resultado eficaz do processo, entregando ao autor exatamente aquilo que receberia se não precisasse do processo, além de fonte de prestígio ao Poder Judiciário, será também fonte de profunda satisfação ao próprio autor, que verá seu direito material ser satisfeito na plenitude. Significa dizer que há uma identidade entre a boa prestação jurisdicional, entendida como a entrega da tutela específica ao autor, e o desejo do autor no processo.
Apesar dessa ser a regra quase absoluta das situações processuais, surge interessante questão no tocante a deixar o autor de desejar a tutela específica inicialmente perseguida, se contentando com a obtenção de dinheiro em seu lugar (perdas e danos), ainda que se vislumbre a possibilidade das medidas previstas no art. 461, CPC, serem aptas a entregar ao autor exatamente o direito material que alega ter. Nessa hipótese, teríamos de um lado o autor abrindo mão da melhor tutela jurisdicional possível a ser obtida naquele processo e se contentando com uma satisfação subsidiária (já que distante de seu direito material), e de outro o juiz ciente de que poderia, ainda que de ofício, entregar ao autor exatamente aquilo que está representado pelo direito material. O que deverá prevalecer; o direito do autor de renunciar à tutela específica, considerando-se ser ele o responsável pela provocação e mesmo atuação da jurisdição no caso concreto, ou a eventual vontade do juiz, mesmo contrária a do autor, de se embrenhar em medidas de execução forçada e execução indireta na busca da tutela específica, que mesmo não mais desejada pelo autor, representará certamente, em termos de qualidade, a melhor tutela jurisdicional possível de ser obtida no caso concreto.
Poderia acreditar o operador do direito, em razão de todos os escopos programados para a jurisdição, de que uma decisão que entrega ao autor exatamente o que esse merece receber à luz do direito material, ainda que contra sua vontade, poderia até não gerar sua satisfação no caso concreto, mas certamente atingiria outros objetivos, tal como o social e o educativo. Esse, entretanto, é um pensamento que não se coaduna com a realidade, devendo ser peremptoriamente afastado. Ainda que se entregue ao juiz poderes oficiosos na condução e direção do processo, não se pode admitir um exagero nesse grau, com prevalência da alegada “melhor prestação jurisdicional possível”, ainda contra a vontade daquele que seria beneficiado por ela. Ora, se o direito discutido é disponível, podendo o autor abrir mão dele a qualquer momento[16], sem qualquer interferência do juiz, seria absurdo prestigiar a atuação oficiosa do juiz em detrimento da vontade do autor.
Nos parece, inclusive, que o problema se resolve pela correta aplicação de um princípio da execução, que ainda que programado para atuar no tradicional processo executivo autônomo, é absolutamente aplicável na fase de satisfação que se seguirá a decisão condenando o réu a fazer, não fazer ou entregar coisa. Trata-se do princípio da disponibilidade da execução, consagrado no art. 569, caput, CPC: “O credor tem a faculdade de desistir de toda a execução ou de apenas algumas medidas executivas”. É natural que tal dispositivo tenha sido pensado levando-se em conta a desnecessidade de concordância do executado para que a desistência gere seus efeitos, em razão do princípio do desfecho único da execução, mas no parece ser totalmente aplicável também como forma de limitação à atuação do juiz.
Nas sempre corretas palavras de Teori Albino Zavascki, “o princípio da disponibilidade faculta ao credor desistir da ação de execução ou “de apenas algumas medidas executivas”. Medidas executivas, ou meios executivos, são as que têm por finalidade alcançar o atendimento da pretensão do exequente. A desistência de uma delas, na hipótese aventada, não compromete o prosseguimento da execução. Portanto, logicamente, só é viável quando houver pluralidade de meios executivos à disposição do exequente, sejam de coerção (mula diária, prisão) sejam de sub-rogação (alienação de bens, usufruto, desconto em folha)”[17].
A satisfação da tutela específica somente será obtida por meio da realização no caso concreto das medidas de execução forçada e indireta que se encontram à disposição do juiz. Caso o credor não mais deseje essa espécie de tutela, se satisfazendo com a conversão em perdas e danos, estará desistindo de todas as medidas cabíveis para a obtenção da tutela específica, o que impedirá o juiz de determinar a realização de tais medidas de ofício. Sendo permitido ao credor a desistência dos meios de execução, e sendo exatamente esses meios que levam a satisfação da tutela, se mostra claro que, de forma indireta e consequencial, o art. 569, caput, CPC, permite a desistência do credor da tutela específica.
Essa é, indubitavelmente, a melhor solução para a questão proposta, prestigiando-se a vontade da parte, que se pode renunciar a toda execução, poderá tão somente renunciar a uma espécie possível de executar no caso concreto, ainda que essa espécie propiciasse a tutela específica, pretensamente a melhor prestação jurisdicional possível naquele processo judicial. Sendo o direito disponível, não seria mesmo possível acreditar que uma eventual busca cega do juiz pelo que entende ser a melhor qualidade da prestação jurisdicional pudesse simplesmente desconsiderar a vontade do autor, o maior interessado na solução do processo.
Corroborando o entendimento ora defendido, pode ser também invocado o art. 461, § 1º, CPC: “A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente”. Decorre de tal dispositivo legal a disponibilidade da tutela específica, sempre que referente a direitos indisponíveis, sendo absolutamente vetado ao juiz, quer seja pela aplicação desse dispositivo, quer seja pela aplicação do art. 569, caput, CPC, a determinação de ofício de medidas de execução – forçada ou indireta – na busca da entrega de tutela específica ao autor se ele mesmo abriu mão dessa tutela, preferindo a conversão em perdas e danos.
Nesse sentido as exatas lições de Cássio Scarpinella Bueno ao afirmar que “o autor pode pleitear perdas e danos. A hipótese tutela a vontade do autor e indica que a obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente (mesmo quando possível) nem sempre é impositiva para o Magistrado”[18]. Corretamente defende uma disponibilidade do direito à obtenção da tutela específica, que pode ser renunciada no caso concreto, ainda que a obtenção de perdas e danos desvie o resultado do processo da maior coincidência possível de tal resultado com o adimplemento voluntário da obrigação que deu ensejo à demanda.
V – A opção do autor pelas perdas e danos e o princípio da menor onerosidade para o devedor (art. 620, CPC)
A conversão em perdas e danos constitui, como entendemos, uma opção livre e ampla do autor, sempre que a tutela específica, embora alcançável, deixar de interessá-lo no caso concreto, preferindo esse o recebimento de dinheiro pelas perdas e danos suportados. Surge então a questão de saber se tal conversão não poderia ser limitada pelo princípio da menor onerosidade da execução, que afastando o caráter de vingança privada desse processo – ou procedimento -, obsta que o devedor suporte prejuízos além do necessário para a satisfação do direito do credor.
Há parcela da doutrina que já teve oportunidade de se manifestar no sentido de que a conversão somente será admitida quando não tornar excessivamente gravoso o cumprimento da obrigação, ou seja, estará condicionada a conversão da satisfação da tutela específica em perdas e danos sempre que o cumprimento da tutela específica gerar um menor prejuízo para o devedor, se comparado com a execução de pagar quantia certa derivada da conversão em perdas e danos[19]. Apesar de entender plenamente aplicável e justificável o princípio da menor onerosidade do devedor, não nos parece que nesse caso seja exatamente o caso de aplica-lo, até mesmo em razão da visão moderna que se atribui a tal princípio.
Percebeu-se contemporaneamente que a proteção excessiva do devedor se constituiu em um dos principais fatores para a ineficácia do processo, em manifesta afronta ao direito material da parte, já reconhecido, que deixava de ser amplamente satisfeito em virtude do exagerado rol de proteção dispensado à pessoa do devedor. Ao devedor tudo, ao credor, nada, ou muito pouco, como se esse, e não aquele, estivesse na processo para cumprir obrigações. Nesse panorama, a melhor doutrina passou a exigir que o princípio da menor onerosidade fosse aplicado de forma a não sacrificar o princípio da efetividade da tutela jurisdicional[20].
E justamente essa nova visão do princípio da menor onerosidade, que deverá sempre respeitar a efetiva satisfação do credor no caso concreto, impossibilita de se ver na conversão em perdas e danos qualquer sacrifício desnecessário ou excessivo à pessoa do devedor, verificando-se, em regra, exatamente o contrário. Não cumprida a obrigação, a adoção de medidas de execução forçada e indireta invariavelmente prejudicam ainda mais o devedor, o onerando com todos os gastos gerados pelas medidas de execução forçada e ainda a possibilidade de se somar às perdas e danos o valor da multa aplicada. A conversão em perdas e danos, em regra, á medida, entre todas possíveis, que gerará menor sacrifício ao devedor.
E ainda que assim não seja, é preciso recordar que o processo de execução só existe em razão do inadimplemento do devedor, que forçou o seu credor ao ingresso do sempre indesejado processo judicial. Se tivesse cumprido sua obrigação de forma voluntária, no momento adequado indicado pela lei ou pelo contrato, não haveria a necessidade da conversão da obrigação em perdas e danos, pela simples razão de seu adimplemento voluntário. Custa a crer que somente no momento processual de satisfação da obrigação, se coloque contra a conversão em perdas e danos, preferindo o cumprimento específico da obrigação. Se tanto queria cumprir a obrigação dessa forma, que tivesse feito no momento adequado para isso, devendo agora respeitar resignado a opção exercida pelo credor, ainda que isso possa o colocar em uma situação mais desvantajosa da que seria gerada pelo cumprimento específico da obrigação.
Por outro lado, e esse nos parece uma alegação ainda mais definitiva que a feita anteriormente a até aqui desenvolvida, existe norma expressa de direito material que determina a possibilidade de tal conversão pelo simples inadimplemento de uma obrigação de fazer. Trata-se do art. 247, CC: “Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível”. Como se percebe, para as obrigações de fazer há uma norma de direito substancial expressa, o que a nosso ver afasta qualquer espécie de debate no campo processual[21].Apesar da ausência de norma expressa no referente às obrigações de não fazer e de entregar coisa certa (todas tutelas específicas), nos parece plenamente possível a interpretação extensiva do dispositivo legal supra citado.
VI – Conclusões
Em artigo curto como o presente a própria existência de uma conclusão é algo até mesmo bastante discutível. De qualquer forma, é nosso desejo reforçar a idéia de que, apesar de ser sadia uma maior participação do juiz na condução do processo, por vezes percebemos na doutrina nacional e em nossos juízes alguns arbítrios injustificáveis, muitas vezes se esquecendo das partes envolvidas na demanda que, se não são as únicas interessadas em sua solução (em razão dos diversos escopos perseguidos pelo processo), tem evidentemente que terem suas vontades em algum grau respeitadas nas demandas que tratem de direitos disponíveis.
Apesar de inegável a melhor qualidade da prestação jurisdicional quando se obtém a efetiva satisfação da tutela específica, obtendo-se no caso concreto a exata – ou muito próxima – correspondência entre o resultado do processo e o resultado que seria obtido com o cumprimento voluntário da obrigação, é absolutamente possível que o autor não pretende esse exato resultado, preferindo o caminho das perdas e danos. Nessa hipótese, em que em nosso entender a escolha do autor é absolutamente livre, estar-se-á no caso concreto se divorciando do melhor resultado possível àquele processo, mas a satisfação do credor estará garantida plenamente, sendo essa circunstância mais importante que a preservação do princípio da maior correspondência possível.
Eventuais exageros na busca de uma tutela específica, representativa da melhor tutela possível ao caso concreto, poderia levar a absurda situação – não se sabe ao certo se lenda ou caso real – do autor que litigou contra o seu irmão e esse foi condenado numa ação de depósito. Como não houve a satisfação do direito, o juiz de ofício determinou a prisão civil do réu, na busca da tão almejada tutela específica. O autor, ao descobrir que seu irmão estava preste a ser preso, e que isso traria um abalo incontornável no âmbito familiar (em especial quanto à mãe), requereu a conversão da obrigação de entregar em perdas e danos, pedido indeferido pelo juiz sob o argumento de que não abriria mão da busca da melhor tutela jurisdicional possível para aquele caso concreto, que seria a tutela específica.
Ao se admitir como correta tal decisão do juiz, estar-se-ia diante de uma indesejada inversão de valores, o que no exemplo acima representaria o seguinte diálogo entre mãe e filho, que sob as vistas da primeira, seria o responsável pela prisão de seu irmão: “Filho, como pode fazer isso com sangue do seu sangue? Não aprendeste nada comigo? Desculpe, mamãe, eu não queria que isso ocorresse, mas o juiz não quis nem saber, mandou prender meu irmão. Estava irredutível atrás de uma tal “tutela específica”. E isso tudo na macarronada de domingo, certamente a mais indigesta daquela triste e certamente para sempre desunida família…