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Violência doméstica e as inovações da Lei 14.994/2024
Guilherme de Souza Nucci
23/10/2024
A Lei 14.994, de 9 de outubro de 2024, que entrou em vigência a partir da publicação, trouxe relevantes modificações para o cenário dos crimes de violência doméstica e familiar, no Brasil.
Em primeiro plano, criou-se a figura típica autônoma do delito de feminicídio (art. 121-A, CP). Naturalmente, matar a mulher sempre foi considerado crime de homicídio. A Lei 13.104/2015 iniciou a inovação ao incluir, como qualificadora, o feminicídio. O objetivo consistiu em motivos pedagógicos, didáticos e de política criminal, vale dizer, instituir uma qualificadora com título – feminicídio – teve um importante fundamento, consistente em sinalizar para a sociedade a gravidade de se matar a mulher, por razões de condição do sexo feminino, tornando mais grave a punição. Assumiu o Estado uma política criminal mais rigorosa no campo da violência doméstica e familiar.
Emerge, agora, a Lei 14.994/2024, dando sequência aos mesmos propósitos, retirando o feminicídio do tipo penal do homicídio e criando uma figura independente, no art. 121-A do Código Penal. O destaque se tornou mais evidente, além do que o seu grau de relevo se evidencia pela maior pena da legislação penal, considerando-se o máximo, pois foi estabelecida em reclusão, de 20 a 40 anos. Migrou-se para o máximo em abstrato no quantum de 40 anos, porque o art. 75 do Código Penal foi modificado pela Lei 13.964/2019, estabelecendo que o teto para cumprimento de pena privativa de liberdade passou a ser de 40 anos.
A mudança de tipo penal, além de lhe conferir um lugar destacado, elimina a possibilidade de se aplicar a causa de diminuição, prevista no art. 121, § 1º, do Código Penal (matar impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima), embora continue possível aventar a atenuante do art. 65, III, a e c, do CP (similar à referida causa de diminuição).
Reiterou-se a norma explicativa do que vem a ser a “condição de sexo feminino”, justificadora da incidência do feminicídio: violência doméstica e familiar, bem como menosprezo ou discriminação à condição de mulher, demonstrativas da maior vulnerabilidade da vítima.
Manteve-se as causas de aumento de pena, acrescentando-se a condição da vítima ser mãe ou a responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade, ter menos de 14 anos ou o crime ocorrer nas circunstâncias dos incisos III, IV e VIII do § 2º do art. 121 (homicídio).
Por certo, não será com a modificação da lei penal, cominando-se penas mais elevadas ao crime de feminicídio, que a violência contra a mulher será estancada em curto espaço de tempo. Trata-se de um longo processo de reeducação da sociedade, buscando-se eliminar o machismo e a concepção patriarcal ainda dominantes. Porém, a alteração sinaliza a rigorosa visão do Estado para lidar com o abusador de mulheres, que as vitimiza por se considerar superior, sem respeitar a igualdade de todos perante a lei.
Outra inovação indispensável, há muito aguardada, foi o aumento das penas da lesão corporal, tanto do § 9º (lesão praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade), quanto do § 13 (lesão praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino), passando para reclusão, de 2 a 5 anos. Esta modificação tem amplo alcance, não somente para sinalizar a rígida política criminal do Estado para essa espécie de agressão, mas, sobretudo, para viabilizar, com maior segurança jurídica, a decretação da prisão preventiva. O art. 313, III, do Código de Processo Penal, desde a Lei 12.403/2011, passou a prever, expressamente, a possibilidade de decretação da prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher. Permitiu-se a prisão cautelar para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, mas muitas dessas custódias provisórias terminavam prolongando-se por muito tempo, chegando a ultrapassar as penas anteriormente cominadas (detenção, de 3 meses a 1 ano – § 9º; reclusão, de 1 a 4 anos – § 13). A nova faixa da pena privativa de liberdade se adapta, com maior logicidade, à decretação de uma prisão cautelar.
Aliás, facilitando, também, a imposição da prisão preventiva, pois crime frequentemente praticado, elevou-se a pena do delito de descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência em favor da mulher, no cenário da violência doméstica e familiar, para reclusão de 2 a 5 anos, e multa (art. 24-A, Lei 11.340/2006).
No campo da infração penal de ameaça (art. 147, CP), surgiu uma causa de aumento, quando for cometida contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino (aplica-se o dobro), ainda que não tenha sido uma elevação significativa, levando-se em conta a faixa da ameaça simples: detenção, de 1 a 6 meses, ou multa. Nesse contexto, é preciso a máxima cautela para evitar a decretação de prisão preventiva, quando o cenário envolve somente o crime de ameaça, mesmo cometida em violência doméstica e familiar. No entanto, o avanço se deu no tocante à ação penal, que, nesta hipótese, passa a ser pública incondicionada.
Seguindo a severidade estatal, a contravenção penal de vias de fato (art. 21, Lei das Contravenções Penais) obteve uma causa de aumento, permitindo-se a aplicação da pena em triplo, o que não significa muito, pois a faixa cominada é de prisão simples, de 15 dias a 3 meses, ou multa.
O reflexo alcançou, ainda, a Lei de Execução Penal, fixando-se, para efeito de progressão, em 55% o tempo de cumprimento da pena, se o apenado for condenado pela prática de feminicídio, caso primário, vedado o livramento condicional (art. 112, VI-A, LEP). Quando reincidente, continua o tempo de 60%.
Acrescente-se a maior vigilância do sentenciado por crime contra a mulher, quando usufruir qualquer benefício durante o cumprimento da sua pena: deve ser fiscalizado por meio de monitoração eletrônica (art. 146-E, LEP).
Por derradeiro, como efeitos da condenação, obrigatórios e automáticos, figuram, agora, a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela e a perda de cargo, função ou mandato eletivo. Durante o cumprimento da pena, o sentenciado não pode ser nomeado, designado ou diplomado para cargo, função pública ou mandato eletivo (art. 92, II, e §§ 1º e 2º, CP).
Em síntese, a Lei 14.994/2024 não pretende solucionar todos os profundos problemas existentes no campo da violência doméstica e familiar contra a mulher, mas é um passo importante para apontar à sociedade a mudança da política criminal do Estado no trato com quem pretende abusar da vulnerabilidade feminina.
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