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Sobre a conduta de causar epidemia, no art. 267 do Código Penal
Henderson Fürst
12/05/2022
Neste artigo, Henderson Furst e Carlos Ernani Constantino sugerem a alteração do texto do tipo penal previsto no art. 267 do CP, sobre delito de epidemia. Leia!
Sobre a conduta de causar epidemia, no art. 267 do Código Penal
O relatório final da CPI da covid[1], instaurada pelo Senado Federal, sugeriu o indiciamento de diversas pessoas em mais de 20 crimes e, dentre eles, atribuiu o delito de epidemia com resultado morte (art. 267, § 1.º, do Código Penal) a diversas pessoas. Como é um tipo penal pouco aplicado, até onde se têm notícias, analisaremos quais os requisitos para que a conduta seja considerada típica, a fim de responder à pergunta: está correta tal imputação feita pelo sobredito relatório?[2]
Conceito de crime
Desde ERNST VON BELING (1906), a ciência penal alemã conceitua crime, sob o ponto de vista analítico, como [1] conduta [2] típica, [3] antijurídica e [4] culpável. Tal definição é chamada de quadrimembrada (“Viergliedrige Definition”), uma vez que pressupõe em todo o delito quatro características comuns e indeclináveis: a conduta, a tipicidade, a antijuricidade e a culpabilidade. Esta é a opinião dominante na Alemanha, conforme anotam (apenas para citar alguns nomes) HANS WELZEL[3], JOHANNES WESSELS[4], HANS-HEINRICH JESCHECK[5], LACKNER e KÜHL[6], WINFRIED HASSEMER[7] e CLAUS ROXIN[8].
Aqui no Brasil, adotam idêntica visão quadrimembrada: HELENO CLÁUDIO FRAGOSO[9], JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI[10], FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO[11], CEZAR ROBERTO BITENCOURT[12] e LUIZ REGIS PRADO[13].
Assim, na análise de um possível fato penalmente relevante, se faltar um dos quatro elementos genéricos, não haverá delito. Principalmente se faltar a tipicidade, que é a pedra angular de toda a teoria do delito, por ser ela um delimitador ao “jus puniendi” do Estado. Em outras palavras: se a Carta Magna de 1988 consagra o princípio de que “não há crime sem lei anterior que o defina”, ou seja, a máxima do “nullum crimen sine lege praevia” (artigo 5º, inciso XXXIX, da CF), há neste mesmo dispositivo o princípio implícito da tipicidade, isto é, o “nullum crimen sine typo”.
Delito de epidemia
Até onde se tem notícia, o delito de epidemia em nosso Código Penal foi uma criação inspirada nos Códigos italiano e suíço, embora não lhes tenha sido inteiramente fiel[14]. No caso italiano, o Código, que data de 1930 (o chamado Código Rocco), trouxe em seu art. 438 a seguinte descrição originária da conduta: “Quem causa uma epidemia por meio da disseminação de germes patogênicos é punido com prisão perpétua. Se o fato resultar na morte de mais de uma pessoa, é aplicada a pena de morte.”[15] (tradução livre); a pena de morte foi posteriormente abolida pelo Decreto Legislativo 224/1944. Já no caso do Código Penal suíço, que foi inicialmente aprovado por referendo em 1938, a conduta está prevista no art. 231: “Qualquer pessoa que transmita maliciosamente uma doença humana transmissível perigosa será punida com pena privativa de liberdade de um a cinco anos”[16] (tradução livre).
No Brasil, o Código de 1940 trouxe o art. 267, tipificando uma conduta até então inédita aqui:
“Art. 267. Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos.
§ 1º. Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.
§ 2º. No caso de culpa, a pena é de detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, ou, se resulta morte, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos”.
Como se pode observar, a opção brasileira aproximou-se muito da redação do Código italiano. Em ambos os “Codices”, a ação que se estabelece é causar. Segundo ÁLVARO MAYRINK DA COSTA, no tipo penal do art. 267 do CP Brasileiro, “a conduta criminalizada consiste no ato de causar (produzir, originar) epidemia” e a consumação do delito “ocorre quando o resultado é produzido, isto é, com a epidemia, conseqüência do ato do agente de propagar os micro-organismos”[17]. Aqui, cabem dois esclarecimentos: a) a leitura correta da expressão “germes patogênicos” é a de “agentes patogênicos”, para ficar adequada à expressão da microbiologia; e b) embora o tipo fale em epidemia, que é a ocorrência excedente de casos de uma doença em determinados locais geográficos ou comunidades, e que se espalham para outros locais além daquele onde o foco tenha sido identificado, a norma penal congloba a pandemia, que é a disseminação global de uma doença que se manifestou, originalmente, como uma epidemia.
Note-se que o crime só é consumado, quando se obtém o resultado epidemia e é necessário um número relevante de casos que, epidemiologicamente, configurem uma epidemia18. Doutro modo, pode-se falar em tentativa, quando a propagação causa um surto não epidêmico, ou uma lesão corporal (art. 129) ou perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132), ou seja, quando o ato implica apenas no contágio de alguns poucos casos que não configure surto.
O problema da sugestão feita no relatório da CPI de aplicação do tipo penal em questão para a responsabilização de agentes públicos e profissionais do setor privado, em face das medidas profiláticas não adequadas, utilizadas por eles no enfrentamento à pandemia da covid-19 no Brasil, encontra-se no fato de que os atos investigados ocorreram todos após o início da pandemia.
É evidente que a conduta descrita no art. 267 do CP estabelece como núcleo do tipo o verbo causar, que, segundo LUIZ REGIS PRADO, tem o significado de “provocar, produzir, originar” a epidemia e que o delito se consuma “com a efetiva instalação da epidemia[19], ou seja, que o resultado material de tal delito deve ser a efetiva causação da pandemia. Ou, como bem ensina PAULO BUSATO, causar significa “provocar, dar causa, dar ensejo a uma contaminação massiva com uma doença”[20]. O sobredito verbo tem a conotação de dar origem a alguma coisa, tanto que a forma omissiva de tal conduta só é possível quando o agente tem o dever jurídico de impedir o resultado, nos termos do art. 13, § 2º, do Código Penal[21].
Destarte, com a devida vênia das opiniões em contrário, o verbo típico causar significa dar causa a, dar origem a alguma coisa. Se o Legislador quisesse atribuir um significado mais amplo ao tipo penal, teria feito a seguinte previsão: “Causar ou difundir epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”; isto, porque difundir quer dizer: espalhar, disseminar. Há uma diferença cabal entre os dois verbos: causar significa dar origem à epidemia, ou seja, provocar a epidemia desde o seu momento original; difundir quer dizer espalhar ou disseminar a epidemia já existente, a partir de um determinado momento no tempo, que não precisa ser necessariamente o momento originário. Vejamos os tipos penais correlatos.
Segundo parte da doutrina, o art. 259 do CP foi revogado pelo art. 61 da lei ambiental (lei 9.605/98)[22] e [23]. Mas, apenas para fazermos um estudo comparativo, observemos a redação de ambos os tipos penais:
“Art. 259 (do CP). Difundir doença ou praga que possa causar dano a floresta, plantação ou animais de utilidade econômica:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”.
Observe-se que, aqui, não se trata de causar a doença ou praga originariamente, mas de difundi-la a partir de qualquer momento.
E o art. 61 da lei 9.605/98 possui a seguinte redação:
“Art. 61. Disseminar doença ou praga ou espécies que possam causar dano à agricultura, à pecuária, à fauna, à flora ou aos ecossistemas:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.
Veja-se que, aqui também, não se trata de causar a doença ou praga originariamente, mas de disseminá-la a partir de qualquer ponto no tempo.
Assim, considerando as previsões de que novas epidemias e pandemias poderão surgir nas próximas décadas, sugere-se ao Legislador que altere o texto do tipo penal previsto no art. 267 do Código Penal, para acrescentar: “Causar ou disseminar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos, ou agravá-la mediante ato comissivo ou omissivo”. Mas tal mudança, por ser uma “novatio legis in pejus”, somente valerá para os atos praticados após a entrada em vigor da nova lei. Contudo, a lei atual só prevê “causar [originariamente] a epidemia”.
E a tipicidade há que ser analisada, a rigor, deste modo, a fim de se garantir o “jus libertatis” do cidadão, insculpido na Teoria Geral do Delito e na Carta Magna de 1988. Outras interpretações, embora convenientes, vão na contramão do Estado de Direito, conduzindo o Direito à discricionariedade, conveniência e aleatoriedade das circunstâncias.
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[1] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243
[2] Os autores informam que não possuem conflito de interesse ao escrever o presente artigo.
[3] WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman; Parte General. 11ª ed. tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez. Santiago/Chile: Editorial Jurídica de Chile, 1970, p. 73-4.
[4] WESSELS, Johannes. Direito Penal; Parte Geral. Trad. de Juarez Tavares. Porto Alegre: Fabris, 1976, p. 17.
[5] JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts; Allgemeiner Teil (id est: Manual do Direito Penal; Parte Geral). 4ª ed. Berlim/Alemanha, Editora Duncker & Humblot GmbH, 1988, p. 178.
[6] LACKNER, Karl; KÜHL, Kristian. Strafgesetzbuch mit Erläuterungen (i.e.: Código Penal Com Comentários). 24ª ed. Munique/Alemanha, Editora Beck, 2001, p. 53.
[7] HASSEMER, Winfried. Einführung in die Grundlagen des Strafrechts (i.e.: Introdução aos Fundamentos do Direito Penal). 2ª ed. Munique/Alemanha, Editora Beck, 1990, p. 204.
[8] ROXIN, Claus. Strafrecht; Allgemeiner Teil (i.e.: Direito Penal; Parte Geral). 3ª ed. Munique/Alemanha, Editora Beck, 1997, p. 146-7.
[9] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 2ª ed. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1977, p. 164-5.
[10] PIERANGELI, José Henrique e ZAFFARONI,Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 392.
[11] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 80.
[12] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal; Parte Geral. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, v. 1, p. 287.
[13] PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 67.
[14] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1968, v. 4, p. 5.
[15] Art. 438 do Código Penal italiano: “Chiunque cagiona un’epidemia mediante la diffusione di germi patogeni è punito con l’ergastolo. Se dal fatto deriva la morte di più persone, si applica la pena di morte”. Disponível em: https://www.altalex.com/documents/news/2014/06/03/dei-delitti-contro-l-incolumita-pubblica
[16] Art. 231 do Código Penal suíço: “Any person who maliciously transmits a dangerous communicable human disease shall be liable to a custodial sentence of from one to five years.” Disponível em: https://www.fedlex.admin.ch/eli/cc/54/757_781_799/en#art_231
[17] MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2013, p. 753-754, com grifos nossos.
[18] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 9, p. 101.
[19] PRADO, Luiz Regis. opus citatum, p. 865.
[20] BUSATO, Paulo César. Direito Penal. v. 3 – Parte Especial. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, cap.III.3.
[21] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal – Parte Especial – v. 3. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, cap.III, 1.1.1.
[22] PRADO, Luiz Regis. Crimes Contra o Ambiente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 161.
[23] CONSTANTINO, Carlos Ernani. Delitos Ecológicos – A Lei Ambiental Comentada Artigo Por Artigo: Aspectos Penais e Processuais Penais. São Paulo: Lemos e Cruz, 2005, p. 241.