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A postura da defesa nos acordos de não persecução penal
Franklyn Roger
15/01/2021
Recentemente, em decisão monocrática no HC 619.751 (STJ), o ministro Felix Fischer rejeitou Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em que se pleiteava a aplicação do princípio da insignificância em caso em que fora celebrado acordo de não persecução penal (ANPP).
Várias foram as críticas à postura da defesa. A doutrina corporativa teceu longa repulsa ao atuar do defensor público, acusando-o de praticar a quebra da boa-fé e da lealdade processual na sua relação com o órgão acusatório ao admitir o acordo em favor de seu assistido e posteriormente impugnar a validade da avença firmada.
Seria possível admitir a impetração de Habeas Corpus para discutir aspectos da conveniência acordo de não persecução quando ausentes elementos que suportem uma imputação penal, ante o risco potencial do direito de locomoção com eventual instauração da ação penal seja pela negativa do Ministério Público no seu oferecimento ou quando houver negativa judicial à sua homologação?
Acórdão antigo do Supremo Tribunal Federal já admitira a possibilidade de impetração de Habeas Corpus para discutir justa causa em hipótese de aceitação da transação penal, conforme decisão abaixo transcrita:
“1. AÇÃO PENAL. Justa causa. Inexistência. Delito de furto. Subtração de garrafa de vinho estimada em vinte reais. Res furtiva de valor insignificante. Crime de bagatela. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Extinção do processo. HC concedido para esse fim. Precedentes. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser extinto o processo da ação penal, por atipicidade do comportamento e consequente inexistência de justa causa.
2. AÇÃO PENAL. Suspensão condicional do processo. Inadmissibilidade. Ação penal destituída de justa causa. Conduta atípica. Aplicação do princípio da insignificância. Trancamento da ação em habeas corpus. Não se cogita de suspensão condicional do processo, quando, à vista da atipicidade da conduta, a denúncia já devia ter sido rejeitada (STF – HABEAS CORPUS 88393-1 – Origem: RJ – RIO DE JANEIRO – Relator: MIN. CEZAR PELUSO)”.
Essa, no entanto, não parece ser a linha de pensamento mais recente do STJ. Em julgado de 2019, o Tribunal da Cidadania decidiu que a aceitação de transação penal pelo autor do fato o impede de discutir a própria justa causa para a ação penal, demonstrando, portanto, um pensamento alinhado à impossibilidade de enfrentamento de aspectos da imputação quando celebrado algum instituto negocial, conforme vemos da transcrição abaixo:
“A defesa impetrou, perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Habeas Corpus, no qual aduziu a inépcia da denúncia e a ausência de justa causa para a ação penal. Nesse interregno, sobreveio alteração da capitulação legal dos fatos narrados e, por conseguinte, a formulação de proposta de transação penal, que foi aceita pela defesa, razão pela qual o referido writ foi julgado prejudicado de forma monocrática. A transação penal, prevista no artigo 76 da Lei n. 9.099/1995, prevê a possibilidade de o autor da infração penal celebrar acordo com o Ministério Público (ou querelante), mediante a imposição de pena restritiva de direitos ou multa, obstando, assim, o oferecimento da denúncia (ou queixa). Trata-se de instituto cuja aplicação, por natureza e como regra, ocorre na fase pré-processual. Por conseguinte, visa impedir a instauração da persecutio criminis in iudicio. E é por esse motivo que não se revela viável, após a celebração do acordo, pretender discutir em ação autônoma a existência de justa causa para ação penal. Trata-se de decorrência lógica, pois não há ação penal instaurada que se possa trancar. Por fim, vale asseverar que a impossibilidade de impetração de habeas corpus neste caso não significa malferimento à garantia constitucional insculpida no artigo 5º, LXVIII, da Consitiução Federal. Tal entendimento decorre da constatação de que, por acordo das partes, em hipótese de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, deixou-se de formular acusação contra o acusado, possibilitando a solução da quaestio em fase pré-processual, de forma consensual. Portanto, seria incompatível e contraditório com o instituto da transação permitir que se impugne em juízo a justa causa de ação penal que, a bem da verdade, não foi deflagrada” (STJ – HC 495.148-DF, Rel. ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, por maioria, julgado em 24/9/2019, DJe 03/10/2019).
A par da realidade jurisprudencial, um movimento ritmado se instalou no sentido de que uma vez firmado o acordo de não persecução penal, por questões de lealdade processual, não caberia à defesa técnica adotar qualquer outra direção no sentido de tornar ineficaz a avença processual com o intuito de produzir resultado ainda mais favorável ao defendido.
A postura corporativa impressiona. Aponta-se, por exemplo, questionamento sobre a possibilidade de o Ministério Público dar continuidade a investigações em caso concreto, mesmo após firmado o acordo de não persecução penal, uma espécie de quebra da lealdade processual adotada pela acusação, como forma de fazer um comparativo à postura da defesa.
Nessas horas, ao hastear bandeiras contra a atuação defensiva, com o viés predominantemente corporativo e desalinhado com o sistema processual, se revela o quão descompromissado tem sido determinado setor da academia em matéria de funções institucionais e leitura do sistema processual, na defesa de pontos de vista classistas. Parte-se da conclusão para então se buscar os fundamentos que a sustentem, uma falha metodológica tão recorrente nos dias atuais.
Alguns processualistas apontaram as teorias da boa-fé do Direito Civil, sustentando haver um verdadeiro venire contra factum proprium no atuar da defesa que aceita o ANPP e, logo após, veicula pretensão liberatória para o reconhecimento da insignificância.
É importante, então, transportar outros institutos do Direito Privado, a fim de que a crítica seja coerente e não seletiva e se demonstre que a pretensa censura ao atuar da defesa após a celebração do acordo de não persecução não encontra eco nas regras do ordenamento jurídico e que situações casuísticas não podem ser tomadas como regras gerais.
O artigo 28-A do CPP é de uma clareza solar e sua redação se inicia com o seguinte alerta ao Ministério Público: “Não sendo caso de arquivamento”. Ora, para que haja a realização do acordo de não persecução penal, deve haver certeza na opinio delicti, de modo que não paire dúvida sobre a justa causa para a deflagração da ação penal.
Em havendo incerteza sobre o cenário dos elementos de formação do convencimento, deve, sim, o Ministério Público continuar o seu trabalho de investigação (até porque recebeu dito encargo das mãos do Supremo Tribunal Federal) e adiar a oferta de acordo de não persecução para outro momento, quando não mais houver dúvida da pertinência do oferecimento da denúncia.
A investigação prévia e exaustiva é premissa indissociável para o estabelecimento da opinio delicti de forma segura, para só então, se avaliar a certeza da adequação de uma futura imputação e verificar se o caso pode ser abreviado pela celebração do acordo de não persecução.
O ANPP não pode ser utilizado como instrumento de redução de acervo de investigação! Ele só será proposto quando houver certeza que o caso tratado apresenta suporte suficiente para a deflagração da ação penal. É por isso que o questionamento sobre a continuidade das investigações não faz sentido algum.
Na teoria dos contratos do Direito Civil, várias são as hipóteses de revisão de cláusulas contratuais ou do próprio contrato em si (vícios de consentimento, onerosidade excessiva, fortuitos e força maior, são alguns exemplos).
O fato de a voluntariedade ser aferida em audiência (artigo 28-A, §4º, do CPP) não quer dizer que vícios não ocorram. Aliás, a importância da audiência para verificação da voluntariedade é refutada pelo próprio Ministério Público do Estado de São Paulo, já que não faz questão de participar do ato processual, vide seu recente enunciado nº 26 (“Na?o e? obrigatória a participac?a?o do membro do Ministe?rio Pu?blico na audie?ncia de homologac?a?o do acordo de na?o persecuc?a?o penal prevista no §4º do artigo 28-A do CPP”).
É certo que, em matéria de acordos de não persecução penal, a manifestação de vontade prevalente deve ser sempre do investigado, seja pela realização ou objeção ao acordo de não persecução penal, tendo em vista que ele é quem suportará os efeitos de uma sentença condenatória, caso renuncie à proposta de acordo.
A autonomia da defesa técnica no processo penal não tem o condão de gerar uma oposição ao acordo de não persecução penal, quando houver conflitos de vontade com o investigado. Isso não quer dizer que haja óbice em lei a impedir que a defesa possa buscar resultado mais favorável, quando o investigado anui com as cláusulas do acordo e posteriormente se verifiquem motivos justificadores de sua revisão.
Pensemos em alguns exemplos onde a revisão do ANPP é legítima e não viola a boa-fé ou a lealdade processual:
1) Mudança jurisprudencial que assegure um resultado mais favorável do que o acordo: pode ser possível que após a celebração do acordo haja um posicionamento jurisprudencial consolidado no STJ ou no STF que represente um resultado processual mais vantajoso ao acordante. Nesse caso, plenamente possível que se discuta o próprio ANPP com vistas a rescindi-lo ou alterá-lo para se adaptar àquela nova realidade, dentro das premissas do artigo 23 da LINDB;
2) Elementos de formação do convencimento identificados pela defesa, através de sua investigação direta após firmado o ANPP e que alterem as circunstâncias fáticas: pode ser possível que através da investigação defensiva, o defensor identifique elementos, até então desconhecidos, que se contraponham ao panorama investigativo e induzam ao arquivamento da investigação, justificando, então, a revisão do acordo de não persecução penal, mediante reexame das circunstâncias;
3) alterações legislativas que impliquem em tratamento mais favorável, implantação de regra híbrida (norma material e processual) ou até mesmo abolitio criminis: pode haver modificação legal que traga resultado mais brando ao acordante e, em virtude da retroatividade da norma mais favorável, justifique a rescisão ou modificação do acordo de não persecução penal;
4) Onerosidade excessiva nas cláusulas do acordo que impeçam o seu cumprimento por circunstâncias alheias a vontade do acordante: pode ocorrer que as cláusulas do acordo se tornem onerosas ao acordante, em virtude de circunstância pessoal (doença, por exemplo) que impeça o seu cumprimento, justificando o reconhecimento de eventual adimplemento substancial ou a alteração do modo de seu cumprimento;
5) Ocorrência de caso fortuito ou motivo de força maior: Pode ocorrer que as cláusulas do acordo sejam descumpridas em virtude de caso fortuito ou motivo de força maior, o que justificaria a revisão judicial dos seus termos, a depender das circunstâncias apresentadas;
6) Mudança no exercício da defesa técnica: Pode ocorrer que o indiciado constitua novo patrono em detrimento do antigo, constitua a Defensoria Pública no lugar da advocacia ou vice-versa e o profissional/instituição que assume o patrocínio entenda que determinados pontos não foram explorados, contando com a anuência do constituinte para a impugnação da avença.
Das considerações aqui tratadas, percebe-se que a impetração de Habeas Corpus ou qualquer outra medida após firmado o acordo de não persecução penal é legítima. O que pode caracterizar a quebra da boa-fé processual não é o questionamento em si, mas o momento em que foi questionado e o fundamento da impugnação.
Tenhamos cuidado com a censura corporativa e não nos assustemos pelo bradar punitivo. O sistema processual deve ser lido como um todo.
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