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Guilherme de Souza Nucci

Guilherme de Souza Nucci

29/07/2015

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As ciências criminais possuem um cenário próprio e peculiar para o seu aprimoramento científico, bem como para o aperfeiçoamento legislativo integrado e sistematizado, além de aplicação uníssona. Os princípios constitucionais norteadores do Direito Penal e do Processo Penal encontram-se, em grande parte, previstos como direitos e garantias humanas fundamentais. Os tratados internacionais cuidam de ambas as matérias com igual zelo, cuidado e detalhamento. Por isso, não vislumbramos qualquer viabilidade prática, lógica ou funcional para desuni-las.

O devido processo legal tem conteúdo dúplice, envolvendo tanto horizontes penais quanto processuais penais. O princípio da legalidade ou da reserva legal (não há crime ou pena sem prévia cominação legal) insere-se no consagrado princípio do devido processo legal tanto quanto os princípios da ampla defesa e do contraditório. Um processo criminal somente pode atingir bom termo caso sejam respeitados, concomitantemente, os princípios básicos, mormente os constitucionais, do Direito Penal e do Processo Penal.

Apartá-los, no plano científico, soa-nos medida arriscada, pois a perda de elementos substanciais e relevantes do Direito Penal pode concretizar-se, caso o Processo Penal perfilhe aproximação com o Processo Civil. Do mesmo modo, não se pode tolerar que o Direito Penal volte os olhos ao Direito Administrativo, abandonando regras básicas de defesa e contraditório, justamente para facilitar a instrução e permitir, de maneira célere, a aplicação de eventual punição.

Separá-los, no plano prático-forense, representa-nos postura desvinculada do plano garantista, logo, desatada do status constitucional há muito procurado pelos operadores do Direito, em sua maioria.

Alguns exemplos são propícios. A Lei 11.689/08 brindou-nos com modificações convenientes e modernas quanto ao procedimento do Tribunal do Júri e sua organização. Dentre elas, buscou facilitar a elaboração dos quesitos, porém, ansiando a facilidade, terminou por renegar o aspecto penal de alguns importantes pontos. O art. 483 do Código de Processo Penal não prevê, em momento algum, a inclusão de quesito específico relativo ao excesso culposo, quando alegada qualquer excludente de ilicitude pela defesa. É certo que, acolhida a tese defensiva, será o réu absolvido. Porém, se os jurados entenderem que houve excesso (ausência de moderação, por exemplo) e desejarem firmar o entendimento de que tal excesso foi culposo, a cumprir literalmente o disposto pelo art. 483, seria impossível. Logo, cabe ao magistrado determinar a inserção do quesito específico, indagando se o excesso, porventura existente – porque negado o quesito “o jurado absolve o acusado?” – foi culposo. Assim fazendo, permitirá a aplicação do art. 23, parágrafo único, do Código Penal. Disciplina esta norma que todas as excludentes de ilicitude comportam a discussão acerca do excesso doloso ou culposo. Em hipótese alguma, em nome da celeridade, simplificação ou qualquer outra motivação para a economia processual, pode-se, concomitantemente, ferir a plenitude de defesa e o Código Penal. A matéria processual, consubstanciada no método para a elaboração do questionário no júri, não tem o condão de reformular, por via oblíqua, o disposto em norma penal. O Processo Penal não tem nenhum sentido sem o respeito às normas e princípios penais. O processo criminal não vale por si mesmo, não tem fim útil próprio, nem mesmo objetivo isolado. A aplicação da lei penal é o seu escopo e sobre tal meta deve ser estruturado.

Outra importante ilustração deve ser extraída do valoroso momento do interrogatório. O art. 187 do Código de Processo Penal disciplina o conteúdo das perguntas que o magistrado deve dirigir ao réu, caso este deseje responder. Muitas delas cuidam de assunto tipicamente processual, v. g., “onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta” (art. 187, § 2o, III). Outras, no entanto, possuem conteúdo material nítido: “meios de vida ou profissão”, “oportunidades sociais”, “vida pregressa”, “outros dados familiares e sociais” (art. 187, § 1o). Tais indagações não têm o objetivo de sanar qualquer curiosidade do magistrado ou das partes, mas o de esclarecer (ou ajudar a fazê-lo) quem é a pessoa em julgamento, vale dizer, qual é o cenário onde estão inseridas a personalidade, a conduta social, os antecedentes, os motivos, as circunstâncias do crime, o comportamento da vítima, em suma, os relevantes elementos do art. 59 do Código Penal, estrutura fundamental para a construção da pena-base. O magistrado preocupado com os aspectos penais de eventual futura sentença condenatória deve servir-se do ato processual do interrogatório para iniciar a sua coleta de dados, que lhe serão úteis para alicerçar a decisão. Não importa saber, por exemplo, quais foram as oportunidades sociais que o acusado teve na vida se inexistirem provas para condená-lo. Deve ser absolvido e ponto. Porém, caso seja condenado, a fixação da pena precisa observar os postulados colhidos na instrução. O horizonte penal norteia a visão procedimental. Sem o processo, sem dúvida, inviabiliza-se qualquer condenação. Porém, sem a visão do instituto penal a ser aplicado, realiza-se uma instrução insatisfatória e deficiente.

Outro dado importante cinge-se ao conteúdo do art. 395 do Código de Processo Penal. Não estando presentes as condições da ação ou constatada a falta de justa causa para a ação penal, naturalmente, deve-se rejeitar a denúncia ou queixa. Exemplo disso será o fato atípico. Por óbvio, ninguém pode ser processado por algo que, nem mesmo em tese, é crime. Cabe ao juiz rejeitar a denúncia ou queixa. Nem se pode falar em recebimento da peça acusatória para posterior absolvição, pois, nessa situação, já teria havido o constrangimento ilegal de se submeter uma pessoa a um processo-crime sem qualquer base legal e muito menos constitucional. Explorar, portanto, os elementos do crime, em prisma analítico, fornece um espectro favorável ao magistrado para receber ou rejeitar a peça acusatória. Conhecer os meandros das excludentes de ilicitude e de culpabilidade permite ao juiz avaliar a pertinência de admitir o ajuizamento da ação penal, determinando a citação (ou mesmo a mera notificação, conforme o caso) do réu e, conseqüentemente, a sua movimentação para provar a inocência. Rejeitar a peça acusatória quando os elementos do crime estão ausentes é dever do magistrado. Para tanto, ele deve unir seus conhecimentos de Direito Penal ao seu particular zelo com o Processo Penal, tomando a medida justa e adequada.

Inexiste, ainda, qualquer hipótese legítima para se admitir no processo penal a extinção do feito, sem julgamento de mérito, como ocorre no processo civil. No cenário penal, ninguém poderá ser processado duas vezes pelo mesmo fato. Associando-se tal garantia individual ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, bem como à sua indisponibilidade, uma vez ajuizada, outra não pode ser a solução que não o conhecimento e a resolução do mérito da demanda. Inviável seria extinguir o processo criminal, por exemplo, por carência superveniente (constatação de ausência de condição para o exercício da ação), possibilitando-se que o órgão acusatório reingresse, no futuro, com novo pedido. O art. 267 do Código de Processo Civil não tem aplicabilidade no âmbito penal. Dessa forma, constatada a carência superveniente, conforme o estágio do processo, pode (e deve) o magistrado julgar e absolver o réu. Cessa, pois, a possibilidade de reingresso em juízo. Lembremos, ademais, que a impronúncia é decisão terminativa, colocando fim ao processo, sem julgamento de mérito, permitindo-se o ajuizamento de nova ação penal, caso surjam outras provas. Trata-se, em nosso entendimento, de decisão anômala e lesiva aos interesses do Estado Democrático de Direito. O correto seria a absolvição e o encerramento da questão definitivamente. Arranha, sem dúvida, a garantia de que ninguém será duas vezes processado pelo mesmo fato. Merece revisão legislativa a norma permissiva do art. 414, parágrafo único, do CPP.

Incompreensível seria no processo penal, diversamente do que ocorre no processo civil, qualquer hipótese de reconhecimento do pedido, implicando em julgamento de mérito, acolhendo-se o pleito do autor. Os direitos que estão em jogo no processo penal não se coadunam com a disponibilidade, pois tratam da liberdade do indivíduo. Nos mesmos moldes, temos sustentado inexistir no processo penal o efeito denominado revelia. Quando o acusado, citado, deixa de se apresentar ou contratar advogado, em verdade,ausenta-se, mas não sofre, nem pode sofrer, qualquer represália, qualquer nociva conseqüência de seu ato. Cuida-se de um direito, logo, seria inadequada a promoção, por exemplo, do julgamento antecipado da lide, nos parâmetros idealizados pelo art. 330, II, do CPC.

Outra situação peculiar diz respeito à disposição do art. 330, I, do Código de Processo Civil, indicando poder o magistrado conhecer diretamente do pedido, proferindo sentença, “quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência”. Essa alternativa é praticamente impossível ao juiz criminal. Não há, como regra, questões somente de direito em matéria penal. Eventualmente, casos ligados à extinção da punibilidade podem concentrar-se em questões de direito (prescrição, anistia, indulto). Ainda assim, conforme a situação concreta, dependeria de prova (ex.: o indulto condicionado, cuja aceitação somente ocorre com a verificação fática da condição imposta). No mais, partindo-se da tradicional necessidade do Direito Penal, a demandar atenção do Processo Penal, da verificação da tipicidade, subsumindo-se o fato ao modelo abstrato do modelo incriminador, tal juízo só terá condições de se perfazer, validamente, na imensa maioria dos casos, pela produção de provas, desprezando-se, por óbvio, o que foi colhido na fase da investigação policial, sob o crivo inquisitivo. Pode ser simples constatar se alguém pagou ou não uma dívida, bem como se é válido ou não um determinado contrato; porém, inexiste a referida singeleza para se verificar a culpa de alguém que tenha furtado, matado ou violentado outra pessoa. Basta analisar os feitos cíveis em contraste com os criminais e ponderar a indispensabilidade da produção de provas no cenário penal.

O princípio do duplo grau de jurisdição é, sob a ótica penal, uma garantia humana fundamental, o que não ocorre no cenário civil. O mesmo se diga do consagrado princípio da busca da verdade real, afirmado e reafirmado pela jurisprudência brasileira em todos os níveis. Não se pode equipará-lo ao contexto civil, uma vez que, na prática forense, os magistrados, com razão, não buscam a prova com o mesmo interesse do juiz criminal. Tal medida é lógica e justificável, uma vez que, no contexto penal, como já mencionado, lida-se com o direito à liberdade, em último grau, mas, na esfera civil, pode-se julgar meras questões patrimoniais, disponíveis por certo. Aliás, a ausência de contestação, no cível, autoriza o magistrado a considerar verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (art. 319, caput, CPC). Pura presunção, que pode, por óbvio, estar distante da realidade. É certo poder o magistrado, ainda assim, determinar a produção de alguma prova. Porém, basta constatar a realidade: quantos o fazem em face da revelia do réu no cível? O mesmo não ocorre no processo criminal e a instrução deve dar-se de qualquer forma, com uma defesa atuante e eficaz, sob pena de o juiz declarar o acusado, ainda que ausente, indefeso, nomeando-lhe outro defensor.

Outro ponto inquestionável é o fato de se admitir, no processo civil, o ajuizamento de ações temerárias, sem qualquer prova pré-constituída, sem lastro documental mínimo a acompanhar a inicial. Basta uma petição, contendo alegações, cercada da procuração outorgada pelo autor ao seu advogado e recebe-se o “cite-se”, desde que haja regularidade formal. No processo penal, para se demonstrar a adequação do fato ao tipo penal, base do pedido condenatório formulado pela acusação, exige-se razoável quantidade de prova antecipada, consubstanciada, quase sempre, pelo inquérito policial. O juiz deve rejeitar a denúncia ou queixa se não vislumbrar tipicidade (art. 395, II e III, CPP). Nem mesmo se cogita a hipótese de determinar a citação (ou notificação, conforme o caso) do acusado para responder aos termos da inicial. Encerra-se o recém inaugurado processo, sem o aperfeiçoamento da relação. Caso o magistrado receba a denúncia ou queixa, sem lastro probatório mínimo, constitui cenário de constrangimento ilegal, passível de amparo pela via dohabeas corpus. Ressalte-se, inclusive, que ninguém tem interesse em propor mandado de segurança, v. g., para trancar ação civil, recebida injustificadamente. Não se trata do mesmo grau de constrangimento que ocorre na órbita penal.

As disparidades entre o processo penal e o processo civil são inúmeras. Acima, expusemos, em nossa visão, alguns pontos apenas. Por isso, as reformas legislativas no âmbito do Processo Penal precisam voltar-se ao contexto Penal, valorando o que está, autenticamente, em jogo e jamais buscando a aceleração, a qualquer custo, do procedimento, em função exclusiva da economia processual. Economia pode ser inimiga letal da liberdade. Entre ambos, não nos parece deva haver qualquer opção que não seja pela última.

Não se trata de vincular o direito material ao processual unicamente para fins de aplicação prática, mas para instruir a visão do estudioso e do operador do Direito. Em matéria criminal, a indisponibilidade dos valores prevalece; o relevo dos direitos e garantias fundamentais é a pedra de toque dos processos; a celeridade ou a rapidez devem ser deslocadas para o segundo plano, caso firam, ainda que singelamente, direitos de defesa do indivíduo; o processo civil pode servir de fonte ao processo penal, desde que o campo penal seja fielmente respeitado. As ciências criminais caminham irmanadas e assim devem ser aplicadas.


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