GENJURÍDICO
Knight giving a rose to lady

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Ínicio

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Penal

PENAL

A “nova” violência doméstica no Supremo Tribunal Federal

11.340/200

CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL

LEI MARIA DA PENHA

PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO INSUFICIENTE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

REPRESENTAÇÃO

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Rodrigo Bello

Rodrigo Bello

04/04/2016

“Exigir da mulher a representação não é protegê-la e sim, deixá-la vulnerável”

Ministro Marco Aurélio, relator

“O advento do constitucionalismo fraternal”

Ministro Carlos Ayres Brito

“A norma seria corolário da incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais.”

Passagem da decisão da ADC 19

Closeup portrait of medieval knight in armor holding red rose on dark background, romance concept

Uma abordagem definitiva sobre os aspectos processuais, penais e midiáticos que foram discutidos nos julgamentos das ADI 4424 e ADC 19 pelo Supremo Tribunal Federal.

1. Introdução

Novamente a popular Lei Maria da Penha (11.340/2006), a lei de combate à violência doméstica contra a mulher, volta às discussões jurisprudenciais. Agora em nossa mais alta corte, no Supremo Tribunal Federal.

No dia 07.06.2010, foi distribuída a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424 proposta pelo atual Procurador Geral da República, representante máximo do Ministério Público, Roberto Gurgel. Relatoria por prevenção do Min. Relator Marco Aurélio de Mello.

Tinha por objeto esta ação declarar condicionada à representação a ação pública nos casos de lesões corporais leves e culposas. A razão da polêmica residia na constitucionalidade duvidosa do art. 41 da lei 11.340/06 que impedida expressamente a aplicação da lei 9.099/95, a famosa lei dos Juizados Especiais Criminais. Tal diploma, precisamente, em seu artigo 88 traz a necessidade de representação para crimes desta monta.

Esta postura do Ministério Público demonstra claramente a intenção de se dar, de uma vez por todas, uma definição constitucional acerca de alguns aspectos da mais alta relevância desta famosa lei extravagante que, sem sombra de dúvidas, veio para tentar diminuir um grave problema que assola e incomoda diversos lares brasileiros.

A discussão acerca do tema é interessante, havendo posições doutrinárias e jurisprudenciais antagônicas, inclusive no Superior Tribunal de Justiça.

Aproveitando a semelhança dos temas envolvidos, foi julgada também a ADC 19 ajuizada pelo Presidente da República, com escopo de assentar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006 (Maria da Penha).

Quais seriam estes temas polêmicos? Porque desta ação constitucional? Qual foi seu resultado? Por que a mídia nos ensina constantemente que violência doméstica estaria restrita às agressões físicas?

Passemos a tecer breves comentários a respeito.

2. Violência Doméstica não é apenas agressão física

Antes de iniciarmos a abordagem específica deste artigo, permitam-me esclarecer uma angústia pessoal vivida e presenciada constantemente em sala de aula e palestras. Por que achamos que violência doméstica é sinônimo de agressão física?

Infelizmente a mídia não esclarece isso para nossa população, não demonstra para todos nós enquanto sociedade que violência doméstica é mais abrangente. A sociedade como um todo deveria ter a visão correta, de que o termo abrange diversas outras condutas, tais como ameaças, crimes contra os costumes, crimes contra a honra, apenas para exemplificar um rol de condutas mais comuns envolvendo a mulher como vítima em âmbito doméstico.

A lei tenta ajudar dispondo no art. 7º a abrangência do termo violência doméstica dispondo que seria não só a física, como também a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral.

Interessante a colação da ementa do

acórdão 12. 693591-7 do Tribunal de Justiça do Paraná, onde podemos verificar a incidência de outros dois crimes (ameaça e crimes contra a honra), não deixando de mencionar interessante postura deste Egrégio Tribunal quando verificarmos ausência dos Juizados De Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, cuja disposição legal encontra-se no art. 14 da lei 11.340/06. Senão vejamos:

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA DELITO DE AMEAÇA E CRIME CONTRA A HONRA, PRATICADOS NO ÂMBITO FAMILIAR JUIZADOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER NÃO ESTRUTURADOS NA COMARCA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM APLICAÇÃO DOS ARTS. 33 E 41 DA LEI MARIA DA PENHA E DA RESOLUÇÃO 15/2007 DO ÓRGÃO ESPECIAL DESTE TRIBUNAL CONFLITO CONHECIDO E JULGADO PROCEDENTE PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO SUSCITADO.

3. Todo crime contra a mulher se encaixa na lei 11.340/2006?

Outro alerta precisa ser feito antes do real objetivo deste artigo. A lei Maria da Penha não visa generalizar a proteção. Não podemos aplicar a todas as vítimas mulheres a incidência da lei em comento. No julgamento em plenário do STF, o Ministro Celso de Melo demonstrou essa preocupação dando o exemplo de um casal, cujo marido estava dirigindo um veículo automotor e envolvendo-se, por imprudência, em acidente automobilístico, vem a ferir sua esposa que se encontrava no carona. Alertou o brilhante jurista que em nada tal fato poderia dar ensejo à incidência da lei 11.340/06.

Sendo assim quando efetivamente iremos aplicá-la? A lei menciona no artigo 5º o campo de incidência, abordando o “aspecto familiar, da unidade doméstica e em qualquer relação íntima de afeto.” Entretanto, a simples leitura já nos deixa um pouco perdido, pois se trata de conceitos jurídicos subjetivos e indeterminados, inclusive sendo estes, em nossa opinião, um dos maiores inimigos do moderno processo penal, dando ensejo a discursos inflamados para serem ouvidos em todos os cantos.

Com tal insegurança, cabe a jurisprudência o socorro necessário de aplicabilidade da lei da Violência Doméstica.

Abaixo interessante julgado do Tribunal mais progressista desse país, o do Rio Grande do Sul, onde percebemos interessantes pontos da lei, onde um irmão pode ser autor de condutas que envolvam violência doméstica e a tendência atual de aplicação da lei.

Ementa: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. AGRESSÕES DO IRMÃO CONTRA A IRMÃ. INCIDÊNCIA DA LEI 11.340/06. O artigo 5º da Lei Maria da Penha configura como violência doméstica e familiar contra a mulher toda espécie de agressão (ação ou omissão), baseada no gênero, isto é, na condição hipossuficiente da mulher, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, importando em violação de direitos humanos, independente da habitualidade da agressão. Portanto, a Lei se preocupa com a proteção da mulher, contra os atos de violência praticados por homens com os quais ela tenha ou haja tido uma relação marital ou de afetividade, ou ainda por qualquer pessoa com quem ela conviva no âmbito doméstico e familiar, quais sejam: o pai, o irmão, o cunhado, etc. O delito de lesões corporais ocorreu no seio da família, praticado, em tese, pelo irmão da vítima, figurando como sujeito ativo da violência. Constata-se, a princípio, a fragilidade e a hipossuficiência proveniente do gênero, condições sine qua non para a aplicação diferenciada da Lei 11.340/06. Assim, a competência para julgamento do feito é do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA IMPROCEDENTE. (Conflito de Jurisdição Nº 70046154340, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francesco Conti, Julgado em 14/12/2011) (grifo nosso)

Já no Superior Tribunal de Justiça (CONFLITO DE COMPETÊNCIA 2007/0171806-1) mais uma demonstração de que para se aplicar a lei Maria da Penha a questão da fragilidade da mulher deve estar evidente:

“No caso, havendo apenas desavenças e ofensas entre irmãs, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize situação de relação íntima que possa causar violência doméstica ou familiar contra a mulher. Não se aplica a Lei nº 11.340/06.”

4. A Ação Declaratória de Constitucionalidade 19/DF

O objetivo de mencionada ação era de declarar constitucional os artigos 1º, 33 e 41 da lei 11.340/06.

O artigo 1º informa os objetivos da lei que seriam o de criar “(..)mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art.

226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais(…)

Declarada a constitucionalidade, podemos destacar da própria decisão a real justificativa para tanto: “Reiterou-se a idéia de que a aludida lei viera a baila para conferir efetividade ao art. 226, § 8º, da CF. Consignou-se que o dispositivo legal em comento coadunar-se-ia com o princípio da igualdade e atenderia à ordem jurídico-constitucional, no que concerne ao necessário combate ao desprezo às famílias, considerada a mulher como sua célula básica.”

O tema é envolvente e necessário destacarmos outra passagem da decisão de nossa mais alta corte: “o legislador teria utilizado meio adequado e necessário para fomentar o fim traçado pelo referido preceito constitucional. Aduziu-se não ser desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação, visto que a mulher seria eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado. Frisou-se que, na seara internacional, a Lei Maria da Penha seria harmônica com o que disposto no art. 7º, item “c”, da Convenção de Belém do Pará (“Artigo 7. Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: … c. incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis”) e com outros tratados ratificados pelo país.”

A segunda discussão foi acerca do art. 33. Menciona este que enquanto ainda não tivermos os Juizados especializados da Violência Doméstica (art. 14), as varas criminais acumularão as competências cíveis e criminais para conhecer e julgar as causas de violência doméstica. Mais uma vitória para a lei. Sua declaração de constitucionalidade pautou-se no sentido de que “não ofenderia os artigos 96, I, a, e 125, § 1º, ambos da CF, porquanto a Lei Maria da Penha não implicara obrigação, mas faculdade de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conforme disposto nos artigos 14, caput, e 29, do mesmo diploma. Lembrou-se não ser inédita no ordenamento jurídico pátrio a elaboração de sugestão, mediante lei federal, para criação de órgãos jurisdicionais especializados em âmbito estadual. Citou-se, como exemplo, o art. 145 do ECA e o art. 70 do Estatuto do Idoso.”

Concluindo, e com final feliz, diga-se de passagem, em nossa opinião, rememorou-se a constitucionalidade do art. 41 da lei, que impede a aplicação da lei 9.099/95, com base nos princípios da proporcionalidade e da igualdade, trazido ao julgar o HC 106212/MS (DJe de 13.6.2011).

  1. A Ação Direta de Constitucionalidade 4424

Já esta ação enfrentou a questão da ação penal referente aos crimes de lesões corporais leves e culposas (art. 129 CP).

Qual seria o tipo de ação penal? Passemos a analisar o tema.

Evidencia-se com a simples leitura da lei 11.340/06, que por sinal possui uma redação simples e cristalina, que esta teve por objetivo proteger a mulher brasileira. A postura jurisdicional anterior à lei, para nossa infelicidade, era de um total sentimento de impunidade. Os tribunais obedeciam à fria e insensível legislação geral pertinente. O aspecto social era fator preponderante também para a impunidade, sem falar na falta de incentivos que ainda precisam ser dados à agredida em informar eventuais delitos às autoridades.

Com base neste contexto, veio em boa hora a promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha, justa homenagem a essa brasileira vítima de agressões que hoje simboliza toda a luta de combate à violência doméstica.

Para se diminuir este sentimento de impunidade e, evidentemente, para se buscar uma efetiva proteção à mulher, certamente frágil em situações desta monta, a lei utilizou algumas proibições e que foram discutidas nesta ação constitucional. Com esta Ação Direta de Inconstitucionalidade, o i. Procurador Geral da República, objetiva dar aos artigos 12 inc. I, 16 e 41 da lei 11.340/06 a certeza de constitucionalidade.

Para nos situarmos bem precisamente ao problema vejamos os presentes dispositivos para, em seguida, analisarmos o porquê destes artigos na lei.

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.

O problema é mais sério do que imaginamos.

Antes da promulgação da lei 11.340/06 a mulher vítima, agredida, deveria se valer de toda sua coragem e vontade para que alguma medida fosse possível. Difícil exigirmos isso, tendo em vista a benevolência de tratamento dada ao agressor. Esclarecemos. Peguemos como exemplo um dos crimes de maior incidência em âmbito doméstico, justamente a matéria em questão, o delito de lesões corporais leves ou culposas, com disposição legal conjunta nos artigos 129 CP e 88 da lei 9.099/95.

Uma vez agredida, a mulher tinha que comunicar o fato a uma das autoridades oficiais mais próximas, geralmente o Delegado de Polícia ou, porventura, o Promotor de Justiça. Neste momento é que se percebe o bom investimento em Delegacias especializadas, pois um local apropriado ajuda, contribui e incentiva o deslocamento da mulher à repartição pública. Essa comunicação é altamente relevante juridicamente, pois os crimes de lesões corporais leves e culposas são passíveis de representação, por serem condicionadas as ações penais.

Portanto, esta condição de procedibilidade do art. 39 CPP, deve ser respeitada. Sem essa manifestação de vontade, os órgãos incumbidos de persecução criminal não podem exercer suas funções precípuas.

Pois bem, em termos sociais essa necessidade de representação se transformava numa verdadeira exigência corajosa, num verdadeiro fardo que a mulher era submetida. Vencer obstáculos e imposições sociais de uma sociedade, ainda extremamente machista e patriarcal não contribuíam em nada para esse deslocamento desumano que a mulher era submetida. Se fizermos uma simples análise de dados estatísticos perceberemos que dificilmente a mulher, na primeira agressão, comunica tal fato. O problema se arrasta, aumenta e quando fica insustentável, a agredida engole seco e se dirige a uma Delegacia. Importante também nesse instante a propaganda excessiva que deveríamos ter em relação à lei. Ainda, exigirmos de nosso Poder Executivo um investimento pesado em facilitar a informação acerca de locais e medidas a serem tomadas. A agredida está frágil, desnorteada e precisa de informação simples e fácil. Investimentos estruturais também são necessários para a efetividade da norma.

Uma vez comunicado o fato, seguindo a legislação anterior, o (a) agressor (a) era eventualmente notificado(a) e, sabendo da enrascada que a mulher o colocou, aumentava a intensidade das agressões ou ameaçava ainda mais a vítima, criando uma situação insustentável para a mulher que, sem forças, se dirigia novamente à Delegacia, para agora retirar a representação anteriormente feita. Esta medida é possível, tendo em vista a permissão do art. 25 do CPP em se retirar a representação até o momento do oferecimento da ação penal.

Esta medida está lamentada pelas autoridades oficiais que recebiam tal notícia de desistência, de retirada da representação, mas que estava conformidade com a lei. Tristes ameaças das mais insólitas, tais como um agressor que externou a vítima, dona de casa e mãe de 6 filhos, que não pagaria mais o leite para as crianças se ela não fosse à Delegacia se retratar. Em terra brasilis, infelizmente nossa realidade social nos surpreende quase sempre.

Entretanto, imaginemos a mulher que, mesmo ameaçada ou até mesmo continuando a ser agredida confia na cega justiça e não retira sua representação, permitindo assim que o Estado haja. Tratando-se de delito de menor potencial ofensivo, o feito era enviado ao Juizado Especial Criminal e, na grande maioria das vezes, o eventual agressor (a) pagava cestas básicas ocasionando ainda mais o sentimento de uma impunidade autorizada, ou seja, “bate e paga cesta básica que está tudo bem.”

Sensível a estes 2(dois) problemas, a lei 11.340/06, numa tentativa, como já dissemos, de se proteger a parte frágil, a vítima, a mulher, a comprovadamente vulnerável, o texto legal no art. 41 impediu a aplicabilidade da lei 9.099/95 em situações de violência doméstica e ainda, acertadamente, proibiu o pagamento de cestas básicas numa intenção clara de se impedir a proliferação “do bateu, paga cesta básica”, jargão que ficaria famoso neste campo. Por óbvio, esta medida não gerava nenhum tipo de reflexão por parte dos eventuais agressores. Vejamos o art. 17 que tenta melhorar a situação triste ora narrada:

“É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que  implique o pagamento isolado de multa.”

Portanto, a lei veio com medidas protetivas consideráveis. E a discussão se instaurou. Isto porque, fazendo uma análise sistemática, se a lei 11.340/06, em seu art. 41 já visto, proíbe a aplicabilidade da lei dos Juizados Especiais Criminais (9.099/95), conseqüentemente proíbe o art. 88 da lei 9.099/95, que traz a necessidade de representação para os crimes de lesões corporais leves e culposas (só estes!). A lei 11.340/06 assim proibiu literalmente a incidência de qualquer artigo sequer da lei 9.099/95. Justificativa: benevolência nos casos de violência doméstica.

Sendo assim, lesões corporais leves e culposas, em âmbito doméstico, só nestes casos, diga-se de passagem mais uma vez, passariam a ser de ação penal pública incondicionada, pelo simples fato de não termos mais a possibilidade de aplicar o art. 88 da lei 9.099/95, diploma este proibido em âmbito doméstico, que traz a necessidade de representação.

Inegável que a Lei Maria da Penha quis isso, tendo em vista todo o sentimento de impunidade e fragilidade já exposto linhas acima. Exigir a representação era, no mínimo, não condizente com a realidade frágil da vítima.

Entretanto, como bem dissemos, a discussão se instaurou e a Ação Direta proposta veio no sentido de darmos essa interpretação à lei. Merece aplausos a postura do membro do parquet.

Mas será que a questão teve andamento tranqüilo no Supremo Tribunal Federal?

Veremos neste artigo posições e decisões contrárias à nossa, sem antes um momento de reflexão: Quando foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, com intuito de se proteger a fragilidade de nossos jovens e meninas, existiam reclamações consideráveis de juristas e da sociedade? A mesma pergunta em relação ao Estatuto do Idoso. Não era claro que deveríamos proteger a fragilidade dos idosos?

Por que quando é promulgada uma lei de proteção à mulher, temos inúmeras discussões? Pensemos neste motivo.

6. Posições Jurisprudenciais e Doutrinárias

A mais significativa posição jurisprudencial acerca do tema foi proferida no Superior Tribunal de Justiça, numa decisão, digamos, histórica. Vejamos notícia do próprio site do STJ:

“Ministério Público pode mover ação por violência doméstica contra a mulher: Por maioria (3 votos a 2), a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu que a violência doméstica contra a mulher constitui delito de ação penal pública incondicionada. Com esse entendimento, a Turma rejeitou o pedido de habeas-corpus de José Francisco da Silva Neto, denunciado pelo Ministério Público do Distrito Federal por suposto crime de violência doméstica contra sua mulher.

O delito sujeito a acionamento penal público incondicionado é aquele que não necessita que a vítima impulsione a sua investigação ou o ajuizamento da ação penal, que pode ser movida pelo Ministério Público. Na ação penal pública condicionada, a ação criminal só é ajuizada com o consentimento expresso da vítima.

A Lei Maria da Penha define o crime de violência doméstica como a lesão corporal praticada “contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”. No recurso ajuizado no STJ, a defesa requereu o trancamento da ação penal contra José Francisco alegando que a suposta vítima manifestou o desejo de não dar prosseguimento à ação. A relatora do processo, desembargadora convocada Jane Silva, destacou em seu voto que o Ministério Público tem o dever de mover ação em casos de lesões corporais leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher. Segundo a desembargadora, com a Lei Maria da Penha, o legislador quis propor mudanças que pudessem contribuir para fazer cessar, ou ao menos reduzir drasticamente, a triste violência que assola muitos lares brasileiros.

O julgamento do recurso foi interrompido três vezes por pedidos de vista. O voto-vista que definiu o resultado do julgamento, do ministro Paulo Gallotti, reconheceu que o tema é controvertido e conta com respeitáveis fundamentos em ambos os sentidos, mas ressaltou que, com a Lei Maria da Penha, o crime de lesão corporal qualificado deixou de ser considerado infração penal de menor potencial ofensivo, ficando sujeito ao acionamento incondicional.

Para ele, a figura da ação incondicional é a que melhor contribui para a preservação da integridade física da mulher, historicamente vítima de violência doméstica. Ao acompanhar o voto da relatora, Paulo Gallotti também ressaltou que o agressor tem que estar consciente que responderá a um processo criminal e será punido se reconhecida sua culpabilidade. Segundo o ministro, não se pode admitir que a Lei Maria da Penha, criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja interpretada de forma benéfica ao agressor ou que se torne letra morta. O voto da relatora foi acompanhado pelos ministros Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti, vencidos os ministros Nilson Naves e Maria Thereza de Assis Moura.”

A matéria não é simples, como percebemos em outra decisão do próprio STJ, vinculada no Informativo de Jurisprudência 424:

“REPETITIVO. LEI MARIA DA PENHA.” A Seção, ao julgar recurso sob o regime do art. 543-C do CPC c/c a Res. N. 8/2008-STJ, firmou, por maioria, o entendimento de que, para propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves (Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha), pois se cuida de uma ação pública condicionada. Observou-se, que entender a ação como incondicionada resultaria subtrair da mulher ofendida o direito e o anseio de livremente se relacionar com quem quer que seja escolhido como parceiro, o que significaria negar-lhe o direito à liberdade de se relacionar, direito de que é titular, para tratá-la como se fosse submetida à vontade dos agentes do Estado. Argumentou-se, citando a doutrina, que não há como prosseguir uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com a definição de alimentos, partilha de bens, guarda e visitas. Assim, a possibilidade de trancamento de inquérito policial em muito facilitaria a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de Família, mais relevantes do que a imposição de pena criminal ao agressor. Para os votos vencidos, a Lei n. 11.340/2006 afastou expressamente, no art. 41, a incidência da Lei n. 9.099/1995 nos casos de crimes de violência doméstica e familiares praticados contra a mulher. Com respaldo no art. 100 do CP, entendiam ser de ação pública incondicionada o referido crime sujeito à Lei Maria da Penha. Entendiam, também, que a citada lei pretendeu punir com maior rigor a violência doméstica, criando uma qualificadora ao crime de lesão corporal (art. 129, § 9º, do CP). Nesse contexto, defendiam não se poder exigir representação como condição da ação penal e deixar ao encargo da vítima a deflagração da persecução penal. Resp 1.097.042-DF, Rel. originário Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 24/2/2010.”

Em âmbito doutrinário, temos a posição do excelente Procurador de Justiça da Bahia, Rômulo de Andrade Moreira. Senão vejamos:

“Entendemos tratar-se de artigo inconstitucional. Valem as mesmas observações expendidas quando da análise do art. 17. São igualmente feridos princípios constitucionais (igualdade e proporcionalidade). Assim, para nós, se a infração penal praticada for um crime de menor potencial ofensivo (o art. 41 não se refere às contravenções penais) devem ser aplicadas todas as medidas despenalizadoras previstas na Lei nº. 9.099/95 (composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do processo), além da medida “descarcerizadora” do art. 69 (Termo Circunstanciado e não lavratura do auto de prisão em flagrante, caso o autor do fato comprometa-se a comparecer ao Juizado Especial Criminal).

Seguindo o mesmo raciocínio, em relação às lesões corporais leves e culposas, a ação penal continua a ser pública condicionada à representação, aplicando-se o art. 88 da Lei nº. 9.099/95.

Cremos que devemos interpretar tal dispositivo à luz da Constituição Federal e não o contrário. Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.” Devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Segundo Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.

A prevalecer a tese contrária (pela constitucionalidade do artigo), uma injúria praticada contra a mulher naquelas circunstâncias não é infração penal de menor potencial ofensivo (interpretando-se o art. 41 de forma literal); já uma lesão corporal leve, cuja pena é o dobro da injúria, praticada contra um idoso ou uma criança (que também mereceram tratamento diferenciado do nosso legislador – Lei nº. 10.741/03 e Lei nº. 8.069/90) é um crime de menor potencial ofensivo. No primeiro caso, o autor da injúria será preso e autuado em flagrante, responderá a inquérito policial, haverá queixa-crime, etc., etc. Já o covarde agressor não será autuado em flagrante, será lavrado um simples Termo Circunstanciado, terá a oportunidade da composição civil dos danos, da transação penal e da suspensão condicional do processo, etc., etc. (arts. 69, 74, 76 e 89 da Lei nº. 9.099/95). Outro exemplo: em uma lesão corporal leve praticada contra uma mulher a ação penal independe de representação (é pública incondicionada), mas uma lesão corporal leve cometida contra um infante ou um homem de 90 anos depende de representação. Onde nós estamos!”

Outro argumento pesquisado na doutrina afirma que a lei infraconstitucional de Violência Doméstica não poderia limitar a competência constitucional do Juizado Especial Criminal (art. 98 I CF). Não poderia uma lei federal proibir algo que a Constituição Federal impõe. A “briga” é boa, com parte da doutrina rebatendo esse argumento afirmando que uma lei infraconstitucional pode sim limitar a incidência constitucional. Basta analisarmos a própria competência constitucional do Juizado Especial Criminal. Quem afirma, quem dispõe acerca do conceito de crime de menor potencial ofensivo? A Constituição Federal? Não. A lei infraconstitucional, mais recentemente a lei 11.313/06 que alterou os artigos 60-61-62 da lei 9.099/95. Ou seja, lei infraconstitucional limitando.

Enfim, o guardião da Constituição, nosso Supremo Tribunal Federal decidiu no último dia 09 de fevereiro de 2012 a questão. Adiante.

7. Resultado da Decisão da ADI 4424

Nos casos de lesão corporal leve e culposa contra a mulher em âmbito doméstico a ação penal é pública incondicionada, ou seja, independe da vontade da vítima. Nas demais situações, continua a regra geral da necessidade da representação, juridicamente entendida como uma condição de procedibilidade (art. 39 CPP).

Por ser o real motivo deste artigo, transcrevemos grande parte da decisão, sem deixar registrado a sensibilidade dos ilustres ministros quando do julgamento da causa que não esqueceram do aspecto social da medida. Único voto vencido foi do Ministro Cezar Peluso.

Nesta decisão, os ministros não se afastaram da realidade crua da população brasileira.

Vejamos:

“No mérito, evidenciou-se que os dados estatísticos no tocante à violência doméstica seriam alarmantes, visto que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher acabaria por não representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada. A respeito, o Min. Ricardo Lewandowski advertiu que o fato ocorreria, estatisticamente, por vício de vontade da parte dela. Apontou-se que o agente, por sua vez, passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva. Afirmou-se que, sob o ponto de vista feminino, a ameaça e as agressões físicas surgiriam, na maioria dos casos, em ambiente doméstico. Seriam eventos decorrentes de dinâmicas privadas, o que aprofundaria o problema, já que acirraria a situação de invisibilidade social. Registrou-se a necessidade de intervenção estatal acerca do problema, baseada na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), na igualdade (CF, art. 5º, I) e na vedação a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI). Reputou-se que a legislação ordinária protetiva estaria em sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e com a Convenção de Belém do Pará. Sob o ângulo constitucional, ressaltou-se o dever do Estado de assegurar a assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não seria razoável ou proporcional, assim, deixar a atuação estatal a critério da vítima. A proteção à mulher esvaziar-se-ia, portanto, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia. Dessumiu-se que deixar a mulher — autora da representação — decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. Implicaria relevar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper como estado de submissão.”

Enfático, como fomos neste artigo, também o Supremo ao afirmar que tal postura de incondicionada nos casos de lesões corporais leves e culposas, se aplicam tão somente à mulher em âmbito doméstico. Abaixo mais um importante trecho:

“Entendeu-se não ser aplicável aos crimes glosados pela lei discutida o que disposto na Lei 9.099/95, de maneira que, em se tratando de lesões corporais, mesmo que de natureza leve ou culposa, praticadas contra a mulher em âmbito doméstico, a ação penal cabível seria pública incondicionada. Acentuou-se, entretanto, permanecer a necessidade de representação para crimes dispostos em leis diversas da 9.099/95, como o de ameaça e os cometidos contra a dignidade sexual. Consignou-se que o Tribunal, ao julgar o HC 106212/MS (DJe de 13.6.2011), declarara, em processo subjetivo, a constitucionalidade do art. 41 da Lei 11.340/2006, no que afastaria a aplicação da Lei dos Juizados Especiais relativamente aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista.”

Fica claro com a decisão ora analisada a importância do tema e a tentativa real de mudança deste triste contexto. Destaco ainda, ao assistir a íntegra do julgamento, palavras do Ministro Luiz Fux, de que “tais situações de violência doméstica envergonhariam, nós, homens de bem.”

Enfim, o Supremo Tribunal Federal deu um exemplo de cidadania.

8. Conclusão

a) A lei 11.340/06, Maria da Penha, tem como primordial objetivo proteger a mulher, vítima de violência doméstica;

b) Percebendo obstáculos do dia-a-dia forense, a lei criou mecanismos para facilitar a persecução criminal de eventuais agressores;

c) A principal medida foi impedir a aplicabilidade da lei 9.099/95 (art. 41 lei 11.340/06), cujas medidas despenalizadoras beneficiavam em demasia o agressor;

d) Muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, inclusive com posições antagônicas dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça;

e) Com o objetivo de se chegar a um ultimato constitucional, o atual Procurador Geral da República ajuíza Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedidos de reconhecimento de constitucionalidade desses aspectos discutíveis da Lei Maria da Penha (ADI 4424);

f) Foram promulgados constitucionais os artigos 1º, 33, 41 da lei Maria da Penha e decidido que a ação penal será incondicionada nos casos de violência doméstica contra a mulher.


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