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A complexa análise da agressão injusta na legítima defesa

Guilherme de Souza Nucci

Guilherme de Souza Nucci

10/02/2016

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Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (art. 25, CP). Há cinco requisitos para que se possa reconhecer, com validade, a excludente de ilicitude denominada legítima defesa. Três deles dizem respeito à agressão: a) injustiça; b) atualidade ou iminência; c) contra direito próprio ou de terceiro. Dois outros se relacionam à repulsa: a) utilização de meios necessários; b) moderação. Em ponto polêmico, encontra-se a existência do elemento subjetivo, consistente na vontade de se defender.

Nossa avaliação cinge-se, apenas, à injustiça da agressão. Deve-se alinhavar, em primeiro plano, não se tratar de um conceito vago, aberto ou, até mesmo, filosófico. Cuida-se de sinônimo de ilicitude. Portanto, a agressão injusta nada mais é do que a agressão ilícita, vale dizer, contrária ao ordenamento jurídico.  Ilustrando, o oficial de justiça que, cumprindo um mandado judicial, pretende promover a reintegração de posse de certa área, acaba por efetivar umaagressão contra os ocupantes, que podem ser movidos dali, inclusive, se necessário, com violência. Porém, trata-se de agressão lícita, logo, justa, para fins de legítima defesa. Não podem os ocupantes reagir, licitamente, contra o oficial. Qualquer repulsa contra o funcionário público, que cumpre seu dever, constitui infração penal.

Porém, há de se seguir adiante, analisando o delicado problema da provocação. Já tivemos a oportunidade de escrever sobre o assunto (em nossa obra Código Penal comentado, nota 138, letra f, ao art. 25), afirmando ser inadmissível invocar legítima defesa contra mera provocação (insultos, ofensas ou desafios). Não se quer dizer que o insulto ganha o contexto de crime contra honra, muito mais sério e amplo. Quer-se evidenciar o banal insulto (discussões no trânsito, em jogos esportivos, festas, ambientes de competição etc.). Vivemos era civilizada, distante do tempo da barbárie e dos famigerados duelos, de modo que se pode afirmar ser inconcebível que alguém, a pretexto de defender sua honra (a verdade, sua pura vaidade), dê azo à reação (qualquer que seja ela) a um mero xingamento. Note-se que, ao mencionarmos o termo reação, naturalmente, não estamos nos referindo ao conhecido bate-boca (insultos que vão, retornam). Referimo-nos à resposta que alguns buscam, consubstanciada em agressões violentas, como representam as físicas de toda ordem. Uma surra, golpes de faca ou mesmo tiros para redargüir a um tolo insulto são meios inadequados e exagerados, logo, injustos. Fosse isso possível e teríamos, em verdade, maior utilidade se retornássemos à época do duelo. Ao menos, tal forma de reação era equilibrada, leia-se, cada qual com uma arma de igual calibre, em hora e local previamente designados, com testemunhas. O surdo duelo dos tempos atuais esconde-se atrás da veste da legítima defesa da honra. O insulto é batido à bala, em situação bem mais atroz e covarde do que ocorreria com o duelo, igualmente, por óbvio, inconcebível.

Eis o motivo pelo qual não se pode tolerar a legítima defesa contra mera provocação. Há vários outros meios de se reagir a essa atitude hostil. Note-se mais: se alguém provocar outrem e este, sacando de um revólver, houver por bemtirar satisfação, na realidade, tornou-se agressor, autorizando aquele que primeiramente provocou a atuar em legítima defesa. Essa é a realidade jurídica. Não está em situação de legítima defesa quem aponta um revólver para justificar sua contrariedade a uma provocação. Por óbvio, já se excedeu – e muito – quanto ao meio necessário para rebater a provocação e quanto à moderação para tanto.

Outro importante aspecto diz respeito à falsa agressão injusta ou à simulação da legítima defesa. O sujeito, atuando com dolo, no mínimo eventual, dispõe-se a reagir, a tiros, se preciso, contra qualquer provocação sofrida. À primeira delas, retira a arma e cobra resposta do provocador. Se esta for não for convincente ou o provocador resolver repelir a ameaça armada, os tiros serão desferidos, sob o pretexto de estar o atirador no contexto da legítima defesa. Simulou-se a situação e os atores representaram seu papel. O provocador transformou-se em algoz e morreu, baleado. O verdadeiro agressor assume o papel de vítima e sai vitorioso, afinal, “não leva desaforo para casa”, mesmo à custa da vida humana.

Ilustremos: “A”, possuindo porte de arma, sai de sua casa, carregando um revólver, e segue a um estádio de futebol para assistir à partida do seu time preferido. Qual a razão para ir a um local festivo carregando um revólver? A mera autorização que a Polícia Federal lhe concedeu? Inconsistente. Ademais, ad argumentandum, se está ameaçado de morte por alguém, o último lugar em que deveria estar é num estádio de futebol, lotado. Assim, ao menos, recomenda a prudência. Analisando-se o elemento subjetivo, denota-se, por evidente, a assunção do risco de carregar uma arma em local de aglomeração pública e na possibilidade de ter que utilizá-la para repelir provocações. Cuidando-se de um revólver, é natural a previsibilidade de que tiros, uma vez disparados, podem ser letais, logo, matar alguém. No estádio, “B” profere um gracejo contra “A”, referente ao seu time ou à namorada que o acompanha. Em lugar de, simplesmente, ignorar ou mudar de local, porém, sabendo-se armado (logo, consciente da sua força instrumental), resolve tirar satisfação. Registremos aspecto interessante: caso não estivesse armado, partiria o provocado para o confronto? Certo de ser fisicamente mais fraco teria a ousadia de tirar satisfação? Cremos que não, o que, novamente, simboliza o dolo eventual em relação às conseqüências de ter consigo arma de fogo. Em pleno estádio, jamais poderia o provocador imaginar que sua vida corria risco diante do gracejo proferido, até mesmo pelo fato de que, anteriormente, vários outros já emitiu e sempre resolveu, no máximo, em bate-boca. Por isso, o provocador não cede e até ameaça, fisicamente, “A”. Este, por sua vez, já preparado, saca o revólver e exige, diante do simbolismo que isto representa, a retratação do provocador. “B”, diante de amigos e terceiros, sente-se humilhado e resolve reagir para tirar a arma do agressor (“B” encontra-se em legítima defesa, pois “A” não deveria ter sacado sua arma para reagir a uma provocação tola). Em face da atitude de “B”, “A”, vendo-se na iminência de ser agredido fisicamente por pessoa mais forte, dispara, matando seu oponente. Afinal, quem está em legítima defesa? Quem reagiu contra agressão injusta?

Esse contexto é, sem dúvida, complexo e delicado. No entanto, não se concebe haver qualquer tipo de equilíbrio em quem, armado, não possui controle emocional para ouvir mera provocação. Inserir-se em desafio, carregando arma que sabe, perfeitamente, poder usar no momento em que desejar, é cenário de agressão injusta, ainda que camuflada, de modo que não há legítima defesa. Sustentar o contrário é o mesmo que autorizar a legítima defesa da honra (leia-se, nesse cenário, vaidade, soberba, presunção) à custa da vida humana, o que nos remete de volta ao triste passado. Quem saca um revólver por motivo banal, na medida em que resolveu tirar satisfação por qualquer besteira, está agredindo injustamente. Autoriza, por isso, a pessoa ameaçada a reagir, inclusive buscando retirar-lhe a arma e agredi-lo, desde que necessário e com moderação. Se, porventura, a reação for excessiva com relação a quem sacou o revólver, ingressamos no contexto da denominada legítima defesa sucessiva, ou seja, a legítima defesa contra o excesso de legítima defesa.

No geral, entretanto, se desejamos viver em sociedade tranqüila e equilibrada, cujos valores da vida humana devem ser os primeiros e maiores, devemos nos conscientizar que autodefesa é mecanismo de exceção – e não a regra. O Estado se incumbe da proteção coletiva e a arma de fogo, em especial, nas mãos de particulares, significa a última opção (ultima ratio) em matéria de legítima defesa. Lembremos, por fim, que até mesmo um duelo, nos moldes históricos, seria mais justo do que a injusta defesa contra pretensas agressões à honra-vaidade, quando a conseqüência é a perda do bem jurídico de maior relevo: a vida humana.


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