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Aborto nos EUA o fim de Roe v. Wade

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Aborto nos EUA: o fim de Roe v. Wade?

ABORTO

ABORTO E GÊNERO NA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS

ROE V. WADE

João Carlos Souto

João Carlos Souto

08/01/2025

A cidade de Chicago é famosa por seus arranha-céus, por ter dado guarida a Al Capone e, principalmente, pela beleza dos seus lagos, em um Estado, Illinois, pontilhado por eles.

Em 1969, quando Richard Daley ainda era prefeito de Chicago, eleito para o cargo em 1955 e reeleito sucessivamente até o seu falecimento em 1976, a cidade testemunhou – com relação aos direitos das mulheres e ao aborto, mais especificamente – aquilo que a língua inglesa define com a precisão que a caracteriza: a turning point, ou seja, uma alteração decisiva, positiva, para melhor, uma curva, um salto para cima, um momento de mudança ante a situação até então vigente. Entretanto, que mudança seria essa? Acreditamos que é possível afirmar tratar-se de uma mudança de postura, de pensamento, de organização. Um engajamento maior que restou conseguido em uma conferência dedicada ao aborto, no ano de 1969. Observe que a decisão da Suprema Corte data de 22 de janeiro de 1973, três anos e onze meses depois do grande Encontro de Chicago.

Evidentemente que a Revolução Francesa não se explica somente pela queda da Bastilha, ou a invasão alemã à Polônia em 1º de setembro de 1939 não fornece todos os detalhes e não se constitui na única razão da deflagração da Segunda Guerra Mundial. Guardadas as devidas proporções, a “Primeira Conferência Nacional sobre Leis do Aborto”, organizada pela Illinois Citizens for the Medical Control of Abortions, é o resultado de um somatório de queixas individuais ou de pequenos grupos contra a discriminação de gênero, no trabalho, com relação ao salário, contra a inexistência de licença remunerada à gestante, as quais foram se avolumando com o decorrer dos anos.

Vale dizer, a política antiaborto praticada nos Estados Unidos, nefasta sob diversos aspectos, e que ganhou impulso, como visto nos parágrafos pretéritos, a partir das

primeiras décadas do século XX, despertou nas mulheres a necessidade de se organizarem, o que restou implementado de forma paulatina, até que, mais tarde, desaguou na criação (entre outras) da “Organização Nacional pelas Mulheres”, da “Organização Nacional em Defesa do Bem-Estar” e, mais à frente, da Conferência de Chicago, que se pode dizer que tem dois eixos de funda relevância: (i) o discurso de Betty Friedan e (ii) a criação da “Associação Nacional para a Revogação das Leis do Aborto”. A partir daí, as mulheres passam a atuar de forma mais concatenada, de modo que parece adequado afirmar que Chicago significou a junção de vários rios; rios femininos, que singravam o país já há alguns anos e que desembocaram no Illinois dos grandes lagos, mais precisamente em fevereiro de 1969.

A postura da Associação Médica Americana – retratada no voto de Harry Blackmun e nos textos de autores de proa – era mais do que comunhão com essas categorias, havia um interesse comum, inclusive por ela emulado, especialmente a reserva de mercado e a aliança com a parte conservadora e financeiramente bem nutrida da sociedade estadunidense. Conforme se viu neste capítulo, o aborto ilegal era “vendido” a peso de ouro. A ilegalidade do aborto, defendida por médicos e por suas associações, os favorecia, porque as famílias de posses sempre estiveram dispostas a retribuir financeiramente à altura do “problema”, para terem acesso a um aborto seguro, em hospitais ou clínicas dotadas de toda a estrutura e segurança possíveis.

Ao se aliar com a religião, ao dar as mãos ao conservadorismo, ao pressionar por uma legislação punitiva ao aborto, ao obter lucros com abortos clandestinos e “seguros”, ao permitir e talvez até estimular o comportamento do “duplo padrão” a que se referiu o juiz Tom Clark, o histórico da classe médica definitivamente não servia, ao tempo da decisão de Roe v. Wade, como parâmetro de argumento favorável à manutenção das leis proibitivas.

Embora Blackmun não tenha citado Felix Frankfurter, a construção do seu voto, a citação a Holmes e o resultado do caso Roe v. Wade parecem convergir, no sentido da “experiência em oposição à especulação”. Há dois outros aspectos no voto de Blackmun que conversam com a doutrina de Oliver Holmes: o realismo jurídico e o recuo histórico na tentativa, bem-sucedida, de demonstrar que o aborto, com as limitações temporais devidas, encontravam amparo na constituição e na common law, de modo que sua proibição pura e simples, sem exceções, não se apresentava razoável e não possuía raízes na história legal da Inglaterra ou da América pré e pós-Declaração de Independência.

Sintética, precisa e razoável, a doutrina de Aharon Barak parece se encaixar perfeitamente na construção de Blackmun em Roe, visto que o juiz estadunidense procurou e conseguiu demonstrar a leniência da sociedade – do século XIII, na Inglaterra, e de até fins do século XIX, nos Estados Unidos – com o aborto praticado nos primeiros meses de gravidez, dentro de um – para usar as palavras de Barak – “contexto social e histórico” que influenciou o direito de então, no sentido de como as pessoas lidavam com o aborto e toleravam-no, dentro de certos parâmetros.

Em seguida, ainda com fundamento histórico e atento ao contexto social, Blackmun demonstrou que, em dado momento, a preocupação da sociedade ao aprovar leis que impediam o aborto dizia respeito à taxa de mortalidade entre grávidas na interrupção da gravidez. Em outras palavras, as leis proibiam o aborto para proteger a mulher grávida. Inexistia qualquer preocupação com o feto, que, de regra, só passava a ser sujeito de direito quando emitia sinais de vida (quickening), geralmente em torno dos três meses de gestação.

A decisão em Roe v. Wade é um misto de tudo isso e desagua na evolução histórica da common law, do direito estadual codificado, na autonomia da mulher e no direito à privacidade, que decorre das penumbras que emanam do Bill of Rights. Blackmun certamente1 não leu Barak, mas capturou tudo isso muito bem.

A linha histórica traçada sobre o aborto, por Harry Blackmun, em Roe v. Wade, pode até ser equivocada como afirmou Samuel Alito, em Dobbs, mas ela, a todas as luzes, é honesta ao reconstruir o caminho e demonstrar como o aborto era tratado na Inglaterra do século XIII, o seu desenvolvimento na common law, a “migração” para a América colonial e, a partir daí, a codificação que surgiria quando o século XIX dava seus últimos suspiros.

O texto do juiz Blackmun tem início, meio e fim. É coerente, não flerta com exageros, não alberga contradições e as conclusões são harmônicas com o que foi narrado. Essa é uma das razões de o voto ter conquistado maioria na Suprema Corte de 1973 em um assunto tão polêmico quanto o aborto. Essa é uma das razões de ele ter se mantido de pé durante quase meio século.

Em Roe, a Suprema Corte colocou mais um tijolo na construção da cidadania plena para as mulheres, ajudando a enterrar um período sombrio, em que elas se encontravam subjugadas, por pais ou maridos, relegadas pela sociedade, por leis opressivas e – como ficou patente na Comstock Era – interpretações pouco inteligentes. O Tribunal Supremo dos Estados Unidos ajudou a sepultar os aspectos mais sombrios da Nova Iorque de Sanger e da New Haven de Griswold.

A superação de Roe v. Wade por Dobbs v. Jackson diminui o brilho da primeira, isso não se pode negar. Para além de diminuir o brilho, a alteração afeta direta e concretamente as mulheres, porque as envolve em uma nuvem de incerteza, como se estivessem no período pré-1973. A sensação de pular em um precipício sem saber ao certo se a aterrisagem será segura. No entanto, ainda assim, não desfaz a história de quase 50 anos, não apaga a relevância da decisão relatada pelo juiz Blackmun, não anula o benefício proporcionado a milhões de mulheres estadunidenses que puderam, durante “meio século”, ter controle sobre seu próprio corpo e ser (com algumas limitações de todo razoáveis) soberanas na decisão de manter ou não a gravidez.

Mais importante ainda, Roe continua servindo como inspiração à luta que se avizinha perene para manter o direito ao aborto nos estados-membros em que a legislação permite; para reivindicar que legisladores estaduais repilam tentativa de implementar legislação restritiva ao direito um dia assegurado em Roe v. Wade; e, finalmente, reverter Dobbs, na Suprema Corte, tarefa dificílima que depende de alteração legislativa ou da composição da Corte, ou, ainda, implementação de uma lei federal inspirada em Roe, esta, sim, uma medida palpável, que a Câmara dos Deputados conseguiu em 15 de julho de 2022 (menos de um mês após a decisão Dobbs v. Jackson), mas que não obteve êxito no Senado, em razão da maioria numericamente frágil dos democratas, derrotados pelo bloqueio republicano, conhecido como filibuster, polêmico recurso do processo legislativo na Câmara Alta dos Estados Unidos.

Roe v. Wade foi seriamente alvejada em uma tarde de 24 de junho de 2022. Seis tiros certeiros, deflagrados pela ala conservadora da Corte que 49 anos antes a pariu. Ela foi partícipe da revolução cultural e social que entendeu constitucional o direito ao aborto. Ela foi partícipe da involução que o alvejou e sufocou. Ela, não o Legislativo ou o Executivo. Os tiros deixaram-na quase que mortalmente ferida. Roe v. Wade respira com muita dificuldade e com a ajuda de aparelhos, mas continua a inspirar estados e pessoas na grande nação ao norte do Rio Grande.

É a decisão que coroa um período particularmente ativo da Suprema Corte dos Estados Unidos, ou, no dizer de Jack Balkin, “a decisão canônica de uma era”, tal qual, a seu tempo, Brown v. Board of Education.

Roe v. Wade, conforme fartamente demonstrado, buscou fundamento histórico, flertou com o originalismo, ouviu a voz das ruas e usou o princípio constitucional (direito à privacidade) como âncora. É o exemplo perfeito e acabado do sincretismo constitucional estadunidense.

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1 318 São de gerações distintas e o livro de Barak em que essa frase se encontra reproduzida é de 2005.

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