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O processo eleitoral nos Estados Unidos e a República Velha
João Carlos Souto
28/10/2024
O desenho federativo pactuado na elaboração da Constituição dos Estados Unidos, fruto de uma “Convenção Constituinte” não oficial, porque, como se sabe, não houve uma convocação específica para esse fim, resultou em uma federação de contornos peculiares, com ampla autonomia aos estados membros.
Dentro dessa ampla autonomia, que na doutrina restou explicada nos capítulos 33 e 59 de “O Federalista”, [1] de autoria de Alexander Hamilton, e no Capítulo 44, escrito por James Madison, compete aos estados membros definirem o formato de suas eleições, inclusive regras quanto ao eleitorado, contagem de votos, fiscalização e proclamação dos resultados. É o que prescreve, em termos, o artigo 1º, Seção 4, da Constituição dos Estados Unidos:
“Os tempos, locais e modos de realização de eleições para senadores e representantes serão prescritos em cada estado pela respectiva legislatura; mas o Congresso pode, a qualquer momento, por lei, fazer ou alterar tais regulamentos, exceto quanto aos locais de escolha dos senadores.”
A parte final do artigo, especificamente aquela que diz que “o Congresso pode, a qualquer momento, por lei, fazer ou alterar tais regulamentos”, foi motivo de controvérsias no alvorecer da República, acerca da amplitude de o Legislativo federal “fazer ou alterar tais regulamentos”.
O fato é que, nesse aspecto, até aqui tem prevalecido o bom senso. E não se tem registrado nenhum grande conflito entre o Congresso e os estados no que diz respeito ao manejo da eleição por estes e a supervisão por aquele. Inclusive o Capitólio legislou pelo menos em duas ocasiões [2], sem que tivesse ocorrido problemas com os estados.
Citizens United v. Federal Election Commission [3]
Nos Estados Unidos, além das peculiaridades referidas nos parágrafos anteriores, a Suprema Corte decidiu (Citizens United v. Federal Election Commission), em 2010, que a cláusula de liberdade de expressão da Primeira Emenda proíbe o governo de restringir gastos privados para campanhas políticas. Essa decisão, tomada por apertada maioria (5 a 4) permitiu e continua permitindo que corporações, organizações sem fins lucrativos, sindicatos e outras associações realizem gastos sem limites a favor desse ou daquele candidato.
A decisão é duramente criticada há 14 anos — na academia, por órgãos independentes, por políticos, pela imprensa e mesmo no Judiciário — por, em síntese, desequilibrar o processo político a favor daqueles que contam com a generosidade dos grandes doadores, geralmente os que têm interesse em determinada política pública.
Justiça Eleitoral brasileira pode servir de modelo
Citizens United v. Federal Election Commission parece confirmar que faz muita falta a inexistência de uma legislação federal nos EUA para proteger a integridade do processo eleitoral. Mais importante ainda: o país carece de um sistema de justiça eleitoral, como a existente no Brasil, que possa ser capaz de uniformizar e rapidamente responder a situações absurdas, como por exemplo, aquelas que se escondem sob o manto de uma suposta ilimitada liberdade de expressão, papel que o Tribunal Superior Eleitoral, órgão de cúpula dessa Justiça especializada, tem desempenhado com altivez e competência.
Uma Justiça Eleitoral nos Estados Unidos [4] muito provavelmente poderia contribuir para sanear o sistema, na medida em que esse ramo do direito melhor se desenvolve em um ambiente em que ele é objeto específico de estudo, de debate, de reflexão e decisão judicial, tal como ocorre no Brasil com a estrutura prevista na Constituição.
É irrazoável um sistema em que a eleição para presidente da República seja conduzida por autoridades estaduais, certificada por uma autoridade estadual membro de um partido (geralmente o Secretário de Estado), e essa certificação é posteriormente encaminhada ao Congresso Nacional para que o vice-presidente da República proceda a certificação final. Acresça-se, é irrazoável e anacrônico.
Sorteio diário de US$ 1 milhão para os eleitores
Eis que a pouco mais de duas semanas da eleição o bilionário Elon Musk resolveu abrir os cofres, não só para doação para a campanha do candidato Trump, o que ele já vem fazendo há meses, [5] mas agora para “incentivar” eleitores a assinarem uma petição em favor da “liberdade de expressão”, mediante uma recompensa imediata de 100 dólares. Formou-se fila quilométrica na Pensilvânia — antes de um comício pro-Trump — de eleitores querendo assinar a tal petição numa demonstração inequívoca do civismo dos US$ 100.
Já seria cômico, não fosse trágico, o ato de incentivo mencionado no parágrafo anterior. Mas não se limitou a esse isso o incentivo bancado pelo bilionário do setor automobilístico e aeroespacial. Musk foi além, conforme noticiam os jornais que circulam nos Estados Unidos em 20 de outubro de 2024.
Ele prometeu sortear US$ 1 milhão, diariamente, entre os eleitores dos estados que na América se denomina de swing states. Ou seja, unidades federativas que são pêndulos, porque costumam votar a favor de um ou outro partido, diferentemente daqueles Estados que são sólidos democratas ou republicanos. O eleitor que assina a tal petição para o “Liberdade de Expressão” recebe os tais 100 dólares e ainda concorre ao prêmio diário de US$ 1 milhão. [6]
Some-se a tudo isso o fato de Elon Musk estar ativamente participando da campanha, inclusive no segundo comício em Butler, na Pensilvânia, onde discursou, e de também Trump ter antecipado que, se eleito, criará o cargo de “comissário de eficiência do governo federal” a ser ocupado por Musk.
O cenário é desolador sob o ponto de vista do equilíbrio e das regras eleitorais em um país que, reitere-se, tem servido de modelo desde que promulgou sua Constituição em 17 de setembro de 1787.
Ainda que o Código dos Estados Unidos (United States Code) estabeleça, no Título 52, § 10307, que “qualquer pessoa que, consciente ou intencionalmente, fornecer informações falsas sobre seu nome, endereço ou período de residência no distrito eleitoral…” “ou pagar ou oferecer pagar ou aceitar pagamento para registro para votar ou para votar será multada em não mais de $ 10.000 ou presa em não mais de cinco anos, ou ambos…” [7] é possível que o sistema judicial estadunidense não consiga, diferentemente do brasileiro, responder em tempo hábil a evitar a interferência indevida na campanha presidencial, até porque o primeiro sorteio ocorreu simultaneamente ao anúncio de sua implementação.
A ilegalidade da ação de Musk combina com a dificuldade de se estancar os danos produzidos até aqui, que podem ser decisivos ao resultado final da eleição. Uma vez eleito, Donald Trump teria o poder de perdoar o seu importante aliado de campanha.
Elon Musk provavelmente sabe que seu ato é ilegal, mas igualmente sabe que o Judiciário dificilmente conseguiria estancar com rapidez os danos (para ele frutos) produzidos até aqui, que podem ser decisivos ao resultado final da eleição. Uma vez eleito, Donald Trump teria o poder de perdoar o seu importante aliado de campanha.
Tudo isso faz a grande nação do Norte ficar parecida com um Brasil de antes de 1930, conhecido como “República Velha”, em que o poder do dinheiro, do prestígio, da pressão econômica sobre eleitores vulneráveis, produziam resultados eleitorais distorcidos e que desembocaram em crises políticas como a de 1930, a de 1937 e as que se seguiram mesmo depois das reformas políticas implementadas naquele período e depois. Evidentemente que o poder econômico ainda influencia eleições no Brasil, mas não da forma acintosa e aparentemente desregulada como tudo indica estar a ocorrer nas eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2024. Ou melhor, desde 2010.
Uma democracia que tem sido modelo há mais de dois séculos não pode ficar a mercê de um sistema que empresta mais relevância a políticos com mandato do que ao Judiciário, que por formação e princípio e imparcial e equidistante das querelas partidárias. O argumento de que o sistema tem funcionado por mais de 200 anos não é suficiente para impedir a discussão sobre seu aperfeiçoamento, respeitando-se, tanto quanto possível, as peculiaridades do modelo federativo ali implantado.
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VEJA TAMBÉM:
- Hamilton e a arquitetura do Judiciário em O Federalista
- Amazon, Microsoft, Trump e 10 bilhões de dólares
- Gabriela, Coronavírus, Decreto de Calamidade e Presidência do Congresso Nacional – Um caso de inconstitucionalidade
Outras postagens do autor (Clique aqui!).
NOTAS
[1]. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist Papers. Mentor Book. New York: Nal Penguin, 1961.
[2]. Em 1842 o Congresso aprovou o sistema distrital para as eleições da Câmara. Lei de 25 de junho de 1842. Posteriormente uma outra lei, de 08 de agosto de 1911, estabeleceu, entre outras disposições, que os distritos deveriam ser compostos por territórios compactos e contíguo.
[3]. Citizens United v. Federal Election Commission, 558 U.S. 310 (2010).
[4]. Como não há tribunais superiores nos Estados Unidos, a opção seria criar uma ou algumas “Corte de Apelações Eleitorais”, à semelhança das U.S. Court of Appeals, atualmente em número de 12, divididas por regiões (Circuits).
[5]. Estima-se que ele já tenha doado o equivalente a 75 milhões de dólares. Elon Musk gave $75m to his pro-Trump group in three months. The Guardian (Hugo Lowell), 16.10.2024. https://www.theguardian.com/technology/2024/oct/16/elon-musk-donald-trump-donation-america-pac
[6]. Elon Musk’s election promise of $1 million daily giveaway sparks call for probe. Reuters, 20.10.2024. https://www.reuters.com/world/us/elon-musk-promises-award-1-mln-each-day-signer-his-petition-2024-10-20/ A matéria da Reuters registrou que o governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, disse no programa “Meet the Press” da NBC, que o plano de Musk de dar dinheiro aos eleitores registrados na Pensilvânia é “profundamente preocupante” e “é algo que as autoridades poderiam analisar”. Observe: “autoridades poderiam analisar”.
[7]. 52 U.S.C. 10307 C. O Código dos Estados Unidos é um ato normativo amplo que congrega diversos temas, alcançando Direito Civil, Penal, Eleitoral, Aeronáutico, Marítimo etc., diferentemente do Brasil que esses assuntos são tratados em códigos esparsos, método que acolhe maior logicidade.