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DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Controle de convencionalidade: O que é? Quando o aplicar?
Valerio Mazzuoli
07/01/2025
De origem francesa, a expressão “controle de convencionalidade” data do início da década de 1970, quando o Conselho Constitucional francês – na Decisão n.º 74-54 DC, de 15 de janeiro de 1975 – entendeu não ser competente para o exame da conformidade de uma lei (tratava-se da recém-aprovada lei de interrupção voluntária da gestação) com um tratado internacional de direitos humanos em vigor na França (a Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950).1 Naquela ocasião, ao declinar da competência de controle, o Conselho Constitucional consignou não poder controlar a convencionalidade preventiva de leis internas, senão apenas, nos termos do art. 61 da Constituição francesa, a sua constitucionalidade.1 Independentemente do resultado, certo é que nascia, naquele momento, nova terminologia (neologismo) no mundo jurídico, a indicar o exercício de compatibilidade das leis com os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no Estado. Não obstante esse fato constatado, certo, porém, é que jamais se desenvolveu na Europa qualquer técnica ou mecânica jurídica para esse novo tipo de controle, o que só veio a ocorrer (a partir de 2006) quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos percebeu o enorme tesouro que tal medida em si guardava, pois capaz de alterar por completo (e para melhor) os sistemas de direito interno de reconhecimento e efetivação dos tratados internacionais de direitos humanos em vigor nos Estados.
Falar em controle de convencionalidade significa referir, sobretudo, à compatibilidade vertical material das normas do direito interno com as previstas em convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Estado. Significa, também, falar especialmente em técnica judicial (tanto internacional como interna) de compatibilização vertical das leis com tais preceitos internacionais. Que os tribunais internacionais de direitos humanos exercem o controle de convencionalidade de forma própria não há qualquer dúvida, pois tal é exatamente o seu papel. Contudo, por decisão desses próprios tribunais internacionais (v.g., da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em nosso entorno geográfico) devem também – em primeiro plano e ex officio – os juízes e tribunais internos controlar essa mesma convencionalidade, fiscalizando a compatibilidade das normas domésticas (todas elas) com os mandamentos (mais benéficos) dos tratados de direitos humanos ratificados e em vigor no Estado.2 Não somente, porém, a análise vertical material das normas dissonantes será de rigor no controle de convencionalidade, não obstante tratar-se da que mais diretamente atinge o ser humano sujeito de direitos; também a compatibilização procedimental entre as previsões das leis internas relativamente às dos tratados de direitos humanos em vigor no Estado deve ser levada a cabo pelo julgador, em homenagem ao que se nomina devido processo convencional. Tal constatação, por si só, já justificaria a necessidade de o jurista pátrio investigar como há de ser a técnica e a mecânica desse controle no plano do nosso direito interno, uma vez que esse exercício de compatibilidade vertical das normas internas com os comandos dos tratados de direitos humanos em vigor no Estado é imposição do sistema interamericano de direitos humanos, no qual se mantém firmemente engajado o Brasil.
Há, como se nota, dois modelos de controle de convencionalidade possíveis: um internacional (levado a efeito, de modo coadjuvante ou complementar, pelas cortes internacionais) e um interno (manejado especialmente, mas não exclusivamente, pelos juízes e tribunais nacionais, em primeiro plano).3 Neste estudo, interessa investigar (no que tange ao direito brasileiro) esse segundo modelo de controle, que é prioritário (por isso chamado de “primário”) e deve ser exercido de acordo com o que ditam os comandos dos tratados de direitos humanos ratificados e em vigor no Estado, acrescido da interpretação (se existente) que deles faz a Corte Interamericana de Direitos Humanos, seguindo, sempre, o princípio pro homine ou pro persona de solução de antinomias entre as normas internacionais e internas (ou seja, aplicando a norma que, no caso concreto, for mais benéfica ou mais protetiva ao ser humano sujeito de direitos).4
Se é certo, porém, que incumbe prioritariamente ao Poder Judiciário dos Estados controlar a convencionalidade das leis no país, não é menos verdade que os demais poderes do Estado (o Legislativo e o Executivo) têm, igualmente, obrigações de respeito e acatamento para com o que dispõem as normas internacionais de direitos humanos das quais o Brasil é parte. Por esse exato motivo é que – não obstante este estudo enfatizar o controle jurisdicional da convencionalidade das leis – se impõe também analisar a responsabilidade dos poderes Legislativo e Executivo no que toca à observância dos tratados de direitos humanos em vigor no Brasil (daí todo o desenvolvimento que se fez na Parte II, Cap. 2, item 2.6). Frise-se, ademais, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, já há algum tempo, vem ampliando os legitimados ao controle de convencionalidade das leis, especialmente para o fim de atingir os demais órgãos do Estado vinculados ao sistema de justiça, como é o caso do controle de convencionalidade a ser exercitado pelo Ministério Público. Tal demonstra, em última análise, que o controle de convencionalidade das leis é obrigação atinente a todos os órgãos e Poderes do Estado, atualmente.
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NOTAS
1Journal Officiel, de 16.01.1975, p. 671. A propósito, v. o Considerando n.º 7 da Decisão 74-54, nestes termos: “Considérant que, dans ces conditions, il n’appartient pas au Conseil constitutionnel, lorsqu’il est saisi en application de l’article 61 de la Constitution, d’examiner la conformité d’une loi aux stipulations d’un traité ou d’un accord international”. A partir desse momento, fixou-se, na França, a diferença fundamental entre a convencionalidade (compatibilidade das leis com as convenções internacionais em vigor) e a constitucionalidade das leis. Assim, Alland, Denis (coord.), Droit international public, Paris: PUF, 2000, p. 370-371; e Martins, Thomas Passos, A implementação do constitucionalismo na França, Revista da AJURIS, ano XXXIV, n.º 108, Porto Alegre, dez. 2007, p. 320-321. Destaque-se ser o art. 55 da Constituição francesa – “Les traités ou accords régulièrement ratifiés ou approuvés ont, dès leur publication, une autorité supérieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son application ordinário (o Conselho Constipar l’autre partie” – a base de autorização para que o juiz tucional, já se viu, não tem essa competência) controle a convencionalidade das leis naquele país. A propósito, cf. Sampaio, José Adércio Leite, A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 187; e Martinico, Giuseppe & Pollicino, Oreste, The interaction between Europe’s legal systems: judicial dialogue and the creation of supranational laws, Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing, 2012, p. 33. Para um paralelo entre os controles de convencionalidade e constitucionalidade na França, v. Silva Irarrazaval, Luis Alejandro, El control de constitucionalidad de los actos administrativos en Francia y el control indirecto de constitucionalidad de la ley: la teoría de la ley pantalla, Ius et Praxis, vol. 12, n.º 2 (2006), p. 201-219; e Bruce, Eva, Contrôle de constitutionnalité et contrôle de conventionnalité: réflexions autour de l’article 88-1 de la Constitution dans la jurisprudence du Conseil Constitutionnel, VIème Congrès de Droit Constitutionnel (Association Française de Droit Constitutionnel), Montpellier (Juin 2005), p. 1-28.
2 Para as decisões-paradigma sobre o tema, v. Corte IDH, Caso Almonacid Arellano e Outros Vs. Chile, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 26 de setembro de 2006, Série C, n.º 154, § 124; e Corte IDH, Caso Trabalhadores Demitidos do Congresso (Aguado Alfaro e Outros) vs. Peru, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 24 de novembro de 2006, Série C, n.º 158, § 128.
3 4 Cf. Cantor, Ernesto Rey, Control de convencionalidad de las leyes y derechos humanos, México, D.C.: Porrúa, 2008, p. 46-48; Hitters, Juan Carlos, Control de convencionalidad (adelantos y retrocesos), Estudios Constitucionales, año 13, n.º 1, Universidad de Talca, 2015, p. 126; Alcalá, Humberto Nogueira, Los desafíos del control de convencionalidad del corpus iuris interamericano para los tribunales nacionales, y su diferenciación con el control de constitucionalidad, in Marinoni, Luiz Guilherme & Mazzuoli, Valerio de Oliveira (coords.), Controle de convencionalidade: um panorama latino-americano (Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Uruguai), Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 479-491; e Bazán, Víctor, Control de convencionalidad y diálogo jurisprudencial e nel Estado constitucional y convencional, in Bazán, Víctor, Rivera, Edwin Castro & Terán, Sergio J. Cuarezma (orgs.), Estado constitucional y convencional, Managua: INEJ/Hispamer, 2017, p. 27-28.
4 5 Como destaca Ernesto Rey Cantor, o “juiz interno tem competência para inaplicar o direito interno e aplicar a Convenção ou outro tratado, mediante um exame de confrontação normativa (direito interno com o tratado) em um caso concreto e adotar uma decisão judicial protegendo os direitos da pessoa humana”, ao que se nomina “controle de convencionalidade em sede nacional” (Control de convencionalidad de las leyes y derechos humanos, cit., p. 46-47). No mesmo sentido, v. Ferrer Mac-Gregor, Eduardo