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FILOSOFIA DO DIREITO

A vetorização da crise

CAPITALISMO

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MASSA

Alysson Leandro Mascaro

Alysson Leandro Mascaro

14/01/2016

Sem criar forças sociais de crítica e combate, os governos petistas pagam por si os custos das práticas gerais da contraditória legalidade corruptiva.

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O direito não é causa nem é o único vetor da crise brasileira, mas é seu solo estratégico, condensado e simbólico, que permite extrair consequências para o jogo político, para as correlações econômicas e para derivações ideológicas. No palco da crise brasileira, o direito entra como reputado remédio da corrupção. É nesse campo, de uma legalidade dos negócios públicos ou dos atos administrativos, que se levanta um horizonte no qual o direito é o restaurador da moralidade governamental e, daí, condutor de alguma ordem de redenção nacional.

Para que o direito assuma tal papel, é preciso uma larga cadeia social de construção da corrupção como mazela icônica e insuportável, galvanizando a sensibilidade do imaginário social nacional. O direito só logra assumir proeminência como combatente da corrupção e ativador de uma dinâmica social “ética” se estiver ao lado de uma articulação ideológica imediata que a ele conflua, empreendida por meios de comunicação de massa. Para tanto, a crise brasileira então também encontra, para além de uma histórica resistência dos meios tradicionais de comunicação – televisões, rádios, jornais, revistas – a governos de esquerda, a sua consolidação em bloco de visão política quando da assunção dos governos petistas. Como novidade, dá-se um alinhamento de conteúdo e estratégia de empresas que até então concorriam pela diferença de visões, alguma respeitabilidade, vanguarda de noticiário ou, simplesmente, mercado. Num processo de poucos anos, o discurso de imparcialidade e a parcimônia em face de distorções da imprensa tradicional dão lugar a uma cadeia de bombardeio ideológico e uma radicalização em posições ainda mais à direita de tais órgãos de comunicação.

Os governos petistas, assumindo mandatos depois de uma longa etapa de propaganda ideológica neoliberal junto ao público formador de opinião no Brasil, impõem-se a partir de soluções políticas de dosagens menos regressivas dentro desse espectro neoliberal, não rompendo com seus paradigmas e mesmo perseguindo dissidências à esquerda[1]. No primeiro mandato de Lula, o discurso político é claramente de rendição ao capitalismo e ao neoliberalismo como estruturas inexoráveis. No segundo mandato, troca-se parcialmente o discurso de neoliberalismo pelo de algum desenvolvimentismo, mantendo-se o capitalismo como horizonte legitimado. Nesse contexto, o petismo eleva, ao máximo, contradições gestadas desde sua origem, quando se assume como partido de esquerda mas operante nas estruturas do capitalismo e defensor da democracia, da cidadania e dos direitos humanos, carreando ainda consigo a bandeira de certa autenticidade da luta social – contra o velho trabalhismo de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola[2]. Além disso, assenta-se em uma plataforma de defesa da ética, da legalidade e de combate à corrupção. Justamente tal discurso empreendeu um acoplamento parcial do PT, nas décadas de 1980 e 1990, com alguns órgãos de imprensa. Tal visão, que prestigiava a liberdade de expressão da mídia e a defesa das opiniões divergentes, somou-se à ausência de disputa ideológica quando do início do governo Lula. Nos termos consolidados da prática política do PT, os meios de comunicação de massa não poderiam ser cerceados. A crença em algum de imparcialidade do noticiário – ou de triunfo social da verdade ao cabo das perseguições da imprensa – guiou a política petista nos anos de poder, em que pese todo o longo histórico de combates sofridos pela esquerda brasileira – golpe contra Jango, Brizola nas eleições de 1982 e, de modo simbólico, Lula nas eleições de 1989.

O processo de acomodação ao horizonte ideológico de neutralidade ou de indiferença em face das modulações políticas dos meios de comunicação de massa também se dará, de modo igual, no que tange às esferas do direito e das instituições estatais. Os governos petistas armam-se numa estratégia de imobilismo ou de indiferença à tecnicidade de tais esferas, vangloriando-se, inclusive, da não-intervenção em suas práticas e costumes, sob argumentos de republicanismo e respeito à legalidade. O histórico de nomeações a tribunais superiores revela uma ausência de estratégia política dos governos petistas e mesmo de entendimento sobre horizontes ideológicos a serem disputados. A esfera do direito, os tribunais e órgãos como Polícia Federal são, assim, naturalizados, e sua operação respeitada como imparcial por ser lastreada na técnica jurídica. Uma ideologia política liberal burguesa e jurídica permeou, de ponta a ponta, os governos petistas.

A corrupção e o caso brasileiro

A corrupção é estrutural do capitalismo. A mercadoria atravessa a tudo e a todos; a intermediação dos vínculos jurídicos por estratégias de favorecimento pessoal não é uma negação da natureza desses mesmos vínculos, mas uma de suas possibilidades, sendo inclusive, em modelos médios de reprodução capitalista, sua possibilidade central e provável. Nesse nível estrutural, o capital, podendo a tudo e a todos comprar, apenas se confirma quando a corrupção é dada. Não há limites éticos, morais, culturais ou sociais ao motocontínuo da determinação econômica capitalista – a acumulação não reconhece fronteiras.

Há uma especificidade da corrupção no capitalismo, na medida em que ela é, em alguma medida, uma negação da legalidade, que, por sua vez, é sustentada pela forma jurídica e pela forma política estatal que são espelhos da própria forma mercantil. A corrupção, assim, é uma contradição necessária da reprodução capitalista, na medida em que revela que as formas sociais pelas quais o capitalismo se estrutura não estabelecem um circuito lógico ou funcional de acoplamento. O capital só há com direito e Estado – sendo a legalidade a resultante da conformação dessas formas[3] –, mas, ao mesmo tempo, toda ordem estatal e legalidade só existem em função do capital. Com isso, o poder do capital e as estratégias da acumulação atravessam negativamente o solo da legalidade que é, ao mesmo tempo, sua própria condição de existência. A forma de subjetividade jurídica arma-se como derivada da mercadoria, a forma política estatal do mesmo modo, e a legalidade, derivada secundária dessas formas quando conformadas, arranja-se numa tensão constante entre limitar o poder do capital e/ou da força bruta ou apoiá-la.

Com essa necessária e estrutural natureza da corrupção no capitalismo, sua contradição com a legalidade se resolve sempre na casualística, que tem no direito apenas um ponto de condensação, mas não seu núcleo de resolução estrutural. Quantos e quais capitais, capitalistas, atos e negócios jurídicos serão acusados e combatidos como corruptos, esta é uma decisão do campo das relações concretas de força econômica, política, ideológica e cultural no seio das sociedades e de sua história. São luzes e sombras lançadas por fatos, notícias, reações sociais e decisões jurídicas e institucionais individuais e de grupo que sensibilizam variadamente as percepções das corrupções e seus respectivos combates. É certo que uma dosagem minúscula de combate à corrupção não instaura condições suficientes à reprodução capitalista e que uma dosagem máxima desse mesmo combate enfrentaria tamanha reação contrária que inviabilizaria a estabilidade do poder de classe e das próprias explorações e opressões arraigadas. Mas no vasto campo possível entre os governos de Papas Bórgias e de Savonarolas está a múltipla dosagem da corrupção no capitalismo.

Em termos de limitação, seria possível vislumbrar, no grande capital determinante do processo de acumulação de uma sociedade, o teto do combate às ilegalidades e à corrupção. Mesmo assim, há variantes de sensibilidade social do tempo e dos agentes jurídicos em específico que podem fazer com que o combate ultrapasse as determinações arraigadas do poder econômico para se materializar, ocasional e parcialmente, no direito. Além disso, o teto do combate à corrupção pode ser ultrapassado por hipóteses de incitação ensejadas por razões concorrenciais – por exemplo, mesmo grandes capitalistas brasileiros podem ser submetidos ao direito e penalizados por corrupção e isto se aproveita a capitalistas estrangeiros, num processo contraditório de atuação de forças múltiplas no seio da burguesia justamente devido à sua natureza concorrencial – e, daí, suas correlatas estratégias geopolíticas.

A quantidade variável de práticas de corrupção e as distintas modulações de seu combate no solo do capitalismo não negam o papel central de tais práticas na própria reprodução do sistema, perpassando empresas, governos, agentes privados e públicos. Dentro desse quadro, a reiteração da corrupção estabiliza formas médias de interação e vínculo social.  No caso brasileiro, o Estado se materializa e orienta sua dinâmica permeado diretamente por acordos entre empresas e agentes públicos. Não é o Estado a única fonte de corrupção, dado que esse modelo é social, desde pequenas corrupções quotidianas a acordos de compras nos escalões gerenciais das empresas privadas. Mas, de modo geral, o alvo da crítica à corrupção costuma circunscrever-se ao Estado e, com isso, considerando razoável uma ordem privada de pequenos favores. E, mesmo em se tratando da questão da corrupção no seio do Estado, há uma preponderância de crítica e perseguição aos governantes e agentes públicos, menos presente aos corruptores, via de regra grandes empresas. Na sociabilidade capitalista, os vínculos sociais corruptos quotidianos – que a todos perpassam – não são pelas pessoas assim considerados; a corrupção empresarial, dado exatamente seu poder econômico central, não é denunciada nem muitas vezes compreendida como tal; corrupção, daí, circunscreve-se ao Estado e seus agentes. Ela é tida como tal privilegiadamente – ou apenas – no campo da política.

A reiteração do governo e da administração do Estado pelas classes e grupos tradicionalmente dominantes faz com que suas práticas recebam chancelas institucionais de legalidade, reservando-se o controle, a denúncia e a penalização de crimes a instrumentos eminentemente políticos. Quase sempre, a incidência jurídica contra a corrupção é em desfavor apenas de governantes frágeis ou grupos opositores novidadeiros ou de menor inserção nas instituições estatais e sociais. Nos casos brasileiro e latino-americano, o combate à corrupção é historicamente um mote que serve de arma a classes e grupos tradicionais, a serviço da restauração de velhas dominações políticas. Assim se fez o combate a Getúlio Vargas pela direita de seu tempo, encabeçada pela UDN. O mesmo se dá contra o PT, em campanhas dos partidos à direita. Nesses dois momentos, a imprensa teve papel fundamental na construção de uma sensibilidade que se levante contra os governos combatidos. O grau de seletividade dessa moralidade é espantoso – no passado udenista e na atualidade dos variados partidos de direita que combatem a corrupção grassam as mais variadas experiências do mesmo tipo, quiçá em grau até maior. Alta dose de cinismo preside as campanhas éticas no plano da política[4]. Ética é arma de disputa.

O caso das práticas de corrupção nos governos brasileiros do PT revela, inclusive, a capitulação final da esquerda brasileira tanto ao modelo de política arraigado, de domínio do capital em conluio com o favorecimento dos detentores de cargos públicos, quanto ao horizonte da legalidade e da eticidade correspondente que ajudou a gestar e que não foi capaz de superar. Dentre outros aspectos, a crítica à ditadura militar brasileira se fez também com a denúncia de sua corrupção e do uso do Estado, ao tempo, para negociatas com interesses privados, de que as construtoras são o caso notório. O PT, em sua alvorada na década de 1980, encampou o discurso da ética pública nos termos de uma legalidade a ser plenamente cumprida. Os governos civis brasileiros posteriores – José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso – baseados no mesmo modelo ditatorial anterior, de corrupção por simbiose com grandes empresas, acrescidos de um jogo constante de costura de acordos políticos nas casas legislativas –, foram simbolizados, ao tempo, pela esquerda brasileira, como falência de um republicanismo legalista idealizado.

Quando o PT ganha o poder federal, se insere exatamente no mesmo quadro de governabilidade por práticas políticas de ganhos corruptivos ao grande capital e de construção de apoio político por favorecimentos estatais, nomeação a cargos públicos, porcentagens de contratos em licitações etc. As práticas de governo revelam um fio condutor único que vai da ditadura militar ao governo do PT, estabelecendo-se, do mesmo modo, nos demais níveis de governo da federação – Estados e municípios. A corrupção por pressão de grandes empresas e como estratégia de favorecimento econômico imediato de políticos é o modelo específico de armação política do Brasil há décadas, podendo, se não se quiser remontar a uma longínqua sequência, estabelecer a ditadura militar brasileira como marco de sua nova estruturação junto às empresas privadas e o governo Sarney como padronizador da dependência corruptiva entre os poderes Executivo e Legislativo[5].

A tomada de poder no plano federal pelo PT se fez com a estratégia de composição política para a obtenção de maioria legislativa. Dos pequenos e médios partidos conservadores que de início adentraram à base aliada até chegar, posteriormente, ao PMDB, a política dos governos petistas em nada diferiu dos hábitos arraigados da dinâmica política brasileira[6]. No entanto, sua condição novidadeira em face do manejo das instituições jurídicas e policiais e seu proclamado respeito ao republicanismo dessas mesmas instituições tornaram tais governos reféns de uma reação jurídica respaldada e consequente, mas que contra os demais não se deu. A luz da sala da corrupção acendeu-se principalmente na hora em que o PT a ela adentrou. Somando-se a esse quadro a natureza conciliadora dos governos petistas, a ausência de disputa ideológica e a inação em face do controle da opinião pública, avulta a desfiguração do balanço político daí resultante, na medida em que a sociedade se levantou com ódio contra a comprovada corrupção petista, mas não consegue estender seu mesmo ódio aos partidos mais à direita.

A corrupção é a prática recorrente e estrutural do modelo capitalismo brasileiro, mas seu combate se aproveita em favor de frações do grande capital nacional e estrangeiro e em benefício dos agentes políticos tradicionalmente poderosos, mais conservadores e à direita. O discurso jurídico, o moralismo e o republicanismo, como ideologias de direita, têm, ao fim e ao cabo, apenas o proveito político que é de sua natureza.

Aos governos petistas, a corrupção não é seu problema central mas, sim, derivado de sua materialidade político-econômica. Justamente porque são governos de larga composição com o capital – ainda que com algum direcionamento de inclusão consumerista distinto da mera evolução inercial de sua dinâmica tradicional –, são reféns das próprias práticas do capital. Não podem enfrentá-lo em momentos de crise, dado que não se armaram discursiva e efetivamente para uma posição de combate nem tampouco forjaram uma disputa ideológica que gerasse mobilização progressista de massas. Como a reprodução capitalista é necessariamente de alguma sorte de corrupção na sua acepção jurídica, daí, exatamente porque se forjaram simbióticos ao capital – e isso nos seus termos econômicos, políticos e jurídicos já dados –, sem criar forças sociais de crítica e combate, os governos petistas pagam por si os custos das práticas gerais da contraditória e inexorável legalidade corruptiva que move, nos espaços da forma estatal, esse mesmo capital.

Fonte: Carta Maior


[1] Cf. GENRO, Luciana; ROBAINA, Roberto. A falência do PT e a atualidade da luta socialista. Porto Alegre, L&PM, 2006.
[2] Cf. SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo, Ateliê Editorial, 2015. POMAR, Walter. A metamorfose. São Paulo, Página 13, 2014.
[3] Cf. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo, Boitempo, 2013.
[4] Cf. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo, Boitempo, 2008.
[5] Cf. CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas catedrais. As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói, Ed. da UFF, 2014. BORTONI, Larissa; MOURA, Ronaldo de. O mapa da corrupção no governo FHC. São Paulo, Perseu Abramo, 2002.
[6] Cf. NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento. Da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

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