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Se não há colaboração, contribuição, não há contrato: se é subterfúgio, submissão, sujeição, não é contrato 

CONTRATO

Gladston Mamede

Gladston Mamede

05/09/2023

Uma das análises mais ousadas que produzi até hoje está Teoria Geral dos Contratos (São Paulo: Atlas, 2014), livro cujas últimas unidades ainda estão em catálogo. Afinal, procurei demonstrar que o contrato compreende-se – e deve ser compreendido – essencialmente como evento colaboracional, como fenômeno de ação mútua de altruísmo.

E nisso há uma baliza hermenêutica obrigatória: o contrato não pode ser interpretado/aplicado como um ato de agressão (agonístico), mas como ato de colaboração (altruísta). Se outra fosse a nossa natureza, em nossa condição de seres vivos, talvez não houvesse o contrato.

Mas não dá para ser quem não somos, eis um truísmo com implicações diversas, como ontológicas e éticas. Aliás, um truísmo essencial pois, no plano sociológico e jurídico, permite uma compreensão ambivalente sobre as relações interpessoais: a agressão versus a colaboração. 

Altruísmo é uma palavra-chave pois tem em sua raiz a ideia de outro: alter, em latim. É esse o plano conceitual (de raiz, insisto) do contrato. É a perspectiva necessária. Não se admite compreender o contrato como ato de agressão; isso é ontologicamente errado; isso não é lógico. A agressão, o desrespeito, o esforço de submeter, de agredir não têm pertinência com o ideário contratual, com suas bases conceituais mais elementares.

Dito de outra forma: o contrato não serve para isso. Eis o fundamento central da tese que desenvolvi – e demonstrei – em Teoria Geral dos Contratos. Os alicerces da compreensão (interpretação e aplicação) dos negócios jurídicos não pode vencer os parâmetros da ideia de colaboração: co-laborar: trabalhar junto, por um fim comum (ainda que antagônico, como na compra e venda: a compra se complementa na venda: comprador e vendedor co-laboram). Somente nossos impulsos biológicos agonísticos, nossa compreensão da existência como espaço de luta, de disputa, permite compreender o contrato por outra perspectiva ou em outras bases.

Mas isso será falso. Isso é ilógico. Algo como argumentar que o crime passional é um ato de amor; não é; as dúvidas a respeito nascem nas porções irracionais de nossa condição de seres animais. A fera (ou besta) que compõem um de nossos lados e se revela em mazelas como a guerra e o crime e o abuso (ainda que civil); esse impulso sustenta certas exegeses, certos argumentos, posições, pretensões, decisões (a incluir sentenças e acórdãos, não me furto à afirmação).

Como demonstrei em Teoria Geral dos Contratos, a base positiva do contrato é a Constituição da República. “Entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito está a liberdade de agir jurídica e economicamente, ou seja, o princípio da livre iniciativa (artigos 1º, IV, e 170, caput); há quem prefira uma interpretação mais tacanha, propondo que tais normas se refiram exclusivamente ao poder de empreender. É pouco. Elas vão além e asseguram um poder de praticar atos jurídicos e, mesmo, estabelecer normas jurídicas privadas (como o contrato), desde que nos limites licenciados pela Constituição e pelas leis, ou seja, considerado o princípio da legalidade (artigo 5º, II, da Constituição). Portanto, um dos corolários do princípio da livre iniciativa é o princípio da liberdade de contratar, ou seja, a liberdade de criar normas privadas que, se estabelecidas nos limites jurídicos, têm eficácia estatal, isto é, podem ser executadas judicialmente.

Direito contratual

Assim, o Direito Contratual pode ser compreendido como o espaço normativo do cidadão, da partícula (donde particular). A gênese das normas contratuais não é a soberania (artigo 1º, I, da Constituição da República), ou seja, o poder estatal soberano que se manifesta coercitivamente sobre a sociedade em geral sob a forma de normas constitucionais, legais ou regulamentares (infraconstitucionais). Sua gênese é a cidadania (artigo 1º, II, da Constituição da República), ou seja (e devo me repetir), o poder particular das pessoas (naturais ou jurídicas) de, nos limites licenciados pelas normas estatais, estabelecerem normas jurídicas privadas.” 

O contrato é um convir. Embora seu espaço jurídico não seja infinito, não é reduzido, contudo. E justo por isso constrói uma zona larga para a criatividade jurídica lícita. E isso é fascinante: uma das poucas áreas em que o Direito é criativo; não de lege lata (para criar leis), mas de lege ferenda (no espaço definido pelas leis já positivadas.). E diversos negócios inovadores foram e são estabelecidos como exercício da liberdade de contratar: a sociedade e, enfim, o Estado se beneficiam da atuação criativa inovadora dos particulares. Mas é preciso fidelidade à lei.

É preciso fidelidade aos princípios jurídicos e, como se não bastasse, é preciso fidelidade à essência do que é (e deve ser) um contrato: um instrumento de comunhão, não de submissão, de subjugação. Embora, sim, o contratante esteja obrigado ao cumprimento da norma privada que construiu com o outro(s) contratante(s), é preciso que todo o processo contratual (que vai do querer contratar, passa pelo firmar, avança pela execução e, dali, espraia-se pelos efeitos pós-contratuais), é preciso fidelidade ao conceito de vontades livres e conscientes (não engabeladas), constituídas em acordo, em convenção, em manifestação recíproca. Insisto aqui, como fiz no livro: o contrato não é instrumento de conquista, de agressão, mas de acordo, de colaboração. 

Lei da Liberdade Econômica

O esforço para impor normas privadas abusivas mantem-se em alta. A própria Lei da Liberdade Econômica reflete isso. A questão a ser colocada é conceitual e demanda coerência: pode ser compreendido como contrato o que não atende às bases do que é e deve ser um contrato? Pode se atribuir o status de decisão comum (convenção, acordo, contrato) ao que não foi e não é uma decisão de uma das partes, mas uma submissão? Será que a disposição (a[s] cláusula[s]) sensibilizará tanto o intérprete que não se atentará para a necessidade de que se tenha efetivamente disposto?

Há uma perceptível atenção ao texto firmado sobre o qual se funda a relação privada. Mas o texto é apenas (e tão-somente) o instrumento de contrato e não o contrato em si. É apenas uma prova da convenção e não a convenção em si. E uma prova relativa (iuris tantum), a comporta não apenas prova em contrário, mas, como defendi, comporta demonstração de que a norma privada atermada (escrita, disposta no instrumento de contrato) é incoerente com o encontro das partes, com uma convenção, com a recíproca vinculação recíproca dos patrimônios envolvidos.

Volto Teoria Geral dos Contratos (São Paulo: Atlas, 2014): “O elemento central da vinculação da pessoa e de seu patrimônio a uma obrigação jurídica privada é sua vontade de fazê-lo. Daí serem chamadas, igualmente, de obrigações voluntárias, permitindo estabelecer um vínculo entre a autonomia privada e a autonomia da vontade, valorizando o poder atribuído às pessoas de criarem normas sobre o patrimônio, nos limites permitidos pela lei. O Direito concede competência e poder aos particulares para que estabeleçam obrigações jurídicas privadas sobre si e sobre o seu patrimônio. A transformação dessa possibilidade jurídica (norma agendi) em exercício (facultas agendi) exige expressão livre e consciente da vontade: a autonomia da vontade é elemento subjetivo da liberdade de obrigar-se,de contratar.”

É quase impossível mensurar os efeitos de uma cultura jurídica que desvirtua a essência do contrato, vale dizer, de uma prática judiciária de tomar o contrato pelo que aparenta ser e não pelo que efetivamente foi (o sinalagma), é e deve ser. O que se vive hoje em dia atende a uma cultura econômico-jurídica e, se pensarmos bem, soma-se ao universo de fatores que nos mantêm num sistema desequilibrado, com uma pegada injusta que, se beneficia a alguns, o faz de forma ilegítima, num escarcéu social que se escancara por todos os cantos e, sendo irônico, recomenda turismo na Europa.

Mas isso não é coisa que se diga; uso da palavra até onde não se deve; melhor se trancar em mutismo deliberado e, podendo, comprar passagem e contratar a estada em ambientes juridicamente mais civilizados. No entanto, bem pesadas as coisas, vamos tocando a vida brasileira, desse jeitinho; não é difícil com uma forte insensibilidade ou com doses razoáveis de alienação: nada como um tô-nem-aí para não perceber os contrastes assustadores que conduzem a uma indignidade lucrativa.

Mas, daqui em diante, o texto abandona o Direito e se envereda pela política, o que não é recomendável. Se bem que tudo deixa de ser política quando não só alcança e vitima o outro, mas nos alcança e nos faz vítimas. Então, passa a ser um absurdo, um descalabro. 

Não se pense, contudo, que estou a me referir a um volume excessivo de ajustes. No geral, os contratos são conformes à lei e à vontade efetiva das partes. É bom pôr as teimas de parte, recusar o discurso fácil que em tudo vê uma ponta de fogo e razão para conversar fiado. Em fato, num plano geral, amplo, o Direito Contratual funciona bem e é vivido pela sociedade, sem cismas ou lamúrias. Mas, principalmente no plano dos contratos de massa, há distorções preocupantes que convivem com pouca atenção à Teoria Geral disposta no Código Civil. Em suma, há um espaço de luta e de evolução.

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