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Responsabilidade Civil na Sucessão Profissional
Gladston Mamede
26/07/2023
Este pequeno ensaio deve ser lido com uma ressalva de abertura: vou velho. Num mundo em que a felicidade é uma pose fotográfica postada em meios eletrônicos a bem de cumprir os ritos de estilo de uma sociedade de exposição e criar um terceiro nível da realidade. Explico-me: há o real físico (a physis – Φύσις), o real humano (no plano do logos – λόγος) e o real das mídias sociais. Sobre os dois primeiros, escrevi em Semiologia do Direito (São Paulo: Atlas, 2009). Análises acadêmicas sobre mídias sociais e a sociedade da superficialidade vencem a minha capacidade ou, no mínimo, a minha paciência. Daí retornar ao início: vou velho.
O que isso tem a ver com o Direito? O que isso tem a ver com responsabilidade profissional? O que isso tem a ver com solidariedade ou subsidiariedade? Simples: essa sociedade do auê, esse mundo de superficialidades em que construções – mesmo jurídicas – erguem-se à flor da terra, sem fundação sólida ou, quanto menos. Estamos a confundir os elementos, as figuras, os institutos. E o resultado disso é um cotidiano empobrecido que a comida pode ser, sim, intragável já que se usaram bugalhos em lugar de alhos. E tais maçãs de carvalho (os bugalhos) não têm bom gosto. Alfim, estamos todos pagando um preço caro por uma sociedade que não funciona bem porque aceita ser superficial. A tal sociedade dos likes.
Vejam a história que me chegou: um advogado assume uma ação que era conduzida por outro profissional. Não se trata do mesmo escritório. Sai um, entra outro. Veja que a situação não seria diferente se fosse com um dentista ou um contador ou um podólogo, um engenheiro. A premissa, portanto, é a seguinte: há atos profissionais praticados por um profissional; há atos profissionais praticados por outro profissional, sem que componham a mesma equipe, a mesma instituição: uma sucessão verdadeira: saiu um, assumiu outro. Minha história é de advocacia por minhas pesquisas acadêmicas (A Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2014); se fosse o prof. Henderson Fürst (Teoria do Biodireito. Belo Horizonte: Letramento, 2023), iria contar uma história de médicos. Seria indiferente, se respeitados os elementos da premissa.
Mas voltemos ao caso: o primeiro advogado, ao propor a ação, redigiu a petição inicial, instruiu a petição com documentos etc. Mas não a leva a cabo, seja em primeira instância, seja ao perder tal instância. O outro – que não compõe a mesma equipe, o mesmo escritório – assume dali. Mas a pretensão do cliente não se vê acolhida por falhas na prestação do serviço pelo primeiro profissional. Um erro havido na petição inicial (submetida ao princípio da estabilização do pedido), em sua instrução ou em qualquer outro ato que tenha praticado e, enfim, mereceu a perenização jurídica proporcionada pela preclusão. De quem é a responsabilidade pelos danos experimentados pelo cliente?
Pois vou lhe dizer o que me contaram línguas maledicentes. Sabe como é? Há um bolero mexicano, composto por Rafael Cardenas e Rubén Fuentes, Que murmuren:
Que murmuren
No me importa que murmuren
Que me importa que lo digan
Ni lo que piense la gente
Si el agua se aclara sola
Al paso de la corriente
Que murmuren…
No Brasil, fez sucesso estrondoso na voz e no estilo fabuloso de Dalva de Oliveira (1957, 78 rpm, versão de Gióia Júnior); mas a gravação original é de 1954, com Los Tres Diamantes, grupo mexicano. Mas o que murmuram? Dizem que, cm certa unidade da Federação, um cliente ficou insatisfeito por ter perdido uma ação de cobrança. Afinal, não fora julgada procedente porque as cópias dos documentos juntados com a inicial, os documentos que comprovariam seu crédito, estariam tão claras que não permitiriam a leitura e, assim, não foi possível comprovar os fatos alegados na petição inicial. Mas não ingressou apenas contra seu primeiro advogado, mas, por igual, contra aquele que contratou para substituir o anterior, responsável pela lambança. Sua pretensão era de que a responsabilidade profissional pelo dano alcançaria ambos os profissionais, apesar de não serem sócios, não comporem a mesma organização, equipe ou coisa parecida. Uma responsabilidade que resultaria apenas do fato de ambos terem sido advogados ao longo do processo que fora julgado improcedente por não ser possível ler as cópias juntadas com a inicial.
O segundo advogado contestou a ação: não havia proposto a inicial; não fizera a instrução da inicial. Aceitara a causa pois o cliente afastara-se do primeiro advogado e lhe trouxe o feito na esperança de salvar a pretensão. Como a questão de não ser possível ter o documento já fora manifestada pelo Judiciário, o segundo advogado teve o cuidado de pedir ao cliente os documentos. Ele respondeu por email, juntado aos autos, que não tinha mais os documentos. Ainda assim, o Juizado Especial julgou a demanda procedente, confirmando a decisão em face ao recurso: o primeiro advogado errara ao juntar provas ilegíveis; o segundo advogado seria responsável, solidariamente, por ter assumido a demanda. Assim, a pobre vítima de um erro advocatício terá que ser indenizada por todos que atuaram na sua defesa: faz a postagem, divulga-se a notícia, a foto, esperam-se as curtidas, os compartilhamentos. A sociedade do espetáculo segue num mundo de aparências. A trilha sonora poderia ser muitas.
A gente às vezes
Sente, sofre, dança
Sem querer dançar
Na nossa festa
Vale tudo
Vale ser alguém
Como eu
Como você
Abra suas asas
Solte suas feras
Caia na gandaia
Entre nessa festa.
Responsabilidade civil
Nelson Motta e Rubens Queiroz: Dancin’ Days, gravado pelas Frenéticas (1978; LP Caia na Gandaia). Mas, espere um momento. Responsabilidade civil por assumir a causa? Mesmo? Não estou falando do primeiro profissional: ele cometeu o erro que levou ao dano. Mas… e o segundo? Qual o fundamento jurídico desta responsabilidade civil por assumir o caso (lembrando que vale para psiquiatras, manicuras, publicitários, contadores etc)? Para o primeiro, lá está o artigo 186 do Código Civil:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Ele, o primeiro profissional, foi negligente na proposição e, assim, deu causa ao dano: o documento que comprovaria não pode ser lido. Mas como se afirmar que o segundo advogado é solidário nessa responsabilidade sem atropelar o Código Civil. O corpo que se vê estatelado e sem vida, no chão, é seu artigo 265:
Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.
Já sei o que irá acontecer, agora. Alguém irá correr ao Código de Defesa do Consumidor e lembrar do artigo 25. Veja haver baciadas de acórdãos a dizer que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor à advocacia. Mas não vou usar o argumento para deixar a peleja. De jeito maneira. Dei um boi para entrar e aqui fico. Então, não precisa correr. Está aqui o artigo:
Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.
§ 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.
§ 2° Sendo o dano causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço, são responsáveis solidários seu fabricante, construtor ou importador e o que realizou a incorporação.
Viu? Não viu? Então veja: não há mais de um responsável pela causação do dano; só o primeiro profissional. E o dano não foi causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço, são responsáveis solidários seu fabricante, construtor ou importador e o que realizou a incorporação. Simplesmente não há uma cadeia de fornecimento quando um profissional (tome-o por fornecedor, se quiser) sai e o outro entra. Afora no fato de terem servido ao mesmo cliente (tome-o por consumidor, se quiser) e exercido o seu mister em favor desse, procurando resolver o mesmo problema, a mesma questão, a mesma empreitada, não se pode deixar de reconhecer que um saiu e outro entrou, sem que haja relação de outra natureza entre eles (parceria, compor a mesma equipe, a mesma instituição etc). Não há cadeia de fornecimento, portanto. Não há solidariedade entre o restaurante e a sorveteria se o comensal almoçou no primeiro e comeu a sobremesa no segundo.
O mais curioso na decisão que, à boca pequena, vai comentada por aí, está na sua perniciosidade. Sim! Ela é absolutamente perigosa, lesiva, deletéria. Afinal, se nenhum outro profissional assumir um caso, com medo de ser responsabilizado pelo que fez(fizeram) o(s) profissional(is) anteriores, a vaca irá inexoravelmente para o brejo. Seja um fisioterapeuta, um taxidermista, um revisor de português ou um encanador. Passaríamos a exigir uma diligência prévia (due dilligence) que, em muitos casos (inclusive nos procedimentos judiciários, fortemente marcados por prazos peremptórios), conduziriam a um dano maior. E há incontáveis outras situações em que não haveria tempo para uma diligência prévia para atender ao cliente. Em suma, lascar-se-ia tudo.
Tá lá o corpo estendido no chão!
Em vez de rosto, a foto de um gol.
Em vez de reza, a praga de alguém.
E um silêncio servindo de amém.
João Bosco (De Frente Pro Crime, 1975), mineiro aqui de Ponte Nova. O grande risco oferecido pelo entendimento que fica lindo nas aparências é que lhe falta base jurídica e, pior, sua aplicação é simplesmente nefasta para todos. Se não assume alguém, todos com medo de serem responsabilizados pelo que não fizeram e nada tem a ver, as consequências são muito piores. O pior é que, olhando pelo lado dos fundamentos, fico a me perguntar: houve uma causa em que, comprovadamente, o magistrado praticou um ato ilícito. Não sou eu quem está dizendo. Foi afastado disciplinariamente, julgado, aposentado compulsoriamente e, agora, enfrenta processo criminal pelo que fez. O juiz que assumir a causa daí em diante é civilmente responsável por ter substituído o anterior?
– Não! De jeito algum! Aí é diferente!
– Ah! Entendo.
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