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Doação de Quotas de Sociedade Limitada a Empregado

ALLAN TURANO

MARCELO LAUAR LEITE

RONALD SHARP

SOCIEDADE LIMITADA

Gladston Mamede

Gladston Mamede

26/05/2023

Juntamo-nos, quatro professores de Direito Empresarial (Gladston Mamede, Marcelo Lauar Leite, Allan Turano e Ronald Sharp) e escrevemos este artigo a partir de um caso que nos foi submetido por outro colega professor.


Pode um empregado ser sócio de uma sociedade limitada? Pode um sócio doar parte de suas quotas societárias a um empregado? Ninguém duvida que isso possa acontecer em sociedades anônimas de capital aberto: é corriqueiro funcionários sejam acionistas. Talvez alguns fiquem em dúvida no que se refere às companhias fechadas, mas aplica-se a mesma solução jurídica: nada impede que o empregado seja acionista. Agora, como a sociedade limitada é contratual (e não institucional), pode um sócio (controlador ou não) doar parte de suas quotas, ainda que em percentual muito pequeno, a um empregado? Por exemplo: a empresa vai média, começou pequena, e o empregado estava lá desde o início, razão pela qual o sócio administrador, e que tem amplo controle, pensa merecer ser mais que empregado: merece ser um dos meus sócios. Pode? 

A resposta comporta níveis ou, preferindo-se, camadas. No primeiro plano, a resposta é simples: pode, claro. Tomando a questão sob a perspectiva do Direito Privado, trabalhando-a sob a perspectiva da Teoria Geral das Pessoas Jurídicas (Parte Geral do Código Civil) e da Teoria do Direito Societário, a questão é mesmo singela: a pessoa jurídica tem personalidade, patrimônio e existência distintos das pessoas de seus membros, sejam pessoas naturais, sejam pessoas jurídicas. Portanto, o empregado de qualquer sociedade (contratual ou estatutária) pode ser seu sócio: simples, em nome coletivo, em comandita simples, limitada, sociedade por ações e em comandita por ações, sociedade cooperativa. Assim como vale para associações e partidos políticos etc. Pode haver contratação, manutenção da relação e mesmo demissão: o trabalhador sócio pode pedir sua demissão ou pode ser demitido, com ou sem justa causa.

Condição de preservação do limite de responsabilidade

Simples? Mais ou menos. No último parágrafo, um cavalo de Tróia passou pelas portas abertas e, dentro das muralhas, pode destruí-las. Nas comanditas, simples e por ações, a preservação do limite de responsabilidade em favor dos comanditários (quotistas ou acionistas) pressupõe não praticarem atos de administração ou gerência. A resposta ainda é afirmativa: podem ser sócios e empregados. Mas será preciso atenção ao caso concreto para que não haja desrespeito à condição de preservação do limite de responsabilidade. A relação de emprego não poderá ser meio para fraudar a vedação legal. Pior: ainda que não haja intuito de fraude, as vedações legais são objetivas, como se lê nos artigos 1.047 do Código Civil e 282 da Lei 6.404/76.

Doação de quotas, direito trabalhista e fraude

Mas há outro aspecto crucial, embora próprio de outro sítio: a doação de quotas não pode se constituir em meio para fraudar, sob qualquer aspecto, direitos trabalhistas. Sócio é sócio e há nisso um contorno jurídico específico, previsto na legislação de regência da sociedade (Código Civil e/ou Lei 6.404/76). Empregado é empregado, relação jurídica que se pauta pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Se a relação que se pretende societária tem contornos que a qualificam como trabalhista, poderá haver correção por meio de ação na Justiça Laboral e autuação fiscal pela Inspeção do Trabalho (afinal, temos o artigo 11 da Lei 10.593/2002, a estabelecer o poder de polícia administrativo do trabalho, exercido pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho, em consonância com o artigo 21, inc. XXIV, da Constituição da República). A resposta, então, ganha um contorno novo: sim, é possível, desde que a relação de trabalho seja regular em todos os seus aspectos e consectários.

Não é só. Na seara trabalhista ainda há um outro risco. A doação pode ser considerada uma parte da remuneração. Se isso ocorrer, haverá repercussões, incluindo previdenciárias.  Nunca é demais recordar, já que estamos temperando a resposta inicial, dada por uma perspectiva exclusivamente societária, que há julgados da Justiça do Trabalho, envolvendo planos de Stock Option, que tratam a doação como remuneração. Como a situação se resolve? Considerando os elementos de cada situação em contraste com as balizas que orientam as relações de empresa. Por exemplo, nos casos em que a doação estiver atrelada ao atingimento de metas, ao crescimento do faturamento da sociedade, ou a questões particulares da atuação do empregado, como assiduidade ou aumento de sua jornada de trabalho, há fortes argumentos para se sustentar a natureza salarial. Diferentes são os casos em que a doação é mera liberalidade do doador. Este intimamente pode até esperar em decorrência dela maior engajamento por parte do ou até maior longevidade do donatário no quadro de funcionários da sociedade, mas não condiciona tal negócio jurídico a qualquer contrapartida objetiva ou subjetiva por parte do donatário-funcionário. 

Note-se que a questão é bem menos tormentosa quando há, em vez de doação, compra e venda de quotas entre funcionários e sócios de uma sociedade, ou entre funcionários e a própria sociedade. Nesse sentido, há diversos julgados que apontam que tais negócios não consistem em parcela salarial (cf. nota final 3). 

Cessão a terceiros

Então, é tudo simples sob a perspectiva do Direito Empresarial? Os problemas são de Direito do Trabalho, é isso? Não. Há uma outra camada: é preciso avaliar como o contrato social trata a cessão a terceiros. Se nada tratar (costumam não tratar por aqui), haverá de se considerar o Código Civil:

Parágrafo único. A cessão terá eficácia quanto à sociedade e terceiros, inclusive para os fins do parágrafo único do art. 1.003, a partir da averbação do respectivo instrumento, subscrito pelos sócios anuentes.  

Portanto, se o sócio doador tiver participação inferior a 75% do capital social, o restante dos sócios poderá se opor à doação; afinal, o dispositivo não faz distinção entre cessão onerosa ou gratuita. Aliás, a ausência de distinção entre cessão onerosa e gratuita pode criar um outro problema. Imagine-se que o contrato social traga uma cláusula assim redigida: 

Nenhum sócio poderá ceder suas quotas a terceiros sem, antes, oferece-las proporcionalmente aos demais sócios.

Pode parecer algo comezinho, mas, para o caso examinado, a cláusula abrirá as portas do inferno. Em fato, o redator do ato constitutivo, ao desconsiderar que a cessão pode ser onerosa ou gratuita, abre oportunidade para dúvidas. O sócio doador dirá que a cláusula não encampa a doação; mas o sócio que a ela se oponha que não é isso o que está escrito e, mais do que isso, que a intenção da norma é preservar inalterada o grupo de sócios, ainda que haja uma alteração na participação de cada um na composição do capital.

Esse é um dos desafios daqueles que se encarregam da redação de atos normativos, sejam leis (os legisladores), sejam declarações unilaterais, contratos e estatutos (advogados). Há uma imensidão de hipóteses que podem incidir e o melhor profissional será aquele que for ambicioso na tradução mais completa das alternativas que podem se apresentar. E, sejamos honestos, pensar e tratar da doação não é algo tão absurdo. É uma hipótese próxima: quotistas podem querer doar. A lei nada fala a respeito salvo, para as limitadas, a previsão do direito de veto. Sim, são duas questões diversas: “direito de veto ao ingresso de terceiro” e “direito de preferência, sobre terceiro, para aquisição”. Não menos certo é que soa um pouco estranho falar-se em preferência para ser donatário. Mas o contrato que exige o oferecimento anterior a quem já seja sócio pode ser interpretado, como dito acima, a traduzir opção societária por estabilidade no grupo de sócios.

Resolução de impasse

Como se resolve tal impasse? Pelo litígio, seja judiciário, seja arbitral (caso haja cláusula compromissória no ato constitutivo ou em acordo de sócios). Noutras palavras, resolve-se pela manifestação de terceiros (os julgadores) a quem as duas leituras e pretensões sejam submetidas. Para se ter uma ideia, não houve acordo entre os signatários do artigo sobre a questão. E, acreditamos, não seria diverso se a distribuição se fizesse para esse ou para aquele juiz, essa ou aquela Turma Recursal, se arbitragem estivesse a cargo desse ou daquele grupo de árbitros. É a maldição que ronda toda e qualquer imprevisão. 

Há uma outra solução? Há. E muito simples. Precisamos abandonar a cultura dos atos constitutivos que se repetem, copiando formulários, e precisamos recuperar e valorizar o ofício advocatício de redigir instrumentos que atermem a vontade específica de cada grupo de sócios. Isso deve resultar de uma consulta entre o profissional e as partes envolvidas, cabendo ao expert trazer à consulta questões sensíveis que, eventualmente, devam compor o ato constitutivo. Por exemplo: 

Como os senhores querem regular a transferência de quotas? Temos duas situações: a cessão onerosa, ou seja, se os sócios poderão vender suas quotas para terceiros, se há direito de preferência, como se organiza esse direito de preferência. E há a cessão gratuita, vale dizer, se um sócio pode doar suas quotas para outro sócio ou mesmo para terceiros. Pode-se vedar a doação ou pode-se permiti-la, com ou sem definições: aprovação (e respectivo quórum), determinadas pessoas (filhos, cônjuges), condições. E aí? Como os senhores(as) querem disciplinar isso?

Ao Direito corresponde uma tecnologia, um saber fazer (savoir faire, dizem os francófonos; know how, dizem os anglófonos). Cabe ao advogado dominar essa tecnologia e constitui-se virtude profissional dominá-la mais e melhor. A pessoa cuidadosa (no caso, os investidores que pretendem se organizar em sociedade empresária) recorrerá a bons experts para usufruir da melhor tecnologia em seu favor; em favor da sua empresa. É insensato pensar-se apenas em tecnologia de maquinário, de tecnologia da informação, de logística, de marketing, olvidando-se da tecnologia jurídica. É uma imprudência que aumenta o risco de crises, problemas, fracassos. 

NOTAS FINAIS

  1. Há o vesting, Contrato que prevê a faculdade de aquisição de participação societária (ações ou quotas), em regra de forma progressiva pelo colaborador ou até mesmo por um terceiro, que emprega seus esforços no desenvolvimento do negócio mediante cumprimento de condições e critérios preestabelecidos. O contrato de vesting visa a fomentar o bom desenvolvimento das empresas, especialmente daqueles que têm um modelo de negócio inovador, como as startups, mediante o reconhecimento da contribuição e dedicação do colaborador ou terceiro. O contrato de trabalho precede ao vesting e este serve para se testar a parceria de trabalho, futuramente a ser convertida em parceria societária.
  1. Como se lê no 5º Caderno de Direito Empresarial Trabalhista editado pela Escola Nacional de Inspeção do Trabalho: stock option é contrato mercantil pelo qual uma empresa outorga aos participantes (empregados, administradores ou prestadores de serviço) o direito de comprar ou subscrever, em uma data futura, ações da companhia ou de sua controladora, por um preço previamente especificado e dentro de um prazo predeterminado, segundo os critérios estabelecidos por ocasião da outorga (art. 168, § 3º, da Lei 6.404/76). Os requisitos de voluntariedade, onerosidade e risco seriam suficientes, segundo o CARF, para descaracterização como mecanismo de remuneração (proc. 10880.734908/2018-43, julgado em 2021).

Tem natureza remuneratória? Há respostas nos dois sentidos:

  • Sim: CARF, processos 9202-005.470 (24/5/2017); 9202-005.968 (26/9/2017) e 9202-006.628 (21/3/2018).
  •  Não: CARF (10880.734908/2018-43, de 2021), TST (RR – 217800-35.2007.5.02.0033), TRF3 (Ap Civ. 02109058.2012.4.03.6100/SP)

Para o Des. Marcus Abraham (ex-PGFN) do TRF2, o plano de stock option não possui o caráter contra prestativo, seu objetivo é atrair e alinhar os interesses dos beneficiários aos interesses dos acionistas e da própria empresa e não está previsto nos §§ do art. 457 da CLT (proc. 0140420-90.2017.4.02. 5101)

  1. Cite-se, por exemplo, (i) AIRR-11496-54.2015.5.01.0064, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 02/07/2021; (ii) RR – 201000-02.2008.5.15.0140 , Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 11/02/2015, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/02/2015; e (iii) AIRR- 85740-33.2009.5.03.0023 , Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 15/12/2010, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/02/2011.

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