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O Contrato de Factoring e o Direito de Regresso do Faturizador contra o Faturizado

André Santa Cruz

André Santa Cruz

25/09/2015

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O presente artigo trata da possibilidade de, em decorrência da celebração de contrato de factoring, o faturizador exercer direito de regresso contra o faturizado, em caso de inadimplemento dos títulos cedidos por este àquele.

O tema é deveras controvertido, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

Pela impossibilidade de exercício de direito de regresso por parte do faturizador, em caso de mero inadimplemento dos títulos cedidos pelo faturizado, manifesta-se, por exemplo, Arnaldo Rizzardo:

[…] no inadimplemento do título, não é dado ao faturizador buscar regresso contra o cedente, mas somente contra o sacado, a não ser que se encontre vício inerente ao negócio subjacente.[1]

Em contrapartida, defendendo posição oposta pode ser citado, entre outros, Luiz Rodrigo Lemmi, que assim opina:

[…] no direito internacional e comparado, há inúmeras manifestações no sentido da possibilidade da conservação desse direito de regresso.

[…] parece a este autor inadmissível entender que um adquirente de créditos, em uma operação de factoring, não pode conservar direito de regresso contra o respectivo alienante.[2]

Na jurisprudência também é possível encontrar posições divergentes a respeito do tema.

Contrariamente à possibilidade de exercício do direito de regresso do faturizador contra o faturizado, em caso de mero inadimplemento dos títulos cedidos, já se manifestaram a Terceira e a Quarta Turmas do STJ:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FOMENTO MERCANTIL. FACTORING. RESPONSABILIDADE DO CEDENTE. 1. Na linha dos últimos precedentes desta Corte o faturizado não pode ser demandado regressivamente pelo pagamento da dívida. 2. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no REsp 1305454/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3.ª Turma, j. 14.08.2012, DJe 04.09.2012).

AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DECLARATÓRIA. NULIDADE DE NOTAS PROMISSÓRIAS. EMPRESA DE FACTORING. REALIZAÇÃO DE EMPRÉSTIMOS E DE DESCONTO DE TÍTULOS COM GARANTIA DE DIREITO DE REGRESSO. IMPOSSIBILIDADE. PRÁTICA PRIVATIVA DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS INTEGRANTES DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO 83 DA SÚMULA/STJ. ADEMAIS, ENTENDIMENTO OBTIDO DA ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. REEXAME DE PROVAS. ÓBICE DO ENUNCIADO 7 DA SÚMULA/STJ. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO IMPROVIDO (AgRg no Ag 1.071.538/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, 3.ª Turma, j. 03.02.2009, DJe 18.02.2009).

COMERCIAL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. FAC-SÍMILE. TEMPESTIVIDADE. FACTORING. DIREITO DE REGRESSO. CLÁUSULA CONTRATUAL. NULIDADE. […] 2. O risco assumido pelo faturizador é inerente à operação de factoring, não podendo o faturizado ser demandado para responder regressivamente, salvo se tiver dado causa ao inadimplemento dos contratos cedidos.[3]3. Recurso especial não provido (REsp 949.360/RN, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4.ª Turma, j. 17.12.2013, DJe 19.03.2014).

Entretanto, a Terceira Turma do STJ já decidiu também em sentido contrário, assegurando o direito de regresso ao faturizador, mesmo em caso de mero inadimplemento dos títulos, quando existente previsão contratual nesse sentido:

CHEQUE. ENDOSSO. FACTORING. RESPONSABILIDADE DA ENDOSSANTE-FATURIZADA PELO PAGAMENTO. – Salvo estipulação em contrário expressa na cártula, a endossante-faturizada garante o pagamento do cheque a endossatária-faturizadora (Lei do Cheque, art. 21) (REsp 820.672/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 3.ª Turma, j. 06.03.2008, DJe 1.º.04.2008).

Parece-me que esse entendimento capitaneado pelo Ministro Humberto Gomes de Barros é o correto, embora tenha sido rechaçado, infelizmente, em julgados posteriores.

O contrato de factoring (hoje mais conhecido no Brasil como fomento mercantil) não possui regulamentação legal específica, embora seja muito utilizado no mercado, exercendo um papel de extrema importância para as pequenas e médias empresas, as quais muitas vezes não têm condições de acesso aos serviços e instrumentos de crédito fornecidos pelas grandes instituições financeiras.

Assim, o contrato de factoring pode ser caracterizado como um contrato atípico misto, por meio do qual o faturizador presta serviços de apoio creditício ao faturizado, bem como adquire dele direitos creditórios materializados em títulos de crédito (cheques e duplicatas, por exemplo). Quando a compra desses direitos creditórios é feita com antecipação de valores ao faturizado, tem-se o conventional factoring. Quando não há tal antecipação de valores, tem-se o maturity factoring.

Em troca dos serviços de apoio creditício que o faturizado recebe do faturizador, este aufere uma remuneração específica, consistente no chamado fator de compra, que é o percentual de deságio aplicado na aquisição dos direitos creditórios do faturizado.

Obviamente, a precificação desse fator de compra dependerá de uma série de circunstâncias, tais como a complexidade dos serviços de administração de crédito prestados, o valor dos direitos creditórios adquiridos ou o risco de inadimplemento dos títulos de crédito cedidos. É justamente quanto a este último aspecto que se relaciona toda a polêmica acerca do exercício de direito de regresso do faturizador contra o faturizado.

Aqueles que repudiam a possibilidade do direito de regresso o fazem sob a alegação de que a sua permissão: (i) transformaria a operação num desconto bancário, atividade típica e privativa de instituições financeiras, e (ii) desnaturaria o factoring, já que a assunção do risco pelo faturizador seria essencial a esse tipo de contrato.

No entanto, tais argumentos, com o devido respeito aos que os sustentam, não possuem plausibilidade jurídica.

O que diferencia o factoring do desconto bancário não é a possibilidade de exercício do direito de regresso em caso de inadimplemento dos títulos cedidos, mas o fato de que neste a instituição financeira opera com recursos captados de terceiros, enquanto naquele o faturizador opera com recursos próprios.

Assim, mesmo que o faturizador tenha assegurado o direito de regresso contra o faturizado em caso de mero inadimplemento dos títulos cedidos, isso, por si só, não significa que esteja exercendo atividade financeira, a qual, segundo expressa previsão legal, só se caracteriza quando há coleta, intermediação ou aplicação de recursos de terceiros no mercado (vide art. 1.º da Lei 7.492/1986 e art. 17 da Lei. 4.595/1964).

A propósito, vale lembrar que a Terceira Seção do STJ se vale desses mesmos fundamentos para distinguir as empresas de factoring das instituições financeiras:

PROCESSUAL PENAL. FACTORING. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. INEXISTÊNCIA. EMPRÉSTIMO A JUROS ABUSIVOS. USURA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. A caracterização do crime previsto no art. 16, da Lei 7.492/1986, exige que as operações irregulares tenham sido realizadas por instituição financeira. 2. As empresas popularmente conhecidas como factoring desempenham atividades de fomento mercantil, de cunho meramente comercial, em que se ajusta a compra de créditos vencíveis, mediante preço certo e ajustado, e com recursos próprios, não podendo ser caracterizadas como instituições financeiras. […] 4. Conflito conhecido para declarar a competência do juízo estadual, o suscitado (CC 98.062/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 3.ª Seção, j. 25.08.2010, DJe 06.092010).

A Quarta Turma do STJ também usa tais argumentos para negar às empresas de factoring a natureza de instituições financeiras, aplicando a elas a limitação de juros prevista na Lei de Usura:

CIVIL. CONTRATO DE FACTORING. JULGAMENTO EXTRA PETITA. EXCLUSÃO DO TEMA ABORDADO DE OFÍCIO. JUROS REMUNERATÓRIOS. LEI DE USURA. INCIDÊNCIA. LIMITAÇÃO. […] II. As empresas de factoring não se enquadram no conceito de instituições financeiras, e por isso os juros remuneratórios estão limitados em 12% ao ano, nos termos da Lei de Usura. III. Recurso especial conhecido e parcialmente provido (REsp 1.048.341/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4.ª Turma, j. 10.02.2009, DJe 09.03.2009).

Evidencia-se, pois, que o simples fato de o faturizador possuir direito de regresso contra o faturizado, em caso de mero inadimplemento dos títulos cedidos, não transforma o factoring numa atividade especulativa privativa de instituições financeiras.[4]

Por outro lado, também não procede o argumento de que a permissão do exercício de direito de regresso, em caso de mero inadimplemento dos títulos cedidos, desnaturaria o contrato de factoring, por ser da sua essência a assunção do risco pelo faturizador.

Conforme já dito, o factoring é um contrato empresarial atípico, celebrado por empresários no legítimo exercício de sua autonomia da vontade, a qual garante às partes a liberdade de contratar (art. 421 do CC/2002) e a liberdade contratual (art. 425 do CC/2002).

Ao celebrar um contrato de factoring, portanto, as partes são absolutamente livres para negociar as cláusulas da avença, sendo totalmente legítimo prever, no instrumento contratual, a possibilidade de exercício do direito de regresso por parte do faturizador contra o faturizado nas situações em que eles entenderem pertinentes.

Ressalte-se que a discussão sobre tal cláusula será permeada, com certeza, pela discussão de outras, tal como a que fixará o preço do fator de compra dos títulos cedidos pelo faturizado. Este pode ter optado por permitir o direito de regresso do faturizador contra ele como forma de barganhar um fator de compra mais baixo ou mesmo a prestação de serviços de administração de crédito mais complexos. Por que negar às partes, que são empresas, tal possibilidade?

Arrisco-me a dizer que a previsão da cláusula de regresso é até salutar, porque obrigará o faturizado a selecionar melhor seus clientes e a fazer uma análise de crédito mais criteriosa antes de aceitar contratar com eles.

O contrato de factoring, repita-se, não tem disciplina legal específica, cabendo aos contratantes, pois, negociar livremente as cláusulas contratuais. Ademais, ainda que o factoring fosse um contrato típico, não competiria ao legislador proibir a contratação da cláusula de regresso. Afinal, nos contratos empresariais se deve evitar o chamado dirigismo contratual – típico das relações contratuais assimétricas, como as de consumo – e privilegiar os princípios da autonomia da vontade das partes e da força obrigatória das avenças. Nesse sentido, cite-se o Enunciado 21 da I Jornada de Direito Comercial, realizada pelo Conselho da Justiça Federal: “nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais”.

Não se pode olvidar também que muitas vezes a transferência dos títulos do faturizado para o faturizador se materializa por meio de endosso, instituto cambiário típico, que tem como característica fundamental a corresponsabilização do endossante pela prestação constante da cártula, nos termos do art. 15 da Lei Uniforme de Genebra: “o endossante, salvo cláusula em contrário, é garante tanto da aceitação como do pagamento da letra”.

Por que o factoring teria o condão de impedir o endosso de produzir seus efeitos naturais? Onde está a regra legal que afasta a produção de efeitos do endosso no contrato de factoring? A resposta é simples: em lugar nenhum. Tal regra não existe!

Caso a transferência dos títulos não se materialize por endosso, também não há impedimento nenhum à estipulação da cláusula de regresso no contrato de factoring, uma vez que o próprio CC/2002 permite a cessão civil de crédito pro solvendo em seu art. 296: “salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor”.

Conclui-se, por conseguinte, inexistir qualquer impedimento a que as partes contratantes de um contrato de factoring pactuem, livremente, a chamada cláusula de regresso, permitindo que o faturizador cobre do faturizado os valores referentes aos títulos cedidos e que não foram adimplidos pelo respectivo devedor principal.

Nesse sentido, destaco que a Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp 992.421/RS, apesar de ter decidido, no caso concreto, pela impossibilidade de exercício do direito de regresso do faturizador contra o faturizado, admitiu que cláusula contratual específica o preveja. Confira-se a ementa do acórdão:

RECURSO ESPECIAL. TÍTULOS DE CRÉDITO. DUPLICATAS SEM CAUSA. PROTESTO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REDUÇÃO.  1. O contrato de factoring convencional é aquele que encerra a seguinte operação: a empresa-cliente transfere, mediante uma venda cujo pagamento dá-se à vista, para a empresa especializada em fomento mercantil, os créditos derivados do exercício da sua atividade empresarial na relação comercial com a sua própria clientela – os sacados, que são os devedores na transação mercantil. 2. Nada obstante os títulos vendidos serem endossados à compradora, não há por que falar em direito de regresso contra o cedente em razão do seguinte: (a) a transferência do título é definitiva, uma vez que feita sob o lastro da compra e venda de bem imobiliário, exonerando-se o endossante/cedente de responder pela satisfação do crédito; e (b) o risco assumido pelo faturizador é inerente à atividade por ele desenvolvida, ressalvada a hipótese de ajustes diversos no contrato firmado entres as partes.[5][…] 4. Recurso especial conhecido em parte e provido (REsp 992.421/RS, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, relator para Acórdão Min. João Otávio de Noronha, 3.ª Turma, j. 21.08.2008, DJe 12.12.2008).

Assim, nos casos em que o direito de regresso do faturizador for pactuado expressamente, bem como naqueles em que os títulos transferidos para o faturizador pelo faturizado forem por este endossados, conforme previsão contratual, é absolutamente legítimo o exercício do direito de regresso daquele contra este, mesmo em caso de mero inadimplemento dos títulos cedidos.

Finalmente, entendo necessário registrar que os Tribunais brasileiros precisam deixar de lado certo preconceito que parecem ter em relação às operações de factoring, não as confundindo com a atividade ilícita de agiotagem. Sobre o assunto, transcrevo trecho do voto do Ministro Humberto Gomes de Barros proferido no REsp 820.672/DF:

Tenho percebido que a jurisprudência tem feito restrições cambiais à atividade de fomento mercantil. Com todo respeito, não entendo o porquê das limitações feitas a tal atividade empresarial, pois a Lei não as faz. Trata-se de negócio lícito, mesmo porque não é proibido. Tal atividade, inclusive, possibilita a sobrevivência de muitas micro e pequenas empresas mediante a negociação imediata de créditos que demorariam certo tempo para ingressarem no caixa das faturizadas-clientes caso não fosse a atividade empresarial das faturizadoras. É verdade que o faturizador compra o título de crédito com abatimento pelo valor de face, mas esse é justamente lucro perseguido nessa empresa (atividade), que não pode ser discriminada pelos Tribunais. Não se pode perder de vista que a livre-iniciativa é fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1.º, IV).

Em suma: o contrato de factoring tem uma importância crucial para o mercado, razão pela qual se deve fortalecê-lo, e não desprestigiá-lo. Assim, a cláusula de regresso, quando pactuada, deve ser reputada válida. E o endosso dos títulos cedidos, quando existente, deve produzir seus efeitos normais.


[1] RIZZARDO, Arnaldo. Factoring. 3. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 122-123.
[2] LEMMI, Luiz Rodrigo. Atividade financeira e factoring no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 80.
[3] Quanto a essa ressalva, confira-se o seguinte excerto do voto condutor do acórdão, proferido pelo Ministro Antonio Carlos Ferreira: “a única exceção apta a permitir o direito de regresso ou de indenização é a hipótese em que a inadimplência é provocada, de alguma forma, pela empresa faturizada, cedente dos títulos”.
[4] Ainda que nesse caso se estivesse permitindo que empresas de factoring exercessem atividade financeira, qual o problema disso? Por que reservar privativamente o exercício de atividade financeira aos bancos? Trata-se de uma clara e inequívoca violação dos princípios da livre-iniciativa e da livre concorrência. Trata-se de mais um cartel criado e mantido pela excessiva e desarrazoada regulação estatal. É por isso que no Brasil os serviços bancários são péssimos, os juros são altíssimos e as lides envolvendo bancos assoberbam os nossos tribunais. Protegidos da concorrência por essa reserva legal do exercício de atividade financeira, os bancos não precisam se submeter à “soberania do consumidor” que existe num ambiente de livre mercado genuíno. Desregulamentar o sistema financeiro permitiria uma maior concorrência nesse setor, e concorrência sempre produz efeitos benéficos para os consumidores. Assim, esse argumento de que empresas de factoring não podem exercer atividade financeira, a qual seria privativa dos bancos, é antiliberal e, consequentemente, só prejudica o público consumidor.
[5] Quanto a esse ponto, destaque-se essa parte do voto condutor do acórdão, proferido pelo Ministro João Otávio de Noronha: “Posso até aceitar que, por não haver legislação que regulamente o contrato de factoring, nele possa ser prevista cláusula que coloque o endossante na posição de garante do título. Mas, além de tal questão atrair a análise de outras, tais como a responsabilidade ser solidária ou subsidiária (em razão da especificidade do contrato), isso não foi assunto cogitado nos presentes autos. Assim, se não há direito de regresso, certo que o protesto da duplicata foi indevido”.

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