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Direito Empresarial: paixão, exercício e função

25/02/2025
Nem tudo é agradável na periferia das ciências. A engenharia de subsistência, de quem se esforça por erguer um teto, por exemplo. Como escreveu Herivelto Martins: “Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura; lá no morro, barracão é bangalô. Lá não existe felicidade de arranha-céu, pois quem mora lá no morro, á vive pertinho do céu”. Gravação original de 1942: Trio de Ouro: a fenomenal Dalva de Oliveira, Herivelto e Nilo Chagas. Engenharia de barracão: baixa tecnologia, mas submissão às regras da física ou não para em pé, não cumpre a função. E há Medicina de periferia, entre tantas outras áreas, inclusive Direito. Tem gente que não gosta, tem medo, quiçá repulsa, mas há até Direito Empresarial de periferia, vivido em empresas de periferia (ou seja, nas margens das Teorias da Administração de Empresas, da Contabilidade, da logística e por aí vai). Não custa gastar algumas linhas com o assunto. Afinal, ela é bem Brasil (e não só Brasil, é claro).
Há sim esse empresariar de baixa organização e perspectivas curtas. A empresas que servem à existência de quem as toca. É o trampo. É o meio de se sustentar: o elementar do comércio, a organização mais elementar. A empresa ínfima. A porta que se abre todo dia, ainda que apesar da fortuna: gente que lutando com a vida, batendo nela, esmurrando-a e, não raro, sendo espancado. Gente que desaba na cama a sua exaustão física e mental, o cansaço escurecendo tudo como a noite, mas, ainda assim, no comércio. Não é incomum ver-se quem improvise num canto da loja, nem sempre com o conforto da ausência dos olhares da freguesia, um refestelo para a marmita de sua refeição. E há quem pronuncie com desdém a palavra empresário, listando-a como uma das formas da vilania. Tolice! A proporção entre bons e maus tende a ser a mesma, não importa o ramo de atuação. Mesmo entre os que se anunciam sacerdotes, desgraçadamente.
Alguns dias são bons, outros nem tanto; muitos mostram-se desesperadores. Contudo, ainda assim, são comerciantes e empresários; não deve haver descriminação; não há valor de alçada para a caracterização da empresa. Dito de outra forma: haverá empresa ainda que os clientes não voem em torno das lojas, como abelhas nas flores de laranjeira. Um comércio que se move na sombra da economia, ao largo dos grandes atores do mercado, é juridicamente relevante. A Distribuidora Barros Ltda, do Tio João, irmão da vovó Jandira, era uma potência por isso: vendia produtos cosméticos para pequenas lojas de todo o interior. O caminhão saia pingando aqui e acolá suas caixas: esse queria dois xampus, dois cremes, uma brilhantina, cinco sabonetes; aquele outro, na cidadezinha à frente, queria… Funcionava na Rua Tenente Garro, em Santa Efigênia (aqui, em Beagá, o nome da santa começa com “e”; o nome da santa paulistana é que principia com “i”; deve ser uma questão de fé). Mas fechou há muito; coisa de décadas; pode até ser que muitas das pequenas empresas a que atendia ainda estejam em funcionamento. Não é o tamanho.
Nossa paixão pelo Direito Empresarial não vem das grandes corporações, embora nos fascinem, é claro. A paixão vem mesmo dessa percepção de que se trata de uma disciplina transformadora. A ela dizem respeito bares, botecos, biroscas; armarinhos, mercadinhos, vendas; butiques, papelarias. E em cada ínfima empresa dessa há uma semente de uma grande corporação; precisa germinar. É raro, mas acontece. Por isso a discriminação é um erro. A Apple foi uma empresa de garagem; a Microsoft também. É uma lástima que os esforços por uma assistência jurídica às comunidades carentes, seja por meio dos serviços de assistência dos cursos de Direito, seja por órgãos estatais e entes do terceiro setor, não contemplem a consultoria e a assessoria jurídica empresarial. É uma grande maldade que, sim, trabalha contra a República. Não são fundamentos do Estado Democrático de Direito a cidadania e o valor social da livre iniciativa (artigo 1º, incisos II e parte final do inciso IV)? Não é objetivo fundamental da República erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III)? Facilitar o acesso à tecnologia jurídico-empresarial seria meio e instrumento de transformação pessoal. Ler Celso Furtado é de muita valia. Veja você: oferecer condições para empresariar não é “coisa de comunista”, mas estímulo capitalista.
Negócio pequeno sai de qualquer maneira, sai por que tem que sair. Em muitos casos, o empresário, nessas bandas, toca os dias no exercício desse artesanato ingrato da sobrevivência; mais do que investimento e lucro, é a vida, o cotidiano ataviado: a empresa como seu canto, a incluir a prosa das horas, os dias mornos em que faltam negócios suficientes. Insistir, nem que de uma forma aborrecida, apesar da vontade de mandar o cliente às favas, sem concessões de delicadeza. Há que empurrar; é o trabalho dos dias; ir como Deus quer e permite, ouve-se. Nem todos esperam os grandes ventos. Essa fé é de poucos, gente disposta a ouvir o silêncio. Ainda outro dia, assistimos à entrevista dos responsáveis por uma grande empresa de entretenimento, milhões de faturamento; começaram como grupo de forró tocando em bailes de bairro. Não se pode deixar de perceber haver tecnologia jurídica nesse caminho: tecnologia de Direito Empresarial, de Direito Societário, de Direito Contratual, de Direitos Autorais, para ficar no mínimo. Há um advogado ou banca de advocacia entre o couvert do boteco e o cachê do grande espetáculo.
Como não se apaixonar pelo Direito Empresarial e pela profissão de advogado empresarialista? Como não perceber que, exercendo o mister jurídico empresarialista, permitimos às pessoas realizarem os seus projetos? Não escrevemos “Estruturação Jurídica de Empresas (Atlas, 2024) pensando só em grandes corporações, mas também nos pequenos negócios. Afinal, são muitas as redes de supermercado cuja semente foi uma pequena mercearia. Vários advogados contam histórias como essas, orgulhosos do que fizeram. Foram parte de histórias de superação, abrindo as estradas do mundo para seus clientes, dando-lhes a chance de serem abrangidos pelo mercado que, enfim, abre seus olhos para eles. Depois da criação da empresa e de um processo regular de licenciamento ambiental e minerário, aquele que foi motorista de velhos caminhões alheio, tornou-se quotista majoritário e administrador de uma lavra de areia. Hoje, são algumas.
– De repente me olham e sabem que estou vivo; dá vontade de gritar.
Tecnologia, inclusive jurídica, faz isso. O que era matéria nas disciplinas, matéria que poderia cair nas provas, questões que poderiam ser formuladas no Exame de Ordem, torna-se o conhecimento que viabiliza empreendimentos: isso é tecnologia. Vias a fazer ou feitas, algumas desfeitas para serem refeitas, todas a falar da possibilidade de tomar lugar no mercado (na praça, já se disse). Um acervo valioso que começa com os manuais e avança por prateleiras e prateleiras de livros que, disponíveis; as bibliotecas escancaram essa tecnologia que permite aos miúdos se tornarem grandes: repetir na indústria e no comércio esse enredo admirável em que o ser humano se apodera do destino que soube lhe pertencer. Deixar de apenas sobreviver para vencer; em muitos casos, gente que andava morta por dentro. Dá mesmo para falar em magia e, sob tal perspectivas, muitos livros se fizeram sucessos de venda (os tais best-sellers) e seus autores foram feitos gurus.
Há quem vá de leve, devagar; há quem estoure; o Direito Empresarial serve a todos e por todos é necessitado. Infelizmente, os que percebem isso e os que o refutam, desprezam ou desconhecem pertencem a tribos diversas. Com uns se conversa sobre projetos de construção; a prosa com os outros gira em torno à remediação. Mas a classe é fecunda: há advogados para todos os perfis; os serviços são múltiplos nesse grande mecanismo que é o mercado. Até porque a adversidade está solta por aí, de tocaia. Se bem que, para isso, existe o Direito Concursal, vale dizer, a recuperação de empresas e a falência. De qualquer sorte, é um erro achar que a empresa explica a si mesma. Ela não o faz. O tino comercial não basta; a competência para executar o(s) objeto(s) da empresa não afasta o fato de que se trata de uma atividade negocial: uma sequência de atos jurídicos que se alonga pelo tempo, alcançando inclusive aqueles que devem ser praticados para a correta dissolução da azienda.
Carecemos de uma pedagogia jurídica para o mercado; melhor seria para a sociedade brasileira como um todo, como temos repetido. Mas, falando em Direito Empresarial, o foco deve ser lançado sobre o mercado. Há incontáveis tópicos que os atores mercadológicos (empresários, investidores/sócios, administradores societários, gerentes etc) não julgam importantes, julgam até que não deveria ser importante, mas que a teoria e a tecnologia jurídicas (tomadas como verso e anverso da mesma moeda) dizem ser importantes. Leis são leis, opiniões são opiniões; tende a não haver muito entre aquelas e essas; a opinião pública sobre o Direito assusta por seus conteúdos, comumente expressões do que foi há muito e, por intervenção legal, já não é. Não são raros, por exemplo, os que falam em concordata e pensam a crise sob aquele instituto e suas bases já superadas. Para entender o Direito é preciso entender o tempo. E, daí, voltamos à nossa ladainha: Advogado não é despesa, é investimento.
Raramente se vence no achismo, embora a sorte possa ajudar. Somente se perdem oportunidades por ignorância, o que não é fenômeno exclusivo do Direito. São inúteis os cochos quando os automóveis substituem as charretes; pior: tornam-se indispensáveis os postos de combustíveis. Postos os computadores, as máquinas de datilografia esfarelam-se em ferrugem, quando não se preservam como as notícias do que se passou. O país precisa aprender o advogado consultor (aquele a quem se consulta; aquele que informa); temos que ensiná-lo. A classe que se preocupa com a correção no jeito em que empresas são administradas; não o profissional de quem se espera a capacidade de tirar coelhos de cartolas para limpar a barra de quem, por não saber, meteu a mão na bola, sem ser goleiro. E não venham com a história de que para morrer basta estar vivo; a precaução nos regala anos, senão décadas. Atores mercantis precisam superar essa adolescência profissional, esse tempo em que a gente ainda acha que sabe tudo; é da idade. Ridículo é seguir assim aos 30, 40 e por aí vai.
Apesar dos números, das cifras, empresários sem advogados assemelham-se. São como prédios sem engenheiro: submetem-se ao mesmo risco de ruína, sejam um cômodo ou superponham andares. Aliás, nas empresas e prédios menores, o amadorismo é potencialmente menor. A probabilidade trágica do amadorismo jurídico ronda atividades negociais com um porte mais relevante. Veja-se que administradores profissionais de grandes corporações se cercam de advogados, consultam-se com eles, fazem-se assessorar para a realização de suas operações. Talvez estejam à frente dessas grandes corporações também por isso: por terem aprendido, na vivência do mercado, que erros jurídicos custam caro demais; podem amputar carreiras; podem arruinar a empresa. É a consciência disso que torna o recurso à advocacia interessante, no mínimo. Melhor será dizer imprescindível; mas um pouco de modéstia hipócrita se recomenda, mesmo nos assuntos de classe.
Empreender sem tecnologia, qualquer delas, é necessidade ou tolice. Desventuradamente, muitos o fazem e deixam a mesma impressão desses aventureiros loucos que se dependuram daqui, saltam dali, embrenham-se acola, aceleram para além do razoável; parecem desafiar a morte ao extremo de a desejar. O ser humano tem disso: vê radiações de heroísmo na imprudência; a lógica e o impulso do jogo: arriscar-se contra a probabilidade de perda. Se bem que nós, fumantes, fazemos o mesmo; mas não é um problema de advocacia, senão de Medicina. Foge ao objeto desta análise. Voltemos aos negócios. A vida não pode ser desperdiçada, ainda que com negligências e imprudências, para não falar das imperícias de quem pode recorrer a peritos. A empresa também não pode. Empresas não deveriam ser desperdiçadas em improvisação jurídica. Não paga a pena, nem a economia. Temos que passar isso adiante. Quem sabe não criamos uma corrente de qualidade jurídica?
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