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Direito Empresarial no país dos malfeitos

Gladston Mamede

Gladston Mamede

25/09/2023

Todo mundo tem opinião. Logo, todo mundo está certo. E todo mundo está errado. Alguns evoluem com o tempo, veem o erro no que achavam certo. Outros se verão sempre certos como, creia-me, há os que duvidam sempre de si. No fim das contas, quase (!) todo mundo acha alguma coisa e, por razão dessa liberalidade de pensar, constitucionalmente garantida, para não falar na Declaração Universal dos Direitos Humanos, resolvi emitir a opinião que se segue. Este parágrafo foi o último a ser escrito e o único a não ser reescrito incontáveis vezes, hesitante que foi a construção do argumento. Muito escrevi, muito reescrevi, muito apaguei; enfim, deixei algo: os parágrafos que se seguem. E com a advertência de que sequer tenho certeza. Penso, logo hesito. 

A vida civilizada é fazedora de ilusões. Estranho começar um ensaio (ou, se preferirem, artigo) de Direito Empresarial dessa maneira, eu sei. Contudo, se pensar bem, poucas afirmações são tão próprias da empresa e do mercado quanto essa (e não só deles, nas sociedades humanas). Quando não estão premidas pelas necessidades mais elementares (num estado de natureza hobbesiano), os seres humanos querem na verdade que lhe contem histórias, que os retirem de um realismo rasteiro que, alfim e ao cabo, reduz a existência a existir: o truísmo seco: o peso da tautologia. A crueldade de perceber que viver é viver, de quando começa até quando acaba, é tamanha que, havendo razão, decidimos negá-la. Queremos nos desprender dessa sobrevivência tão rasa, própria dos irracionais, reduzida ao elementar dos dias. Queremos a ficção; queremos transcender. Não ouviu Comida, canção composta por Arnaldo Antunes, Sérgio Brito e Marcelo Fromer, tocada pelos Titãs? (Jesus não tem dentes no país dos banguelas, WEA, 1987). 

E o mercado, também ele, se oferece para nos tirar do deserto [amargo] da mera existência; ir às compras é uma fuga clássica e, creia-me, enraizada não nos séculos, mas nos milênios. Nas indústrias, nas lojas, nos escritórios, a existência se faz além: maior? melhor? Estão aí questões que merecem investigações outras. Contudo, como disse um desembargador aqui, nas Gerais, “não meterei minha tosca piroga em águas caudalosas onde soçobram mesmo as grandes embarcações”. O objeto de minha análise é a qualidade das relações mercantis em meio a uma floresta de narrações. O mercado se constrói não só em atos e fatos, mas em discurso, por igual. É a produção, a circulação, a prestação, entre outros fatos sociais, econômicos e jurídicos; mas também atribuição de valor e sentido (semiose): axiologia e semiologia (conferir Semiologia do Direito. 3.ed. Atlas, 2009). Não surpreende que seja espaço para embustes, partindo da caricata lábia do vendedor para alcançar o extremo da fraude: o mercado traindo a si mesmo. O mercado não cumprindo sua função social, econômica e jurídica, lesando a sociedade a que serve e de quem se serve.

Escândalos no universo empresarial brasileiro

O noticiário empresarial brasileiro tem renovado páginas de escândalos. Seja na condição de consumidores, seja como investidores (acionistas ou debenturistas ou quotistas de fundos), seja com trabalhadores, muitos se revoltam e, assim, a tenacidade da ideia de empresa e seu papel a bem de todos vai sendo colocado em dúvida. Consumidores acumulam desconfianças, não tanto quanto investidores que, pilhados nos balcões do mercado de valores mobiliários, tomam-no como expressão de um cassino desonesto e, assim, deixam de participar desse estupendo mecanismo de capitalização da atividade produtiva, enfraquecendo a economia nacional. O enfraquecimento dos meios mobiliários de capitalização fortalece a importância dos financiamentos bancários e, consequentemente, amplia o desafio dos juros e dos spreads. Andamos mal. Andamos muito mal. E não vejo muito esforço para mudar o rumo das coisas, não. No geral, achamos que é e deve ser assim mesmo. Isso quando não aceitamos tráficos de influência que levam à uma manutenção da ordem, como está, e que tudo mais vá pro inferno. Tudo e todos, aliás.

Infelizmente, é preciso reconhecer que a cultura jurídico-empresarial brasileira, ressalvadas as perspectivas fiscal e trabalhista (ainda que cada vez mais enfraquecida), confia demais nos empresários, nos sócios e nos administradores. Aliás, na mesma proporção em que desconfia em demasia de pobres, pretos e pardos. Uma das manifestações de nosso racismo estrutural é uma indulgência quase maternal para com malfeitos empresariais (ilícitos de ordem diversa, dos morais ao crime, passando por éticos, civis etc), na mesma toada em que aceitamos ações violentas contra trombadinhas, pivetes e mulas do tráfico. Desminto! – como Riobaldo, de Guimarães Rosa: não posso falar em malfeitos empresariais pois isso nos conduziria, por gramática, à expressão malfeitores empresariais. E isso não é coisa que se diga ou pense ou sequer se admita no Brasil. Malfeitores, por aqui, ainda têm espectro lombrosiano (e quem não leu o excelente O Crime do Restaurante Chinês, de Boris Fausto, precisa fazê-lo: trabalho de excelente historiografia, embora com um perfume de romance policial dos bons).

Estou convencido de que a sociedade brasileira prefere vivenciar uma estrutura de significados e valores (semiologia e axiologia) que tem por referência gradientes sociais e etnológicos. Não raro, isso se dá de forma descarada e, portanto, pequena e mesquinha. Essa cultura nos impede de compreender nos múltiplos desvios de conduta, quais são mais nocivos para si, quais não. Concretizamos nossos juízos (e julgamentos) com um olhar – ou perspectiva – medieval: com um peso para os nobres, outro para a plebe, um peso para os senhores da casa grande, outro para a senzala (sua benção, Gilberto Freire). Compreendemos e assimilamos atos ilícitos que geram prejuízos elevadíssimos, somos intransigentes com pequenos furtos. Em suma, mantemos uma engrenagem em que as massas são submetidas à indignidade e, nos salões, recepcionam-se titulares de fortunas alcançadas ou mantidas por meio de práticas imorais ou, mais, desconformes à lei, senão criminosas (embora sem sentença transitada em julgado). Em meio a isso, contemplamos os incontáveis problemas experimentados pela nossa sociedade e não vemos saída. Não haverá enquanto mantivermos essa ideologia e seus parâmetros, distribuindo brandura e rigor a partir do ventre e não da razão. Precisamos parar de chancelar o inaceitável, na mesma proporção em que precisamos compreender o justificável. Em suma, este é um ensaio plantado na utopia.

Como é possível escrever sobre Direito Empresarial saindo de um horizonte nublado como esse? Fácil: não sendo aristocrático ou oligárquico e reconhecendo que essas posturas são medievais e, portanto, incompatíveis com um ambiente de capitalismo responsável. A crítica se faz justo em defesa do mercado e de sua higidez, se faz pela percepção de que alguns atores se aproveitam do sistema atual e o enfraquecem: prejudicam a coletividade, em benefício ilegítimo de alguns. Não avançamos na direção de demandar e desenvolver a ideia de deveres que correspondam à faculdade de empresariar (de exercício da livre iniciativa econômica e jurídica). E as normas positivadas não se refletem numa efetividade que proteja à sociedade e ao mercado brasileiros. Essencialmente, se não se compreende o direito de empresariar com um correspondente dever de bem-empresariar, cria-se uma distorção e, no noticiário econômico, essa distorção revela seus efeitos perversos, espalhando prejuízos e corroendo mais e mais o mercado. Não há uma ênfase nos deveres que são inerentes empresa. Aliás, a expressão deve mesmo assustar a alguns nunca a leram ou raramente o fizeram. Pois é: há direitos de empresa, mas há deveres de empresa. E há, mesmo, ilícitos praticados por meio de empresa e que devem – ou deveriam – conduzir à aplicação das respectivas sanções. 

O olhar que compreende a empresa deve ser longo: o agir empresarial traduz tanto faculdades, quanto obrigações, entre gerais e específicas. Ser empresário ou sócio ou administrador ou gestor empresarial não é atributo de vaidade, não é condição de leviandade, não é salvo-conduto para fazer – ou deixar de fazer – o que dá na telha. O princípio da livre-iniciativa não tem efeitos milagrosos, permitindo ao beneficiário julgar-se beneficiário de isenções e proteções despropositadas. E isso deveria alcançar mesmo a compreensão do limite de responsabilidade subsidiária pelas obrigações sociais, figura que, na melhor compreensão, protege contra os riscos do negócio e do mercado, não contra atos (ilícitos) pessoais, ainda que no exercício da empresa. Tocar uma empresa implica responsabilidade, sim. Justo por isso, é preciso atenção ao exercício lícito dos negócios, atenção aos processos internos, adoção de mecanismos de bom governo societário, atenção a posturas de respeito aos direitos dos trabalhadores, consumidores, meio- ambiente, entre outros.  

Essa abordagem é incomum. Bem incomum. Mas não é original, nem nova. A necessidade de integridade no agir empresarial é discurso e análise que já circulam a algum tempo, procurando chamar atenção para a necessidade não só de mudanças legais, mas também exortando os operadores do Direito, nomeadamente juízes e árbitros, a uma interpretação das normas já positivadas em coerência com um olhar que contrabalanceia direitos e deveres no agir empresarial. Não se pode admitir o manejo das empresas com intuito (dolo) de lesar a terceiros; deve-se passar a investigar com acuro o grau de responsabilidade daqueles que as manejam com excesso de negligência ou de imprudência, lesando a terceiros por não se empenharem, como é seu dever, na correta condução dos negócios empresariais. Deve-se responsabilizar aqueles que abusam do direito de empresariar e, com isso, lesam o mercado, a sociedade, a República.

Não há como negar que a interpretação atual tem raízes fundas numa compreensão de sociedade e de atuação individual em sociedade que nos é própria, que nos é histórica; a hermenêutica tem suas implicações sociológicas e não são poucas ou fracas. O Direito Penal e sua prática são uma prova fácil disso, mas não vamos por esse lado. No plano do Direito Empresarial e das demais disciplinas implicadas pela empresa e sua atuação, há uma tendência de dar atenção à continuidade da atividade que, pretende-se, gera empregos, renda, impostos. A tese é essa. Ainda que haja prejuízo em direitos trabalhistas, insolvência fiscal e afetação de capitais alheios, com maior ênfase nas situações de valores mobiliários (ações, debêntures, quotas de fundos etc). Pior: julgando estar protegendo à empresa, habitualmente está se protegendo ao empresário e à sociedade empresária (e seus sócios): liberalismo dos lucros (apropriáveis pelos titulares da empresa) e socialização dos prejuízos. E não são poucos os casos de quem abusou desse quadro. Isso a incluir situações de deferimento de recuperação de empresas após a prática de atos ilícitos (contra o meio ambiente, contra consumidores, contra o mercado etc); melhor seria alienar todo o fundo de comércio para que outros, de forma mais adequada, dessem continuidade à empresa e cumprissem sua função social. 

O que temos, atualmente, é um cenário no qual impera uma leitura particularmente estranha dos princípios jurídicos. E, em muitos casos, prejuízos assustadores ao meio-ambiente, a consumidores e trabalhadores e investidores de capital (como debenturistas). Isso para não falar em todo o mercado de capitais – e não estou me referindo ao mercado financeiro (bancos e financeiras): estou me referindo ao mercado de valores mobiliários, seja por meio de crédito privado, como debêntures, seja por meio de crédito estruturado (fundos de direitos creditórios, certificados de recebíveis etc). E, em função de atos desconformes praticados por alguns atores do mercado, alteram-se as análises de risco e, assim, penalizam-se todos os demais atores; há uma elevação do custo de captação de capitais não-bancários, minimizando os benefícios da emissão de ações, debêntures e outros títulos. É isso a isso o que temos assistido no Brasil. Vivemos um Mercado de Valores Mobiliários ainda fraco, aquém do que poderia ser. E um mercado que vai piorando, como mostram os números recentes em que o spread demandado de debêntures do setor varejista aumenta. 

Talvez seja a hora de caminharmos na direção do mundo capitalista mais desenvolvido e passarmos a valorizar a honestidade tanto quanto a sagacidade. Talvez, seja preciso mostrar que, efetivamente, crimes praticados no âmbito do mercado levam a condenações e ao cumprimento de penas. Talvez o faro dos atores para oportunidades deva se calibrar com o respeito às leis e aos outros. Talvez não sejam os últimos escândalos. Já passamos por tantos, não é mesmo? Não foi outro dia, mas há quase 30 anos, 1995, que se descobriu a fraude no Banco Nacional S/A, levando à intervenção e lesando milhares de acionistas. Não aprendemos. E queremos ser um país desenvolvido. Queremos ser primeiro mundo. Queremos ter boa classificação nas agências de risco. Sei não. Para mim, querer deve ser o passo anterior do fazer. E seguimos sendo um valhacouto de manganões e trapincolas. 

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