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Construções Jurídicas Planejadas

Gladston Mamede
Gladston Mamede

25/10/2024

Alguém disse que a função dos advogados se desempenhava no fórum, na defesa de partes em conflito. E não se pensou mais noutra coisa. Escrevíamos em couro (pergaminho), papiros etc e tal, passamos a escrever em papel, publicamos livros por tipografia e, enfim, offset. Depois se disse que nem era preciso base alguma e, enfim, criou-se o mercado dos e-livros, vale dizer, dos livros eletrônicos (fala-se e-book porque padecemos, os brasileiros, de complexo de vira-latas, como disse Nelson Rodrigues; então, o que está em inglês é chique no último; mas o e-mail é e-mensagem e poderia ser até e-meio; o vernáculo o merecia – e, por aqui, não linkamos, não startamos e call é chamada que, de resto, pode ser coletiva). O futuro se fez inúmeras vezes e ainda há quem pense que o advogado é um galo de rinha e que o Direito, ele próprio, não passa da expressão do contraditório. Quem não se lembra da última ação em que foi parte, não teria vivido o Direito. 

É sério? Quem não tem uma ação ao menos, não vive o Direito? Cáspite! Mesmo? Não! De jeito maneira! Há Direito no conflito, claro. Mas há ainda mais direito na vivência regular da norma, no encontro, no acordo, no contrato. E vamos dizer mais: há vivência do Direito e pode até haver melhor vivência do Direito: construir com excelência, arquitetando melhores estruturas, inovando. Exemplos? Claro! Novidades empresariais e jurídicas que enriqueceram algumas pessoas recentemente, como os as plataformas eletrônicas de venda (marketplaces) ou aplicativos de celular para compartilhamento de transporte, como o Uber. Duas belíssimas construções jurídicas, planejadas, como antes o shopping center e os contratos de franquia empresarial.

Mas fizeram isso conosco: disseram que advogados existem para conflitos. Pode colocar o tema na próxima sessão de terapia ou mentoria ou prosa de boteco: fizeram isso conosco! Fomos educados, pelas faculdades, para litigar, ouvindo exemplos que estão quase sempre ligados a processos (litígios) e decisões judiciais. Dessa maneira, como estaríamos, os bacharéis em Direito, preparados para um cenário no qual muitas empresas procuram advogados não para rinhas, mas para construir soluções e, mais do que isso, na expectativa de que sejam apontadas as melhores soluções? Estamos superando a sociedade machista, denunciando o racismo estrutural, lutando por diversidade em todos os cantos; começamos a valorizar o trabalho doméstico como trabalho (que é, que tem valor, que deve ser respeitado, contabilizado, partilhado); chegamos a investir contra a reificação (ou coisificação, como preferem alguns) cruel dos animais. Será que não conseguiremos separar Direito e conflito? Será que conseguiremos vivenciar Direito e harmonia? Será que o trabalho do advogado pode ser apontar o caminho certo, o caminho melhor (em termos jurídicos)? Conseguiremos não ser profissionais de rinha, mas de proposição e construção? É possível? 

Claro que sim. O ser humano se molda; adaptação e evolução lhes são inerentes. Pode ser um desafio, mas vale a pena. Não é preciso seguir a manada. Não é inevitável torturar-se no que tanto frustra, num jogo em que se sentir ganhador parece difícil. A advocacia é, no geral, uma atividade retórica, no qual o profissional, ao assumir o patronato de uma das partes, assume o seu ponto de vista e sua pretensão. É seu dever buscar uma decisão favorável ao cliente, diz o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, logo de cara. E, assim, criou-se uma imagem de paralolagens e desfaçatez, o que o cidadão só compreende quando se trata da sua defesa ou dos seus: aí é justificável. Para outro, é lenga-lenga e vergonha. Sempre há notícias sobre o fato de a advocacia ser uma das profissões pouco confiáveis. Mas, pense: de qual tipo de advogado estamos falando? Qual é esse estereótipo que provoca tanta desconfiança? Qual é sua atuação? 

Um dos casos narrados no “Manual de Direito Empresarial” (18ed. Editora Atlas, 2024), foi a criação da Broto S.A. A proposta do manual é trazer casos para facilitar o aprendizado; na hipótese, um exemplo de metamorfose societária. A companhia foi criada para tocar uma plataforma digital de seguros, com metade do capital subscrito pelo Banco do Brasil S.A. e outra metade pela Brasilseg Companhia d Seguros. Um negócio de milhões, sem conflito. Uma construção jurídica planejada. Os administradores dessas corporações confiaram no trabalho de seus advogados. E muito. Mas esse tipo de advogado não é tão comum assim; quem não é do Direito conhece poucos desses. Há um problema aí. Há um déficit. E a formação desse déficit é histórica. Vamos para as faculdades de Direito, criadas há 200 anos: 1824, por ato de Dom Pedro I. Vamos dar uma olhadinha no ensino jurídico e seu papel neste estado das coisas.

Hoje, são raras as faculdades em que se pede para um aluno de Direito redigir um contrato. Mas não se sai da faculdade sem redigir [muitas] petições, razões de recurso; há quem faça mais juris simulados que estatutos sociais. Alguém conhece um caso de aluno que, isoladamente ou em grupo, foi instado a redigir um estatuto social de uma companhia de capital fechado? Como é, então, que o bacharel, enfim aprovado no Exame de Ordem, irá trabalhar com  estruturação jurídica de empresas?  Como dialogará com uma família e avaliará tratar-se, ou não, de uma situação de recomenda a constituição de uma holding familiar? Todos queremos o desenvolvimento do Brasil; mas como haverá desenvolvimento sem uma legião de advogados capacitados a constituir sociedades simples ou empresárias, regular ajustes parassociais, disciplinar sua atuação? 

Os fóruns estão abarrotados e é uma tortura desumana esperar por uma audiência? Um despacho leva meses para sair? Uma ação se arrasta por anos e, quando sentenciada, começa a odisseia dos recursos? Eis a expressão cruel da cultura do litígio: Direito é conflito. Então, redija, espere no corredor por uma tarde quente e sufocante inteira, responda a trocentos telefonemas repetindo que o juiz ainda não despachou, o recurso ainda não subiu, o alvará ainda não saiu… fomos educados para isso: para a lide. Então, é preciso robustez para encarar tais terrenos de forma durável. O estresse cotidiano já fez com que a advocacia fosse listada como uma das profissões menos saudáveis, nomeadamente por seus impactos cardiológicos, estresse, depressão e crises de ansiedade. Talvez seja o suficiente para justificar ao menos o esforço de mudança: migrar para uma advocacia não-contenciosa, evoluir para trabalhar com a assessoria jurídica: construir e não brigar. 

Vamos dar um exemplo real desse presente possível do qual estamos falando. No mercado imobiliário, lista-se como caso de sucesso uma operação essencialmente jurídica: a Direcional Engenharia S.A. criou uma financeira própria (anunciou-se ao mercado como sendo uma proptech), a Direto Soluções Financeiras e de Tecnologia S.A., para financiar a alienação de seus imóveis, em operações garantidas pelo imóvel. A iniciativa envolveu um sócio, a XP Incorporation, que subscreveu 49,9% das ações. Esse movimento jurídico teve efeitos que foram celebrados pelo mercado; a receita bruta chegou a R$ 2,28 bilhões em 2022. Sim, um sucesso empresarial; mas, veja: resultado de um movimento jurídico. Resultado de estruturação jurídica de empresas. E não pense tratar-se de um movimento simples: por trás desses fatos estão dezenas de reuniões, negociações, redações de documentos, compromissos, contratos etc. Tecnologia jurídica de ponta, resultado do conhecimento e do trabalho de advogados especializados. Um mercado advocatício que já existe. Outro exemplo de evolução com forte expressão jurídica? A Petlove ou, para sermos mais exatos, a Petsupermarket Comércio de Produtos para Animais S.A. emprenhou-se por comércio digital e, enfim, por um programa de assinaturas para o fornecimento de seus produtos. São caminhos que demandam estruturação jurídica específica. E ainda mais quando a empresa optou por algumas fusões e incorporações.

 – E como é que eu entro? – perguntam-nos.

Não há uma estrada de tijolos amarelos, como a L. Franklin Baum ofereceu a Dorothy Gale para chegar à Cidade das Esmeraldas, em O Mágico de Oz. Ela vivia nas paisagens cinzas do Kansas, órfã; morava com a tia Emy, o tio Henry e Totó. Então, veio tornado, arrancou a casa, a menina e o cão dentro, largando-os no mundo colorido de Oz (e bem em cima da Bruxa do Leste, matando-a). Por vezes é assim mesmo: o resultado de um tornado inesperado que chega, arranca a casa do lugar e a coloca noutro, sendo virtude reconhecer a oportunidade, agarrá-la, caminhar pela estrada amarela, encontrar parceiros, refazer a vida. Tolice? Segundo Gustavo Franco, no prefácio do livro (Rio de Janeiro: Zahar, 2013), a história de O Mágico de Oz é, na verdade, uma alegoria sobre política monetária. Por essa perspectiva, o cenário descrito está mais próximo de economistas, empresários, advogados, do que de crianças. Vira e mexe, são tornados que tanto temíamos, são tempestades que tanto sofremos, são eventos com jeitão de adversos que nos arrancam das paisagens cinzas e quase mortas para nos colocar em terras de Oz. Mas vamos largar por aqui; o fim não é de mentoria ou coach. O alvo é o Direito, ainda que por uma perspectiva dinâmica, como proposto em “Estruturação Jurídica de Empresas” (Editora Atlas, 2024). De qualquer sorte, para quem crê, o alinhamento dos astros certos ajuda um pouco [risos].

Há várias sendas que podem permitir essa evolução: tirar um advogado dos corredores do Judiciário e lhe dar a oportunidade de trabalhar em equipes de assessoria empresarial, redigindo contratos, atos societários, participando de negociações. Seria tolo pretender lista-los exaustivamente; pode-se exemplificar, claro. A começar pelo fato de que há escritórios que simplesmente anunciam vagas para especialistas em Direito Empresarial e Societário e, assim, cuida-se de um caminho comum: preparar-se, organizar o currículo, ingressar e mostrar serviço. Mas há tantas outras histórias. Não-raro, é uma simples questão de estar na hora exata e no lugar certo: o acaso, a fortuna. A alea anunciada por Júlio César às margens do Rio Rubicão. Perceber uma oportunidade e mostrar capacidade para responder ao desafio. E oportunidade pode aparecer justo com um cliente de contencioso a quem se demonstre o benefício de prevenir, em lugar de remediar. São muitos os que obtiveram essa evolução dentro de seus próprios escritórios: educar a clientela para o planejamento jurídico, mostrar as vantagens da consultoria e da assessoria, não só para evitar problemas, mas para optar pelas melhores estratégias entre opções jurídicas que nem sempre são conhecidas por empresários, investidores e gestores.

De qualquer sorte, qualificação é o que faz a diferença. Domínio da matéria (Direito Empresarial, Direito Societário, Direito Obrigacional e Contratual) é essencial. Sem estudo, sem muita leitura, não se vai a lugar algum na melhor advocacia não-contenciosa: não dá para se escorar na verborragia, na facúndia. Não é um agir advocatício retórico, mas construtivo, propositivo, reiteramos. Isso implica capacidade de ler cenários, de ouvir opiniões e ideias (por vezes conflitantes, o que não é raro no ambiente societário), de se interessar pelas métricas operacionais (ainda que possam ser informações estranhas ao poder de normatização que é próprio do agir advocatício), compreender o estágio em que a corporação está (para escolher e dosar as intervenções possíveis), além de ter fé no poder da organização bem-feita, da norma bem escrita. É uma advocacia de auxílio, altamente tecnológica (tecnologia jurídica, destacamos), que deve se alinhar com outras forças da corporação no esforço comum de criar melhores momentos para o(s) negócio(s).

Na composição e redação de suas proposições, é recomendável sempre avaliar o impacto de uma regra – disposta no ato constitutivo, em acordo de sócios ou em plataformas normativas laterais – sobre a sociedade empresária (o mesmo ocorre com as simples) e a atividade negocial. Boas estruturações empresariais podem impactar positivamente o modelo de negócio, seus resultados financeiros (resultado de redução de custos pela economia de energia, diminuição de desperdícios, reciclagem, maior controle, mensuração e registro detalhado do que se passa ao longo da cadeia etc), sua cultura interna e ambiente de trabalho. Não é só. Esses advogados e escritórios precisam mesmo investir em pesquisa, em desenvolvimento tecnológico, e isso não é tão extraordinário: livros, artigos, palestras, cursos, congressos acolhem bem tais investimentos e oferecem retornos que vão do ordinário (a mera atualização) ao extraordinário: a capacidade de atuar em temas em que há poucos especialistas.

Não é um caminho possível. É um caminho real. Boas empresas pressupõem boa estruturação jurídica. E isso quem faz são advogados.


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