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A Floresta Tenebrosa e a Fraude na Partilha de Bens

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A Floresta Tenebrosa e a Fraude na Partilha de Bens

DIREITO EMPRESARIAL

FRAUDE NA PARTILHA DE BENS

Gladston Mamede
Gladston Mamede

25/11/2024

Antes de dar conta de que o relacionamento se esfriou por completo, a vida econômico-financeira da parelha tinha um aspecto. Havia uma empresa ou grupo de empresas vistoso, lucrativo, o que permitia à família manter um padrão de vida elevado. Quando a relação azedou e chegou-se ao divórcio ou, em se tratando de união estável, à dissolução, tudo tinha um aspecto diferente. Na hora da partilha, parece que a empresa não vale nada. Operações regulares (ou, ao menos, aparentemente regulares) avolumam-se e dificultam compreender o que houve. Não se acha, não se identifica, não se delineia. Se houve desvios, seu caminho é difícil de identificar em meio a uma floresta fechada, sob densa neblina, em que a gente se perde em meio a incontáveis relações jurídicas que podem traduzir qualquer coisa. Árvores? Não! CNPJ’s [risos!].

Já ouviu falar em Robin Hood? Robin dos Bosques, como se diz em Portugal; Robin De Locksley. Viveria na Inglaterra e seria fiel ao Rei Ricardo (o Coração de Leão),  não se conformando com o reinado ilegítimo de João. Rebelou-se e passou a ser perseguido. O que fez para esconder a si e aos seus homens? Meteu-se na floresta de Sherwood. Ele, Frei Tuck, João Pequeno, Allan Dale, Will Scarlet e outros. É dificílimo encontrar algo ou alguém em florestas tenebrosas. Bruxas lá se escondem e, se João não marcasse o caminho com pedras, ele e Maria estariam lascados. Com pedaços de pão não adianta: os pássaros os comem. Quer mais? Se não fosse um príncipe muito determinado, Aurora ainda estaria por lá, bela e adormecida no castelo de seus pais, ocultado por uma floresta. Ela e todos os habitantes da Corte (nem todos belos, mas todos também adormecidos). Claro, há outras versões para cada uma dessas histórias. Sempre há. Mas, em todas elas, a percepção de que florestas densas podem esconder pessoas e coisas. Como já se disse, é de perder a tramontana. Hoje, prefere-se perder a cabeça. Dá igual.

Há quem crie florestas tenebrosas (chamem-nas de assombradas, selvagens etc) para se esconder ou esconder bens, fraudando relações obrigacionais e lesando credores (trabalhadores, fisco, fornecedores, parceiros), sócios, para além de situações de comunhão, sobre as quais nos debruçamos em “Divórcio, Dissolução e Fraude à Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias” (Editora Atlas, 5.ed. 2022). Criam-nas sem remorsos. Florestas densas foram, são e serão construídas como proteção, quase nunca legítima, proba; esconderijos para quem teme ser encontrado. Devedores magoados por se verem cobrados, padecendo as dores de ter que pagar ou, quiçá, de ter que entregar aos outros (ou os ver obter) aquilho que é de seus direitos: o ex-conjuge, o sócio etc. Como já dissemos, há gente para quem dever não é tão doloroso quanto quitar. Aferram-se à sacralidade do ativo (é meu!) e exorcizam toda e qualquer compreensão de passivo. Sem vergonha na cara. Pior: há profissionais que os auxiliam. Há profissionais que os devem combater. Mas como? Vamos dar alguns exemplos dessas florestas de CNPJ’s.

Não é coisa nova. Confundir serve à conquista; mas serve não menos à defesa. Talvez ainda melhor. A metáfora da floresta fechada na qual é difícil se localizar traduz, no plano das relações patrimoniais, emaranhados diversos. Mesmo no plano do Direito Público se vê isso: normas que fazem menção a normas que fazem menção às normas e, em meio a tudo isso, perde-se o cidadão. É a grande crítica feita ao Direito Tributário e sua realidade no Brasil. Mas vai além e, não-raro, os efeitos visados por tais novelos embolados é pouco republicano: numa das pontas, ou entre os nós, alguém sai ganhando o que não deveria. Dizem que são muitos os casos mas fogem à finalidade deste ensaio. No plano do Direito Privado, embaraçam-se atos, contratos, pessoas. Florestas jurídicas que são urdidas a partir do uso (nem sempre regular) de figuras, institutos e ferramentas do Direito. É preciso ter essa noção para, então, olhar com outros olhos e, enfim, descobrir o padrão. E quando a fórmula é percebida, os caminhos ficam claros e é mais provável que o embuste seja desmontado.

O mais comum são as tenebrosas florestas de operações com aparência de regularidade, em meio às quais se encartam operações regulares com fins irregulares. Um exemplo claro foi recentemente noticiado: os resultados de uma empresa de varejo seriam artificialmente sustentados por meio da manutenção de um rigor na cobrança dos créditos que lhe eram devidos, contrastando com um procedimento inverso no pagamento dos débitos: sistematicamente foram sendo adiados, renegociados e, enfim, reescriturados. Isso criou uma distorção nos balanços patrimoniais que permitiu drenar valores líquidos (dinheiro) por meio da distribuição de lucros e prêmios. Quando a equação se tornou insustentável, o caminho dos monstros da floresta se fez perceber. Daí chegar-se a certa situação que a zomba popular traduz como fenômeno nacional: empresas pobres (quebradas) de donos ricos. A prática pode visar meeiros, como dito em “Divórcio, Dissolução e Fraude à Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias” (Editora Atlas, 5.ed. 2022), mas igualmente sócios, credores (incluindo o Fisco) etc. 

Somem-se as florestas tenebrosas de CNPJ’s. Florestas contratuais exigem mais maestria e, assim, são mais raras. E, claro, quem sabe, combina pessoas e contratos para fazer um estrago maior. Mas vamos lá: pessoas e bens podem aparecer ou desaparecer numa névoa densa de CNPJ’s. A começar pelo trabalho desempenhado por fantasmas, para manter a brincadeira: é preciso conferir todos os números pois 01.234.567/001-89 pode não corresponder a ninguém; e pode ser um entre tantos outros. Pode se tratar de um número baixado: existe o número, não mais a pessoa. Curupiras, sasquatchs e afins. Em meio à floresta, quem irá conferir todos os números? E a situação fica ainda mais interessante quando se lembra de uma alternativa complementar: o uso de CNPJ’s existentes, embora à revelia de seus titulares. Numa investigação da qual tivemos notícia, a fraude se descobriu quando se percebeu ser improvável que o negócio fosse feito com essa ou aquela pessoa. Ao ser contatada, os administradores afirmaram desconhecer a operação, ou seja, aferiu-se tratar-se de uma operação fria. E, aplicando esse padrão para rever os registros, descobriram-se várias outras operações similares e, por meio delas, um rombo enorme.

Não é preciso tal primarismo. O fato de serem existentes e regulares os CNPJ’s e as pessoas constantes dos registros não ameniza o risco de irregularidades. Estruturas de CNPJ’s existentes podem ser usadas para confundir; permitem que sejam registradas operações que têm certa aparência, mas, em fato, tem finalidade diversa, o que se faz pela influência que se tem sobre as diversas pessoas jurídicas. É quanto basta, por exemplo, para que se estabeleçam esquemas de circulação simulada de valores, o que pode dar-se tanto por meio de pagamentos, quanto por meio de créditos que não serão recebidos, prescreverão, serão renegociados com abatimentos, entre situações similares. Isso para não falar de formas intermediárias, como o giro de valores exagerados ou minimizados (vender barato, comprar caro; superfaturar ou subfaturar), fictícios, indevidos, entre outras formas de descaracterização. A demonstração da finalidade fraudatória só é possível por meio da aferição de padrões diversos: um ordinário (o comum corporativo) e um excepcional (a operação urdida). Não é usual adotar aquela postura; ela se verifica justo nas operações que poderiam ser gizadas como “estranhas” e, salvo demonstração inequívoca em contrário, atestam-se como simulações ilícitas.

Há um caso interessante que veio a nosso conhecimento. Em ação arbitral, um sócio minoritário alegou que a administração societária, sob influência do controlador, realizava um drible ilícito. Encaixes de valores mais vultosos, ou seja, entrada maiores de dinheiro, foram seguidos de operações quase concomitantes com outras sociedades e, por meio delas, houve desencaixe imediato, prejudicando a liquidez da azienda, seus resultados e, mais do que isso, sua capacidade de fazer frente às obrigações. Essa prática teria sido verificada com encaixes de natureza diversa, a incluir uma  capitalização (que foi apontada como simulada), financiamento e recebimento de pagamentos. Em caso similar havido noutra sociedade, a acusação fora de que fórmula similar tinha por finalidade blindar ativos líquidos (dinheiro no caixa), dificultando execuções, nomeadamente em face da opção de manter uma atividade negocial alavancada, ou seja, uma empresa altamente endividada; no geral, dívidas não vencidas e que eram roladas para perpetuação de um esquema lesivo a terceiros.

Nos dois casos, a finalidade real das operações secundárias, feitas com outras sociedades (a compor um esquema? um sistema de fato? uma estrutura que sustentasse concepções falsas?) seria drenar os ativos líquidos (dinheiro), colocando-os fora do alcance de terceiros (sócios e credores, no caso; poderia ser um meeiro, por certo). Veja que há casos em que as operações secundárias fazem-se com sociedades coligadas, sejam controladas ou não (mera participação societária), inclusive sob a forma de aporte de capital, sempre com a finalidade de criar uma intermediação entre o terceiro interessado e o acesso a ativos líquidos, dificultando a execução. Em muitos casos, o número de operações entre as sociedades, coligadas ou não, cria uma dificuldade. Entre diversas operações regulares, encartam-se negócios urdidos para desvio de ativos. E o fundamental é entender o esquema pois, assim, cai como um castelo de cartas.

Há uma variante curiosa desse estratagema. São estruturas, procedimentos e comportamentos por meio dos quais se concretiza estratégias de caotização corporativa, com a finalidade de ter sem aparentar ter. A riqueza está ali, mas não se percebe. Quem analisa o patrimônio da sociedade ou, mesmo, das sociedades coligadas, haja controle ou não, pode se perguntar: o que eles ganham com isso? como eles ganham com isso? etc. O cenário jurídico-contábil parece normal, congruente. Não se percebem furos. Mas não se detecta o sobrevalor (oculto) ou a vantagem. O sistema assenta-se sobre uma fórmula que é internamente conhecida e aplicada. Assim, implementa-se um modo de remisturar que esconde uma coerência em meio à confusão. É preciso deter (ou desvendar) a equação para compreender o que se passa, qual a finalidade, a justificação, o método. Só assim consegue-se efetivamente ver o que se passa. E só uma postura judiciária compromissada (com o dever de dar a cada um o que é seu) permitirá desmontar essa máquina de transferência de valores que permite acumular sem dar a pertencer e, assim, sem permitir alcançar, executar.

Essa tendência de fruir sem ter espalha-se e cria dificuldade para os profissionais que trabalham pela correta partilha dos ativos e pelos direitos e interesses de credores, sócios etc. O domínio informal serve ao biltre. Não está em seu nome, mas ele frui. O mago da floresta tenebrosa, com o perdão do chiste, anuncia: não importa o que tenho, mas o que gasto e posso gastar. Ele tem o acesso, o gozo, não a titularidade. Basta-lhe o proveito (embora, em muitos casos, os meios para recuperar a titularidade está bem guardado na gaveta). E isso pode ser feito com sofisticação ou, em muitos casos, com ousadia, vale dizer, com cara de pau: pagamentos com finalidade inadequada: despesas pessoais podem ser assumidas pelas empresas, cada hora de um canto, não raro prejudicando-as por igual: à empresa, aos sócios, ao cônjuge ou convivente, na hipótese de partilha). Em outros casos, embora o pagamento não tenha finalidade estritamente pessoal, isto é, a pessoa do fraudador, serve a um terceiro: compra-se ou contrata-se a prestação de serviço, pagando o preço correspondente, quando o beneficiário é outrem: uma sociedade diversa (incluindo empresas-espelho). E o manejo do cartão-corporativo é meio facilitador para tanto.Se há mais? Claro que há. Sempre há. Fraudes estão sempre no estágio da geração: o olhar aldabrão está marcado pelo ardil: ele vê o mundo por esse viés pervetido: como posso tirar vantagens sem que me percebam? Ele conta com a estagnação dos que não velam ou, se o fazem, olham para certos pontos; há que encontrar vias noutros pontos, em busca de um engodo diverso, um encenar diferente e, assim, que não se perceba. Quem mais sabe como se fez, mais se gabarita a matar tais charadas e, enfim, compreender a estratégia que se usou para partir de um ponto, no qual bens compunham o patrimônio da pessoa, para o ponto em que, em meio a uma barafunda criada para dificultar a percepção dos atos fraudulentos, nada mais se encontra, como procuramos narrar em “Divórcio, Dissolução e Fraude à Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias” (Editora Atlas, 5.ed. 2022).

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