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A conta fecha? – mais sobre engenharia de capital
25/09/2024
Temos chamado atenção para o tema engenharia de capital como um dos momentos próprios para a estruturação jurídica de empresas. Para nossa alegria, o retorno da comunidade acadêmica e profissional tem sido alvissareiro, não apenas para a uma abordagem dinâmica do Direito Societário, tal qual posta no livro, como esse aspecto em especial. No entanto, ainda persistem muitas dúvidas sobre tal abordagem da empresa, razão pela qual julgamos que seria adequado construir este ensaio que, colocando a questão sob um ângulo bem elementar, pudesse lançar luzes sobre as questões envolvidas, ampliando não só o debate, mas ainda mais a preocupação com a matéria durante o processo de criação, estruturação e, eventualmente, reestruturação empresarial. Porém, reiteramos: a motivação deste ensaio é mostrar o básico, entender o elementar, o básico. Assimilando tal piso, será possível evoluir para questões, cenários, figuras e mecanismos mais complexos.
Vamos partir de um pano de fundo teórico: a essência do conceito de empresa: atividade de econômica organizada, exercida profissionalmente (artigo 966 do Código Civil) com a finalidade de produzir sobrevalor pecuniário apropriável; em suma: investir, empresariar e lucrar. E já esse trinômio é eloquente em termos de engenharia de capital. Infelizmente, há uma grande dificuldade em compreender e vivenciar tal conceito. Muitos pretendem por empresa o que não o é: um agir pessoal não estruturado; confunde-se a profissionalidade no exercício da empresa com a profissionalidade no exercício do objeto empresarial, o que é um equívoco monstruoso. Uma coisa é ser um bom mecânico; outra coisa é tocar uma empresa de mecânica, seja empresário, seja sociedade empresária. O agir profissional, autônomo, não faz a empresa. Ela é bem mais do que isso. E isso preciso ser aprendido pois muitos tropeços e mesmo tragédias decorrem do engano. Ser boa cozinheira, ser boa profissional de cozinha, não resolve o desafio empresarial. É preciso ser bom empresário ou administrador societário. É diverso.
É torturante caminhar no terreno do óbvio quando, em função de uma cultura viciada – o mercado brasileiro e seus hábitos mercantis–, as pessoas simplesmente fecham seus olhos para o evidente. A estruturação de uma empresa (incluindo a estruturação jurídica) pressupõe uma questão prejudicial que é econômica. Como escrevemos em contexto jurídico, vamos colocá-la em termos jurídicos: os clientes querem abrir uma empresa. É viável? Viabilidade jurídica, antes de mais nada, o que não parece ser um grande problema na esmagadora maioria das vezes. Mas há essa outra questão ainda mais forte: viabilidade econômica. E aí? Esse negócio aí vai dar certo? Tem como dar certo? Ou nasce, qual estrela cadente: risca o céu, queimando-se, destinada ao do chão? E, como pretendemos ser elementares em nossa análise, vamos trabalhar sobre uma empresa bem simples para demonstrar que, também ali, como na construção de um casebre, faz-se necessário ciência e técnica para evitar colapsos e desmoronamentos.
Eis um problema: o que nos diz esse número assustador de empresas que não conseguem sobreviver a mais do que três anos após criadas? A resposta mais comum não nos parece verdadeira em si: tais iniciativas empresariais são vítimas de um país inviável, uma economia perversa. Sim, há adversidades econômicas e jurídicas. Mas não se trata de nada desesperador e, para sermos exatos, boa parte dessas dificuldades sistêmicas resultam de baixo nível de profissionalidade no exercício da empresa. E a importância dessa profissionalidade já era reconhecida no Código Comercial do Império e se repete no artigo 966 do Código Civil. Não nos referimos apenas a profissionalismo no exercício do objeto empresarial: a capacidade técnica do mecânico, do padeiro etc. Profissionalismo no exercício da empresa, na sua condução econômica e jurídica. Afinal, não se trata de exercício pessoal do objeto, mas atuação empresarial e, não raro, corporativa. São figuras (e situações) jurídicas mais complexas e, ao assumi-las, assumem-se ônus respectivos. Nada que seja desesperador: há auxiliares profissionais cujos serviços podem amparar o empresário ou administrador societário: contadores, advogados, gerentes, mercadólogos, engenheiros de produção, logística etc. Mas o desafio refaz-se: o empreendedor brasileiro não tem uma tradição de recorrer a tais expertises; acredita que pode ir bem sem tudo isso. Se não dá certo, a culpa é do sistema, do Estado, do diabo.
Contudo, não são demônios que, espalhados por aí, na entrada de lojas e escritórios, impedem que uma empresa vá frente. Colocar a culpa no diabo ou forças malignas é, mais uma vez, uma forma confortável de exculpar-se pelo fracasso. Na verdade, uma parte considerável dos fracassos empresariais deve-se a uma maldição terrível que a lógica rogou sobre a humanidade. Sim, a lógica. E uma maldição que pode ser resumida a uma ideia e, a partir delas, uma par de palavras antagônicas: [in]viabilidade. Sim, empresário, você fez as suas orações; mas você fez as suas contas? Eis o contexto da engenharia de capital que, se não é assunto essencialmente jurídico, embora no Direito encontre uma de suas partes e expressões. São portas ladeadas de um mesmo prédio; quando mais complexa a operação, mais a importância jurídica cresce, como no Project Finance. Este ensaio, contudo, tem por algo contextos muito mais simples: a base, o chão, o elementar.
O cálculo de viabilidade é indispensável para todo e qualquer empreendimento, não importa o seu tamanho. É raríssimo, contudo; e, também por isso, fecham-se tantos negócios novos: nasceram para falhar: era esse o resultado da conta que não foi feita. Isso mesmo! Nos momentos de euforia, embalados por uma ideia que parece genial, não ouvimos a consciência nos chamar à razão: E aí? Fizeram as contas? É viável num cenário realista? Ou, apesar de todo o sonho e boa-vontade, os números não fecham, de jeito-maneira, e essa aventura não passa de um pesadelo previsível? É impressionante como a crueza dos números podem afastar a névoa dos sonhos e nos permitir compreender desafios, riscos, cenários. Um exemplo irá ajudar muito.
Vamos trabalhar com uma empresa pequena, bem simples. Será mais fácil compreender as bases da engenharia de capital que, insistimos, é parte da Estruturação Jurídica de Empresas, tema a que temos nos dedicado (Editora Atlas, 2024). Para grandes negócios e empreendimentos, a tecnologia envolvida é mais sofisticada e complexa, nomeadamente a tecnologia jurídica. Mas a ideia geral é a mesma: compreender economicamente a empresa e atestar que tal mecanismo econômico tem um funcionamento provável, sustentável. E não se assustem com um spoiler: não é incomum que a falência se confesse nessas fases de projeto, de análise, de cálculos. Que empresa você quer criar? Que empresa pretende ver estruturada?
– Uma pequena confeitaria para bolos artesanais.
– Produção e loja?
– Produzo em casa mesmo; seria um lugar para vender.
– Você tem o lugar da loja? Se não tem, qual o valor do aluguel? Quanto calcula que deva investir na montagem da loja? Quem vai ficar na loja enquanto você estiver fazendo bolos? Qual o salário? Quais o custo das obrigações trabalhistas e previdenciárias? Qual sua estimativa de gastos com água e energia elétrica? Qual o custo de um bolo? Qual o preço? Qual a margem de lucro? Quais os impostos incidem? Quanto você pagará por mês ao seu contador? E ao seu advogado? O que mais deve ser pago? Você tem tudo o que é preciso para a produção no volume necessário? Seu forno dá conta? Sua batedeira?
É isso engenharia de capital? Sim. E no nível mais elementar, acredita? De cada pergunta deve sair um número preciso que deve compor a conta. E ainda faltam algumas perguntas na fala do parágrafo anterior, inclusive uma essencial: quantos bolos é preciso vender por dia (encaixe: dinheiro ingressando no caixa) para fazer frente a todas os custos e despesas (desencaixe: dinheiro saindo do caixa) para que a confeitaria seja viável? Já vimos gente perceber que seriam tantos bolos que não seria possível fabricá-los. Mais do que isso: se fossem fabricados, seria difícil encontrar compradores para todos, pensando numa conta diária. Como assim? 50 bolos num dia não é tanto; 50 bolos todos os dias, salvo o Domingo, pode ser pouco provável, senão inviável. Ainda assim, vendendo ou não os bolos, sejam 17, 33, 50 ou 89 (oba!), o aluguel vence no final do mês, as contas devem ser pagas: água, luz, telefone, trabalhador (salário e acessórios). Já nas projeções, tais contas devem fechar no azul: uma estimativa realística de vendas (de encaixe) é indispensável para tocar o projeto adiante. Há quem recomende estimativas conservadoras, ou seja, levemente pessimistas.
Quem faz isso? Quem levanta todos esses números? Quem se pergunta, por exemplo, qual é a despesa do gás nesse fabrico de bolos? Quem leva em conta o desgaste das formas e a necessidade de outras serem compradas para substituir? Quem calcula o impacto do combustível usado para transportes diversos, não só dos produtos, mas dos insumos e das pessoas? Quem estima as perdas e seu impacto sobre o empreendimento? Quem julgava que o parágrafo anterior já colocava elementos demais, irá se assustar com quantos parágrafos podem ser acrescidos, ampliando o volume de desencaixe e forçando a barra para cima da demanda de vendas, de encaixe. E, então, talvez se compreenda porque padarias vendem cigarros: as tabageiras oferecem receita sem grandes investimento: colocam ali os expositores, entregam o produto; para a padaria, apenas expor, vender e receber a comissão de venda. Não, as tabageiras não são bonzinhas ou loucas; nada desperdiçam. Esse modelo de distribuição e vendas corresponde, ele próprio, a uma engenharia de capital; aliás, algo bem mais sofisticado que o exemplo canhestro sobre o qual estamos trabalhando. No valor do maço vendido em São Paulo, está embutido o valor de transporte de maços para Santa Rosa do Purus, no Acre. A conta global fecha e, enfim, está incorporada ao valor de cada maço de cigarro.
Então é melhor nem tentar, certo? Que nada. Se você acompanhar o desenvolvimento das contas necessárias para a engenharia de capital de uma lanchonete no centro de Belo Horizonte, irá se assustar com o milagre da multiplicação financeira dos pasteis. É lindo! O custo maior é o ponto (luvas, aluguel e acessórios: seguros, impostos etc) e o fator preponderante é o fluxo de passantes: a freguesia. E as contas variam de acordo com as decisões tomadas e, a partir delas, a configuração da empresa. Exemplo fácil? Claro. Contrato de trabalho ou terceirização? Vai contratar um empregado para produzir pastéis e outros salgados ou vai comprá-los de um terceiro para apenas serem fritados na hora e vendidos? Estruturações jurídicas diversas com impactos diversos na engenharia de capital. E, obviamente, pode haver reconfigurações, embora seja indispensável estar atento para os contratos e seus efeitos. Demitir o pasteleiro tem um custo. Leu com cuidado o contrato de fornecimento de pastéis crus? Tem prazo certo? É preciso notificar? Há multa. Insistimos: profissionalidade é um requisito para o exercício da empresa.
Poderíamos parar por aqui e uma ideia elementar já teria sido passada. Mas podemos ir um pouco adiante. Voltemos à loja de bolos e suas contas. Foram feitas. Estimou-se tudo o que é necessário para montar o negócio e fazê-lo funcionar, fazê-lo girar (daí o famoso capital de giro que a tantos assusta). De onde vem o capital necessário para tudo isso? Qual o seu custo? Eis uma outra questão importante de engenharia de capital: o custo do capital. E vamos ficar apenas no óbvio já que a finalidade do ensaio é passar uma ideia e, assim, permitir situar o leitor na base do que seja a engenharia de capital. E aí? Capital próprio ou de terceiros? Vai usar seu próprio imóvel? Quanto ganharia alugando-o para outrem? R$ 2.500,00 por mês? Então, eis um custo de capital próprio. Dependendo das contas, vale a pena desistir dos bolos e apenas receber aluguel. Aliás, já vimos empresários alugarem lojas de sua propriedade para terceiros e, concomitantente, alugarem lojas de propriedade de terceiros para seus próprios negócios, embolsando a diferença. Em muitos casos, é o melhor a fazer; noutros, pode ser um erro grave; por exemplo, em função da perda de fluxo de consumidores (freguesia).
Vai usar capital de terceiros? De quem? Como é o contrato? Qual o custo do capital? Quanto os juros? Simples ou compostos? Você tem uma estimativa de endividamento? Quais os demais acessórios financeiros? Há multas? Em que hipóteses? Fez um ensaio com uma estimativa de dívidas, considerando um cenário provável e outro pessimista para ver se a empresa suporta? E vocês, clientes, suportariam? A pergunta se mantem em todas essas fases que aqui estão sendo apenas exemplificadas: a empresa é viável. As contas dizem, em seus resultados: não perca tempo, invista! Empreenda! Ou elas recomendam largar isso de lado para evitar que a vaca vá para o brejo e ali se atole até o pescoço? Podem recomendar mudanças diversas, por igual. Há casos em que mudanças jurídicas na estruturação da empresa mudam as contas por completo. Já estudou tais alternativas? Há quem desista de pontos físicos para adotar pontos virtuais, na rede de computadores. Pode-se considerar as vantagens de firmar parcerias com plataformas de vendas/distribuição.
Sim! É fascinante desse jeito. Não é sorte: são estimativas e cálculos confiáveis, feitos como expressão de ciência, inclusive jurídica. E olha que não falamos de lucro, senão em viabilidade econômico-financeira. Lucro é assunto para adiante. E, não duvide: é parte fundamental dessa investigação, salvo se estivermos falando de um empreendimento social, feito para não produzir lucros, mas para apenas realizar o seu objeto social a bem de uma comunidade qualquer. Uma empresa social que produza sopas para vender, pelo menor preço possível, a pessoas carentes, precisa apenas fechar a conta próxima do zero. Ainda assim, terá que considerar que os desencaixes são compensados por encaixes, ainda que doações. Insistimos: a conta tem que fechar. E nisso não há espaço para brincadeiras, nem para leviandades.
Quando uma conta de engenharia de capital é bem feita, ou seja, é feita com responsabilidade e acuro, determina-se, antes de mais nada, qual o capital se faz necessário investir para “abrir uma empresa” (a incluir custos e despesas do início de sua operação, quando os fluxos de caixa podem não ser ainda os estimados), definir a fonte desses recursos (capital próprio ou de terceiros), o custo do capital e, mesmo, uma estimativa de receita ou, melhor, estimativas de receita: pessimista, conservadora e otimista. Isso não só sob uma perspectiva estática, vale dizer, o momento da criação, mas com projeções para os primeiros momento após a constituição. Dessa maneira, antes de tomar a decisão e começar o investimento, é possível observar a partir das contas feitas o que o negócio tende a ser. E, não-raro, está lá o corpo estendido no chão: é inviável ou, quando menos, só é viável em cenários otimistas: é uma grande aposta. Mas, como se diz por aí, o dinheiro não suporta desaforos.
Acreditamos que a ideia está dada. Uma noção, ao menos. Prometemos, em ensaios futuros, voltar ao assunto, completando e esclarecendo o que deixamos analisado com mais vagar em Estruturação Jurídica de Empresas, tema a que temos nos dedicado (Editora Atlas, 2024).
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