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A herança digital no direito brasileiro: análise do voto da ministra Nancy Andrighi no RESP 2.124.424 e implicações práticas para o inventário

Rubem Valente
28/08/2025
A digitalização das relações humanas – herança digital – gerou um acervo relevante de bens intangíveis — perfis em redes sociais, contas de e-mail, arquivos em nuvem, criptoativos, bibliotecas digitais, registros de autenticação, entre outros. Esses ativos compõem parte significativa do patrimônio e da memória das pessoas, levantando questões sensíveis no Direito das Sucessões: quais bens digitais se transmitem? Em que condições? Como compatibilizar o direito à herança com a proteção da intimidade post mortem?
Sem lei específica, o tema vem sendo construído por doutrina e jurisprudência. Em 12/08/2025, a 3ª Turma do STJ iniciou o julgamento do REsp 2.124.424 (rel. Min. Nancy Andrighi), propondo um rito procedimental para lidar, no inventário, com a identificação e classificação de bens digitais. O julgamento foi suspenso por pedido de vista, mas o voto da relatora já funciona como marco inaugural para organizar a matéria no plano processual.
Conceito e evolução da herança digital
A herança, tradicionalmente, é a universalidade de bens, direitos e obrigações do falecido. A doutrina recente distingue:
- Bens digitais patrimoniais: suscetíveis de avaliação econômica (p.ex., criptoativos; obras digitais protegidas por direito autoral; saldos em plataformas; licenças transmissíveis). Integram o espólio.
- Bens digitais existenciais: conteúdos de natureza personalíssima (mensagens privadas, diários, álbuns íntimos, conversas, rascunhos), em regras intransmissíveis por tocarem a intimidade e a vida privada do falecido.
A IX Jornada de Direito Civil do CJF aprovou o Enunciado 687, reconhecendo que o “patrimônio digital pode integrar o espólio” e admitindo sua disposição testamentária ou via codicilo. No plano legislativo, tramitaram projetos como o PL 4.847/2012 e o PL 7.742/2017, que buscavam disciplinar a sucessão de bens digitais; ambos, contudo, foram arquivados, mantendo-se o vácuo normativo.
O Marco Jurisprudencial Do STJ: RESP 2.124.424
No REsp 2.124.424, a Min. Nancy Andrighi propõe, no âmbito do inventário, um incidente processual de identificação e classificação de bens digitais, com as seguintes diretrizes:
- Instauração do incidente: a requerimento ou de ofício, dentro do inventário, destinado exclusivamente à herança digital.
- Nomeação de “inventariante digital”: pessoa com capacidade técnica para acessar dispositivos e contas do falecido, atuando sob sigilo, com responsabilização por abuso.
- Listagem minuciosa: apresentação ao juízo de relatório descritivo dos bens/contas encontrados, sem exposição do conteúdo sensível.
- Decisão judicial indelegável: cabe ao magistrado definir, caso a caso, o que é patrimonial (transmissível) e o que é existencial (intransmissível), ponderando CF/88, CC e direitos da personalidade.
- Administração temporária: possibilidade de gestão provisória de bens digitais (p.ex., preservação de chaves, prazos de renovação) até a partilha, quando necessário para evitar perecimento de valor.
Embora pendente de conclusão (pedido de vista), o voto oferece um roteiro procedimental que prestigia a segurança jurídica e a tutela da intimidade, ao mesmo tempo em que evita perdas patrimoniais por falta de organização do acervo digital.
Tensão Entre Patrimônio e Intimidade: Balizas Constitucionais
A colisão central opõe o direito à herança (art. 5º, XXX, CF/88) e a proteção à intimidade/privacidade (art. 5º, X, CF/88). O critério sugerido pelo voto — e acolhido pela jurisprudência estadual — é a classificação funcional do bem digital: transmissibilidade dos ativos patrimoniais; restrição do acesso a conteúdos existenciais personalíssimos, salvo disposição de vontade válida do falecido ou estrita necessidade probatória.
Jurisprudência Recente e Contrastes
- TJSP (Apelação Cível nº 1017379-58.2022.8.26.0068, j. 26/04/2024): autorizou a mãe a acessar o ID Apple da filha falecida para recuperação de dados digitais, reconhecendo que patrimônio digital pode integrar o espólio e valorando a memória afetiva como interesse juridicamente relevante.
- TJMG (AI nº 1.0000.24.174340-0/001, j. 22/05/2024, pub. 28/06/2024): negou pedido de desbloqueio de Apple ID e acesso a acervo fotográfico e correspondências em nuvem, por tratar-se de bens digitais existenciais e intransmissíveis, protegidos por intimidade e vida privada do falecido.
- TJPB (AI nº 0808478-38.2021.8.15.0000, 2023): assegurou a viúvo o acesso às contas de Facebook e Instagram da esposa falecida, com transformação do perfil em memorial, relativizando termos contratuais em favor da tutela da memória e dos direitos sucessórios.
O conjunto revela um padrão de ponderação: proteção reforçada a conteúdos íntimos; deferimento quando presente interesse sucessório/afetivo legítimo e quando o acesso não viola a esfera personalíssima do falecido.
Termos De Uso Das Plataformas X Ordem Pública Sucessória
Plataformas (redes sociais, nuvens, e-mail) estabelecem políticas para contas de usuários falecidos (memorialização, exclusão, “contato herdeiro”, legados digitais). Esses termos privados não podem frustrar a ordem pública sucessória nem impedir medidas judiciais de proteção do espólio. A jurisprudência tem relativizado cláusulas que inviabilizem o exercício de direitos hereditários, preservada a intimidade post mortem.
Boas práticas contratuais/testamentárias: previsão de testamento digital ou diretivas de última vontade com instruções sobre preservação, acesso ou destruição de determinados conteúdos; indicação de contato herdeiro onde disponível; organização prévia de chaves e autenticações (sem violar sigilo e segurança).
Implicações Práticas Para a Advocacia, Magistratura e Cidadãs/Ãos
Para a advocacia
- Requerer, no inventário, a instauração do incidente digital; sugerir a nomeação de inventariante digital e perícia técnica; propor ordens de preservação junto a provedores; indicar medidas para evitar perecimento de valor (p.ex., chaves de criptoativos, renovações de domínios/assinaturas).
- Diferenciar, na causa de pedir e nos pedidos, ativos patrimoniais (transmissíveis) e conteúdos existenciais (em regras intransmissíveis), evitando pretensões genéricas de “acesso total”.
- Prevenção: inserir cláusulas de planejamento sucessório digital em testamentos, pactos antenupciais e contratos; orientar clientes sobre políticas de plataformas e mecanismos de legado.
Para magistratura e serventias
- Adotar o rito do incidente com sigilo, chain of custody e relatórios descritivos; delimitar o escopo de acesso; resguardar direitos da personalidade; fixar honorários do inventariante digital com critério e transparência.
Para cidadãs/ãos
- Organizar o acervo digital (inventário de contas/ativos, senhas sob gestão segura, contatos de legado, instruções em testamento/codicilo); repensar o que deve e o que não deve ser transmitido aos herdeiros.
Conclusão
Enquanto perdurar o vácuo legislativo, a atuação estratégica da advocacia — aliada a decisões judiciais criteriosas — será decisiva para proteger simultaneamente o patrimônio e a intimidade nos pós-morte. O voto da Min. Nancy Andrighi no REsp 2.124.424 oferece um modelo procedimental que aumenta a previsibilidade dos inventários com bens digitais, sem banalizar o acesso a conteúdos personalíssimos. Trata-se de um marco inicial que, mesmo pendente de conclusão no STJ, já orienta a prática forense e estimula o planejamento sucessório digital como medida de prudência.
REFERÊNCIAS
- STJ, REsp 2.124.424, 3ª Turma, voto da Min. Nancy Andrighi (sessão de 12/08/2025, julgamento suspenso por pedido de vista).
- CJF, IX Jornada de Direito Civil, Enunciado 687 (2022).
- TJSP, Apelação Cível nº 1017379-58.2022.8.26.0068, j. 26/04/2024.
- TJMG, AI nº 1.0000.24.174340-0/001, j. 22/05/2024, pub. 28/06/2024.
- TJPB, AI nº 0808478-38.2021.8.15.0000 (2023).
- PL 4.847/2012 (arquivado) e PL 7.742/2017 (arquivado).
- TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Sucessões, 17. ed., Método, 2024.
- HIRONAKA, Giselda. Direito das Sucessões Contemporâneo, Saraiva, 2020.

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