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CLÁSSICOS FORENSE
CONSTITUCIONAL
REVISTA FORENSE
Taxa De Estatística – Imposto De Vendas E Consignações – Inconstitucionalidade, De Aliomar Baleeiro

Revista Forense
13/08/2025
– Não se enquadra no conceito jurídico e financeiro de taxa a chamada “taxa de estatística-contrôle de movimento comercial”, cobrada pelo Estado da Bahia, de comerciantes e industriais, tomando por fato gerador o volume de compras, consignações e transferências.
– É inconstitucional o impôsto de vendas e consignações que o Estado da Bahia cobra sob o nome inexato de taxa de estatística.
CONSULTA
Três negociantes da Bahia impetraram mandado de segurança contra autoridades daquele Estado, sustentando a seguinte tese:
I. De 1.º de janeiro de 1952 em diante, o Estado da Bahia passou a cobrar a “taxa de estatística”, não sôbre o valor das vendas, como fazia outrora, mas, sim, sôbre o valor das compras de mercadorias efetuadas em outros Estados e no estrangeiro, pelo só fato de comprá-las e recebê-las o negociante baiano.
II. Tôdas as tentativas, feitas na Bahia e em outros Estados, desde 1892, para cobrar o tributo chamado de estatística sôbre o valor das compras têm sido, sem exceção, declarados inconstitucionais. Assim é que, desde sua fundação, em impressionante unanimidade de jurisprudência, têm decidido: O Supremo Tribunal Federal: a) que o impôsto de estatística cobrado sôbre as compras, em vez de sôbre as vendas, é impôsto de importação disfarçado; b) que o Estado não pode cobrar tributos do negociante, em relação às suas mercadorias, antes delas entrarem no giro e circularem, porque o contrário disso (direitos de importação e impôsto de consumo) é privilégio da União; c) que as mercadorias, enquanto permanecem nas mãos do negociante, sem vendê-las “não têm perdido, ainda, o seu caráter de importação e estão, por conseguinte, fora da massa dos bens tributáveis pelos Estados”… “não podendo, por isso, sôbre elas recair impôsta que constitua renda estadual”; o Tribunal de Apelação da Bahia: “Inconstitucionalidade do impôsto que recai sôbre a mercadoria importada”… “e igualmente o Supremo Tribunal brasileiro proibindo impostos que indiretamente recaiam sôbre os gêneros importados“.
III. Na doutrina, não divergem, em tais postulados, EDUARDO ESPÍNOLA, CARLOS MAXIMILIANO, PONTES DE MIRANDA, TEMÍSTOCLES CAVALCANTI, JOÃO BARBALHO, PEDRO CALMON e outros.
Pergunta-se:
1.º O tributo exigido pela Bahia, desde 1952, a título de “taxa de estatística”, sôbre as compras de negociantes e industriais, dentro e fora do Estado, inclusive no estrangeiro, enquadra-se no conceito jurídico e financeiro de “taxa” adotado pela Constituição e pela doutrina?
2.º No caso negativo, como seria possível classificar-se o tributo que a Bahia, na maneira exposta, chama de taxa de estatística?
3.° Tem o Estado, competência constitucional para, por meios tributários, exercer o “contrôle do movimento comercial” de seus negociantes e industriais com as praças de outros Estados e do estrangeiro?
4.º É constitucional aquela taxa de estatística exigida do Estado, indistintamente, sôbre as compras, inclusive de mercadorias adquiridas e recebidas de outros Estados, Distrito Federal e do estrangeiro?
PARECER
I. Análise da chamada “taxa”
No “quadro tributário”, que a lei balaria n.º 451, de 20 de dezembro de 1951, estabelece para o exercício de 1952, figura o seguinte:
“Quadro n.º 5
TAXA DE ESTATÍSTICA
Contrôle do movimento comercial
III. Sôbre o total das compras ou consignações de mercadorias para fins mercantis, registradas em cada semestre, nos livros “Registro de Compras”, ou de “Mercadorias Transferidas” ou “Consignadas” – 0,20 %”.
O mesmo repetiram as leis ns. 531, de 24 de dezembro de 1952, e 631, de 27 de fevereiro de 1954. Para o exercício de 1955, a lei n.º 682, de 14 de dezembro de 1954, fêz algumas alterações, inclusive a da alíquota:
“Tabela n.º 9
2. Contrôle do movimento comercial. Sôbre o total das compras de mercadorias para fins mercantis, inclusive indústria, e sôbre total das receitas para o mesmo fim em consignação ou por transferência apurado pelo competente registro em cada trimestre nos livros “Registros de Compras”, ou de “Mercadorias Transferidas” ou “Consignadas” – 1%”.
Informa o consulente que, contra a despesa para os serviços de estatística estimada em Cr$ 2.409.792,50, o Estado calculou que essa taxa lhe garantirá uma receita de Cr$ 110.000.000,00.
Tal disparidade indicia que não há taxa, no sentido jurídico e financeiro da palavra, tal como ela vem sendo usada conscientemente, desde a Constituição de 1891 até a de 1946. Desde a primeira constituinte republicana, quando apenas madrugava nas classificações teóricas, taxa é o tributo correspondente a serviço especial, individualizado, prestado, ou pôsto à disposição do contribuinte e, na pior hipótese, por êle provocado. É uma técnica de repartição do custo dum serviço especial e divisível estritamente pelo grupo dos indivíduos que do mesmo se beneficiam ou forçam o Estado a prestá-lo em razão das atividades por êles exercidas.
AMARO CAVALCÂNTI, VEIGA A EILHO, VIVEIROS DE CASTRO, RUI, TEMÍSTOCLES CAVALCÂNTI, FRANCISCO CAMPOS, RUBENS G. SOUSA e quantos brasileiros de prol escreveram sôbre o assunto, em trabalhos clássicos, não ensinaram de modo diverso. BILAC PINTO, em excelente parecer, arrola as opiniões contestes de inúmeros financistas estrangeiros da melhor autoridade (“Estudos de Direito Constitucional”, Rio, 1953, página 158, ou na “REVISTA FORENSE”, volume 120, págs. 55 e seg.). A êsses, acrescentamos mais de uma dúzia de outros mestres consagrados, que confirmam ser pacífico, no mundo, aquêle conceito da taxa (`Introdução à Ciência das Finanças”, 1.º vol., pág. 311, notas 7 e 8; “REVISTA FORENSE”, vol. 148, pág. 78).
Um dos mais abalizados tratadistas de direito fiscal, GIANNINI, em estudo jurídico especial sôbre o assunto, estabelece as fronteiras e contrastes não só entre taxa e impôsto, mas entre taxa e preço. Êste não interessa ao caso da consulta. Ensina aquêle douto jurista: “L’obbligazione relativa ad una tassa ha il suo necessario presupposto nel tatto chevi sia stato o debbz esservil’adempimento di un servizio pubblico che concerne personalmente l’obbligato” (.GIANNINI, “Il concetto giuridico di tassa” na “Rivista Italiana di Diritto Finanziario”, jan.-fevereiro, 1937, pág. 12).
E mais incisivamente: “L’elemento differenziatore delle due specie di tributo è dato dalla natura del presupposto; e cioè l’imposta si ricollega ad una situazione di fatto, che, in tanto formaoggetto di imposizione, in quanto è consirata la manifestazione, diretta o indiretta, di una certa capacità contributiva, una situazione, perció, che tocca exclusivamente da persona dell’obbligato e la sfera delle sua attività, senza alcuna relazione, neanche di fatto, con l’attività dell’ente pubblico; mentre il presupposto della tassa consiste in una situazione di fatto che determina o necessariamente si riannoda all’esplicazione di un’attività dell’ente pubblico nei riguardi dell’obbligato” (idem, pág. 17).
Os serviços de estatística revestem-se de caráter geral e até nacional, integrados que são no sistema federal do I.B.G.E. Abrangem todos os dados demográficos, políticos, educacionais, religiosos, etc., enfim tôdas as manifestações sociais e não apenas as compras e consignações do Estado. A êste, por outro lado, nunca poderá caber o “contrôle do movimento comercial” na parte relativa a importações de outros Estados e do estrangeiro, pois isso envolve exatamente a regulação do comércio internacional e interestadual, a cargo da União (art. 5.°, XV, k, da Constituição).
Destarte, o tributo das leis baianas acima transcritas na parte essencial da consulta não é taxa, segundo o – conceito jurídico e financeiro de tôdas as Constituições do Brasil no período republicano. Elas distinguiram sempre taxa e impôsto, segundo concepção doutrinária que se divulgara no Brasil pouco antes. RUI BARBOSA, autor notório do texto de 1891, sempre esposou essa classificação de tributos com a distinção entre taxas e impostos, diferenciação que AMARO CAVALCANTI já popularizara em seus “Elementos de Finanças”, de 1896 (pág. 170).
Na Constituição de 1946, o rigor das expressões técnicas foi absoluto: “tributo” (arts. 17, 21, 28, II, a, 65 n.º II; 141, § 34) é gênero do qual são espécies inconfundíveis o “impôsto” (arts. 15, 19 e 20, 29, 202 e 203 p. ex.) e a “taxa” (artigos 27 e 30, n.º II). O voto luminoso do ministro OROZIMBO NONATO, relator do acórdão unânime do Tribunal pleno, em 21 de dezembro de 1950, traz a exata inteligência, da Constituição (rec. ext. número 16.551, in “REVISTA FORENSE”, vol. 167, pág. 77).
Essa diferenciação não é acadêmica, como poderá parecer inadvertidamente, sobretudo se atentarmos em que, p. ex., o princípio da imunidade recíproca do art. 31, V, a, cobre os impostos mas exclui as taxas, do mesmo que o art. 203. É constitucional, p. ex., uma taxa para registro de direitos autorais na Biblioteca Nacional ou de título de professor no Ministério da Educação, mas viola o estatuto supremo um impôsto específico sôbre a propriedade literária ou sôbre a remuneração dos docentes e jornalistas.
Por outro lado, um sistema rígido de discriminação de impostos – o mais rígido do mundo -, como é o nosso, seria transformado em burla se fôsse lícito a cada govêrno exigir falsas taxas, que mascaram impostos alheios à sua competência.
Não seria possível cumprir-se o artigo 19, n.º V, que estabelece tetos de 5 e 10% para o impôsto de exportação, se ao aplicador ou intérprete fôsse permitido aceitar como taxa o que não é taxa.
Exemplo expressivo oferece a Bahia em várias passagens de sua atormentada história financeira. Quando um decreto-lei do Estado Novo extinguiu o anacrônico “impôsto de capitação”, o interventor federal expediu diploma batizando de “taxa para fins educativos” o tributo condenado. Quando o Poder Judiciário, há poucos anos, declarou inconstitucional a “taxa de estatística” que, na realidade, encobria impôsto de exportação interestadual e acima do limite da Constituição relativamente às mercadorias embarcadas para o estrangeiro, a Bahia assentou o tributo, com o mesmo nome de taxa de estatística, sob a forma de adicional ao impôsto de indústrias e profissões, que, naquele Estado, tem como base ele cálculo o giro ou volume de operações.
Mas como em 1951, por efeito do artigo 13, § 2.º n.º II das Disposições Transitórias da Constituição, findasse a competência estadual para decretar e arrecadar o impôsto de indústrias e profissões aquinhoado integralmente aos Municípios (art. 29), a Bahia, conservando o nome de “taxa de estatística” instituiu tributo inteiramente novo sôbre as compras de negociantes baianos dentro e fora do Estado.
Êsses comemorativos corroboram a verdade de que não é taxa êsse tributo, desde sua remota gênese, como “impôsto de estatística”, em 1892, quando foi fulminada pelo Supremo Tribunal Federal em acórdãos famosos pelas polêmicas de RUI e AMARO CAVALCANTI.
Não é taxa porque não tem qualquer conexão com benefícios específicos ou potenciais àqueles obrigados a pagá-la. O serviço, sob pretexto do qual é cobrado, além de custar menos de 2% da receita arrecadada, não existe no interêsse dos contribuintes obrigados à pseudotaxa e escapa à competência do Estado, desde que o contrôle do movimento comercial com os demais Estados, Distrito Federal e exterior envolve exatamente a regulação do comércio internacional e interestadual da competência da União por fôrça do art. 5.°, XV, k, da Carta de 1946.
Se o Estado cobra taxa pelo que não é taxa, pede contraprestação de serviço que não forneceu diretamente ao contribuinte nem êste lho pedia. Falta causa jurídica à exigência, porque essa causa e fato gerador, em se tratando de taxa, jazem na prestação efetiva ou potencial de serviço específico ao contribuinte, ou na compensação dêste à Fazenda por lhe ter provocado despesa também especial e mensurável (ERNST BLUMENSTEIN: “La causa nel diritto tributario svizzero”, na “Rivista di Diritto e Scienza delle Finanze”, 1939, págs. 355 e segs.).
Os tribunais brasileiros já têm repelido, por vêzes, exações como falso nome de taxas, porque não se registrava a causa jurídica, isto é, o serviço prestado ou provocado pelo contribuinte.
Em acórdão de 17 de dezembro de 1924, há mais de 30 anos, o Supremo Tribunal já afirmava a boa doutrina: “A taxa distingue-se do impôsto, consistindo êste na contribuição de todos os membros da Sociedade, ou de uma parte dêles, para as despesas do govêrno, ao passo que aquela tem por objeto a remuneração de um dado serviço público e a ela sòmente estão sujeitos os contribuintesque dela se aproveitem, e, quando obrigatória, por motivo superior de saúde, como na espécie, tôdas as pessoas a quem o Estado ministra diretamente a utilidade” (“Rev. de Direito”, vol. 77, pág. 45).
Nesse sentido, há jurisprudência torrencial, que um ou outro julgado extravagante contrasta.
Recentemente o Tribunal da Alçada de S. Paulo decidia que não era exigível a taxa de conservação de estrada pelo Município que, em verdade, não conservava a rodovia (ac. de 9-11-954 no ag. pet. n.º 8.856, “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 44, pág. 140, e também ac. de 23-1-952, in rev. cit., vol. 32, pág. 90). O supremo ofereceu repulsa a uma falsa taxa de Minas no acórdão de 26 de setembro de 1952 (rec. ext. n.º 19.157, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 44, pág. 147).
Em caso semelhante ao da consulta, o Supremo Tribunal proclamou a inconstitucionalidade da taxa do Rio Grande do Sul que, a pretexto de defesa da produção, discriminava a matéria tributária pela procedência (ac. de 26-5-952, rec. extr. n.º 17.624, na “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 38, pág. 217). A taxa de estatística, que aparentemente não é discriminatória, em verdade sujeita a tratamento diferencial a mercadoria de fora, que pagou impôsto de venda no Estado de origem, de acôrdo com o direito positivo em vigor, como adiante veremos.
O caso da consulta, aliás, envolve típica recidiva dos impostos interestaduais defesos pela Constituição, quer implicitamente pela discriminação de competências fiscais e por extensão do poder de regulamentação do comércio interestadual e internacional, quer por disposições expressas, como o art. 27 do estatuto máximo.
II. Os antecedentes de tributos interestaduais e inconstitucionais no Brasil
No período colonial e nos primeiros anos depois da independência, o problema de impostos interestaduais e inconstitucionais pràticamente não existia, porque o bôlso dos contribuintes era disputado apenas pela Coroa e pelas Câmaras Municipais. Estas se curvavam às espoliações que aquela praticava em momentos de apêrto, quando pura e simplesmente requisitava as mais rendosas sisas sôbre gêneros alimentícios.
Os conflitos nascem sobretudo com o Ato Adicional de 1834 que, em primeiro passo para a futura federação, instituiu as Assembléias Provinciais e as investiu do poder de tributar, contanto que não prejudicassem as rendas “gerais”, isto é, nacionais. As classes governantes eram constituídas (e ainda hoje o são, em grande parte) de senhores de engenho, fazendeiros e criadores de gado, que não aceitariam de bom grado os impostos pessoais, como o territorial, o de heranças e o de renda. Escassa a indústria, a alfândega se impunha como processo rápido e fácil de coletar o consumo geral. Destarte, as Províncias atiravam-se de unhas e dentes a impostos sôbre importação e exportação, em concorrência ilegítima com o Tesouro Nacional, único competente para decreta-los. O clamor contra essa inconstitucionalidade foi tão gritante quanto o escândalo da tolerância dos chefes de gabinete e, ministros de Estado, que tinham seus motivos de classe e conheciam as necessidades extremas das Províncias onde nasceram, possuíam suas terras e recebiam, no voto, a confiança de seus concidadãos. Baixavam “avisos” de admoestação, mas não agiam de fato.
Em 1882, houve reação séria, quando o VISCONDE DE PARANAGUÁ – dizem que por telegrama assinado no camarote do Imperador num teatro – suspendeu o orçamento de Pernambuco, cuja insolência na tributação interprovincial e na competição alfandegária excedera da marca. Êsse ato de repulsa ao desplante da Província em arrecadar tributos das mercadorias desembarcadas provocou violenta oposição. Os abusos provinciais sempre despertaram a simpatia de defensores do porte de JOSÉ DE ALENCAR, TAVARES BASTOS e outros, a despeito dos males denunciados pelo VISCONDE DE URUGUAI nos “Estudos Práticos Administrativos”. Trovejaram SILVEIRA MARTINS no Senado, ANDRADE FIGUEIRA e RUI na Câmara. Todos reconheciam a inconstitucionalidade dá lei pernambucana suspensa mas exprobavam o modo também inconstitucional de corrigi-la, sem deliberação do Legislativo nacional, por simples ato do Executivo.
Mas graças à energia de PARANAGUÁ, as assembléias provinciais reuniram-se extraordinàriamente, em 1882, para revogação dos impostos inconstitucionais, enquanto o Parlamento discutiu projeto para contempla-las com 10% dos direitos alfandegários.
O Conselheiro LAFAYETTE, chefe do gabinete em 1883, nomeou uma comissão para rever o sistema tributário, de sorte que se pusesse côbro à tributação interprovincial e à invasão dos direitos de importação pelas Províncias, recebendo estas amparo compatível com suas necessidades.
Os autores da Constituição de 1891 cuidaram de abolir essa caótica sucção das mesmas fontes, discriminando-as em quinhões específicos para os Estados e União. Continuaram, entretanto, as bitributações, sendo chamado a fulmina-las o Judiciário ao invés do Legislativo, como antes mandava a Carta de 1824.
Os Estados do Leste, Nordeste e Norte foram, depois de 1891, os mais afoitos, muito embora Minas, fraudada na exportação pela falta de portos, também se notabilizasse por excessos, a ponto de o deputado BARBOSA LIMA haver exibido à Câmara, que os estampou nos Anais, conhecimentos de impôsto de consumo pagos por duas maletas de roupa ao desembarcar em São João Del-Rei, onde fôra em veraneio. Mas Ceará chegou a estabelecer impôsto de importação discriminatório contra as mercadorias de fora que concorressem com as de sua produção.
A Bahia, mais discreta, por lei de 1892, adotou o eufemismo de “taxa. de estatística” para o impôsto de exportação sôbre as mercadorias destinadas aos demais Estados e para o de importação sôbre ao que dêstes ou do estrangeiro desembarcassem em seus portos. O Supremo Tribunal Federal. proclamou a Inconstitucionalidade dessa lei não só no caso A. J. Belens mas também no de D. F. Moreno, ambos citados pelo consulente em seu memorial.
Acontece que quando foi publicado o acórdão do Supremo nº 82, de 23 de maio de 1896 (caso Moreno), travou-se durante meses em tôrno da tese por êle esposada calorosa e erudita polêmica, através das colunas do “Jornal do Comércio”, entre RUI BARBOSA, que sustentava a inconstitucionalidade dos impostos Interestaduais, tanto para as mercadorias recebidas do estrangeiro ou de outros Estados, quanto das enviadas para êstes, e AMARO CAVALCANTI, defensor do ponto de vista oposto.
Ambos, conhecedores do direito e da jurisprudência dos Estados Unidos, faziam cavalo de batalha de julgados baseados na cláusula “to regulate the interstate commerce” da competência da União. Vê-se que a tese certa procedia do célebre caso Brown and others versus Maryland, no qual o famoso justice MARSHALL declara que a “mercadoria importada não perde seu caráter de importação enquanto permanece nas mãos do importador”… “A faculdade de importar envolve necessàriamente o direito de vender em grosso”, “mas abertos os envoltórios originais, e aplicada ao uso ou posta à venda em retalho, pelo importador ou por outrem, a mercadoria deixa de ser importação podendo ser tributada para os fins do Estado-membro”. Essa doutrina de MARSHALL, adotada pela Côrte Suprema, foi difundida por COOLEY, STORY, BLACK e outros constitucionalistas clássicos dos Estados Unidos.
Para maior clareza de sua tese de que a mercadoria importada está imune de tributo estadual até o momento de ser revendida pelo importador, MARSHALL define o que são artigos importados e direitos alfandegários ou de importação:
“What, then, are imports? They are the articles themselves which are brought into the country. A duty on imports, then, is not merely a duty on the act of importation, but is a duty on the thing imported. It is not confined to a duty levied while the article is entering the country, but extends to a duty levied after it has entered the country“.
Outros julgados do Supremo castigaram os Estados recalcitrantes, alguns dos quais se justificavam alegando legítima defesa, ou direito de retaliação, contra outros que oneravam suas mercadorias à entrada ou o faziam às matérias-primas e alimentos, à saída. Presidentes da República e ministros da Fazenda procuraram chamar ao bom senso os Estados desatinados, proibindo que as alfândegas federais colaborassem na arrecadação dêsses tributos estaduais, já que não podiam recorrer à medida drástica, do VISCONDE DE PARANAGUÁ em 1882. Ao governador do Pará, em abril de 1897, foi comunicado pelo ministro que não esperasse qualquer ajuda federal à arrecadação do impôsto estadual sôbre mercadorias importadas nem sôbre o charque do Sul. Antes, RODRIGUES ALVES, na circular n.º 51 de 26 de novembro de 1896, ordenara às alfandegas que não prestigiassem a ação dos Estados na arrecadação de tributos inconstitucionais com o disfarce de taxas de estatística, giro, cais, etc.
Que fêz a Bahia escarmentada pelo repúdio de seu “impôsto de estatística” por parte do Supremo? Uma testemunha da época no-lo conta:
“Mas o Estado ainda tem um recurso: além do tributo adicional do § 3.º do art. 9.° da Constituição (1891) tem o impôsto de consumo, que gravará indiferentemente o produto nacional, o estrangeiro e o local. Para êste, porém, que é o que se deseja proteger, recorre o Estado à criação de prêmios.
“Sei que o Estado da Bahia vai criar o prêmio de 100 réis por litro de álcool desnaturado produzido no Estado. Êle poderá elevar êsse prêmio a 1$ e taxar o consumo na Bahia a 1$ o litro também. Pergunto: qual fica gravado? Naturalmente o produto estrangeiro ou “mesmo nacional, pois que o local, que o único consumiu, reaverá pela produção como prêmio o que tenha pago de impôsto de consumo” (discurso do deputado BERNARDO HORTA, na Câmara, em 24-9-903).
O pandemônio da tributação interestadual atingiu a tal nível, que o ex-ministro da Fazenda e deputado SERZEDELO CORREIA, em 6 de julho de 1900, num discurso dramático em que alude às represálias tarifárias entre Estados e ao protesto das Associações Comerciais e das de Empregados no Comércio, em todo o país, invocou o magno interêsse político da unidade nacional e o econômico da preservação do mercado interno comum, para fundamentar o projeto n° 56-1900, destinado a regular a competência estadual em impostos de exportação e a vedar “taxas ou tributos que sob qualquer denominação incidam sôbre gêneros estrangeiros” “ou de produção de outros Estados”. Foi dessa proposição que se originou o substitutivo ARNOLFO AZEVEDO, afinal sancionado como lei n.º 1.185, de 11 de junho de 1904.
Os materiais legislativos pertinentes a êsse diploma, e publicados no volume de 600 páginas, revelam estudos aprofundados e magníficos desde o parecer de cêrca de 100 páginas, de ANÍSIO DE ABREU, aliás contrário à iniciativa, até discursos sensatos e ilustrados de alguns dos maiores homens públicos da época: DAVI CAMPISTA, CALÓGERAS, BARBOSA LIMA, ARNOLFO AZEVEDO, AUGUSTO DE FREITAS, JOÃO LUÍS ALVES, FELISBELO FREIRE, FAUSTO CARDOSO e outros, dentre os quais JESUÍNO CARDOSO. Os dois discursos dêste são uma exposição do mais alto quilate, quer do ponto de vista, histórico e literário, quer do ponto de vista jurídico, político e econômico, em defesa do substitutivo ARNOLFO AZEVEDO (“Documentos parlamentares, Impostos interestaduais”, Paris, 1914, págs. 249 e segs.).
A lei n.º 1.185, de 1904, fruto dessas fadigas e provações, estabeleceu no artigo 3.º que “as mercadorias estrangeiras ou nacionais, que não tiverem similares na produção do Estado, só poderão ser taxadas ou tributadas, quando constituírem objeto de comércio a retalho ou depois de vendidas pelo importador”.
Em resumo, o Congresso, exercitando pela primeira vez a competência para regular o direito financeiro interlocal, hoje consagrada pelo art. 5.º, XV, b, da Constituição de 1946, adotara a tese de MARSHALL no feito Brown versus Maryland, decisão essa fundada nas atribuições da União para regular o comércio entre Estados (a mesma do art. 5.°, XV, k, de nossa Carta política), vedou tributos estaduais “sob qualquer denominação”, quanto a mercadorias estrangeiras ou de outros Estados, salvo se não forem discriminatórios os gravames e as coisas a serem tributadas estejam “incorporadas ao acervo de suas riquezas”.
Anos depois da lei de 1904, Estados e Municípios reincidiram nos impostos interestaduais e padeceram a censura do egrégio Supremo Tribunal Federal, que firmou a jurisprudência de só poderem ser tributadas por um Estado as mercadorias importadas de outros, ou do estrangeiro, quando elas já estivessem integradas no comércio interno e incorporadas à riqueza local, mas ainda assim sem discriminações (acs. do S. T. F., de 22 de outubro de 1919, na “Rev. de Direito”, vol. 62, pág. 288; de 21-5-921, na mesma revista, vol. 69, pág. 474; e de 7-5-921, idem, volume 66, pág. 1921).
A constitucionalidade da lei n.º 1.185, de 1904, que foi proclamada pelo Supremo Tribunal, em acórdão n.º 1.221, de 24 de outubro de 1906, da lavra de EPITÁCIO, teve confirmação nesses três julgados.
III. O problema nos Estados Unidos
A solução da Côrte Suprema dos Estados Unidos começa com aquêle acórdão Brown versus Maryland (12 Wheat., 1827, 419), quando pelo voto de MARSHALL ficou decidido que o Estado não poderá exigir licença de negociante importador, porque isso significaria meio indireto de colhêr direitos alfandegários. Não pode tributá-lo quando conserva em sua custódia, na original package, a coisa. Mas poderia o Estado de Maryland, ou qualquer outro, tributá-la quando a embalagem “é aberta para uso ou venda a retalho pelo importador, ou quando os gêneros passam de suas mãos para as de um comprador, deixam de ser importação ou uma parte do comércio estrangeiro e podem ser oneradas, pelo Estado”.
Segue-se uma longa série de julgados, através dos quais se consolida, no contraste dos fatos novos, a competência da União para regular o comércio interestadual. Citou-os RUI na polêmica com AMARO CAVALCANTI em 1896. Depois dêsses, outros vieram até nossos dias, no curso de 130 anos.
Será isso uma velharia ultrapassada pelas condições contemporâneas?
Para fugir a delongas, vejamos como o assunto é encarado, agora, pelos mais recentes e categorizados mestres de Direito Constitucional e de Finanças:
“When do the goods become commingled with the goods of the State? One test, the one suggested by Chief Justice Marshall, is: imported become a part of the mass of property of the State, when the original package in which they were imported is broken. This, the so-called original package doctrine, has served since 1827 as a means of determining when the foreign journey of goods has ceased. Although it has not been wholly satisfactory as such a test, it is still used” (BATES e FIELD, “State Government”, 3.ª ed., Harper Bros, N. Y., 1949, pág. 33). Como se vê, perdura a doutrina de 1827, acima exposta e que continua a ser aplicada.
Citando o acórdão Brown versus Maryland e outros, resume W. B. MUNRO: “Incidentally, it may be mentioned that a consignment of merchandise which has been shipped in interstate commerce remains subject to federal jurisdiction until it is sold in the original package or until this original package is broken” (MUNRO, “The Government of the U. S., national, state and local”, 5.ª ed., MacMilian, N. Y., 1950, págs. 402 e 403).
Outro constitucionalista, YOUNG, passa em revista diversos dos julgados sôbre a repressão dos abusos dos Estados em matéria de comércio entre êles, sublinhando: “The real purpose behind many States inspection and licensing laws is to secure the fee which is charged to cover the supposed costs. The States have yielded to the temptation to raise heavy revenues from these fees. Protection of the health and safety of their citizens has been but a pretense” (J. T. YOUNG, “The New American Government and its Work”, 4.ª ed., MacMillan, N. Y., 1947, pág. 464).
Além de fulminar como simples pretextos essas taxas (fees) cobradas das mercadorias de outros Estados, o mesmo publicista adverte prudentemente: “lf these are allowed to continue, state protection will have been completely revived and the purpose of the commerce clause, to free trade from State burdens, will have been frustrated. Free trade between the States has been a cornerstone of our national prosperity. Says Dr. Buell: “Even the most ardent protectionist will admit that the high standard of living and the great technologgical progress of the U. S. rest upon the fact that the U. S. constitutes the largesi free market in the entire world” (idem, pág. 463).
Confrontemos essas lições de constitucionalistas americanos com a dum jurista francês que se especializou no estudo do direito da poderosa República e que procura surpreender, ao longo do tempo, a evolução da jurisprudência da Côrte Suprema no melindroso assunto: “L’exercise par les Etats de leur pouvoir fiscal dans un but protecteur a toujours été condamné. Mais les mesures non discriminatoires, purement fiscalés, frappant directement le commerce Inter-étatique ou susceptibles de faire obstacle a ce commerce ne sont pas nécessairement constitutionnelles”.
Examina os votos vencidos dos juízes da Côrte (dissenters) e as aperturas dos Estados que impressionam os magistrados, mas reconhece a persistência do rigor: “Mais, en 1946, un arrêt de principe fait craindre le retour d’une conception plus restrictive du pouvoir fiscallocal (Caskey Baking Co. versus Virginia: 313 U. S. 117, 1941 etc.). La Cour juge qu’un impôt; même non discriminatoire, et également applicable à toutes les entreprises, dans l’Etat, est inconstitutionnel, car il frappe directement le commerce inter-étatique. Elle rappellela jurisprudence, inscrite dans les centaines de volumes du recueil de ses arrêts, aux termes de laquelle la clausede commerce apporte, en soi, une limite aux compétences des Etats-membres. Le devoir historique de la Cour est de définir cette limite au fur et à mesure des espèces “aussi longtemps que le Congrès n’entreprend pas de prescrire des aménagements précisentre le Gouvernement National et les Etats, quant aux revenus tirés du commerce inter-étatique” (ROGER PINTO, “La crise de l’Etat aux Etats-Unis”, Librairie Ger. Droit et Jurisp., Paris, 1951, págs. 29 a 31).
Não difere da opinião dêsses juristas, a dos financistas, como, por exemplo, SHULTZ e HARRISS: “As the law now stands, any State on local tax which directly or indirectly effects a discrimination against interstate or foreign commerce as a business or against goods brought in from another State or Country, is unconstitutional. Furthermore, there are limitations to the applicationeven of nondiscriminating uniform taxes to interstate business and to property used in interstate commerce. Commodities in interstate commerce not yet arrived at their final destination, and commodities in foreign commerce unsold by the importer or still in their original packages, may not be taxed by the states. Once such goods have come to rest even temporarily, at any stage in the distributive process, or any time after a sale within the State has been consummated, they may be taxed” (SCHULTZ e HARRISS, “American Public Finance”, Prentice-Hall, N. Y., 1949, pág. 188. Em notas figuram modernos acórdãos que fundamentam as palavras dos autores).
Não há necessidade de multiplicar-se a documentação bibliográfica sôbre êsse assunto, que, hoje, continua ainda submetido à diretriz inicial de 1827, preconizada pelo Conselheiro RUI BARBOSA nos primeiros anos da nossa República. Já vimos que, nesses primórdios e até a lei n.º 1.185 de 1904, as retaliações interestaduais ameaçaram a sobrevivência do mercado interno e até a própria unidade política do Brasil. Da gravidade dêsses perigos, fala a realidade americana contemporânea, a despeito do rigor do Congresso e da Côrte Suprema:
“The expansion of our american economy has in no small degree resulted from the free flow of interstate trade and the development of a great nation-wide market which has enabled pripate enterprise to carry on business in all parts of the country. It is so serious import them, that States and Localities have erected tax barriers to interstate commerce and have unduly burdened interstate concerns. The desire for protection (i. e., the attempt to preserve home markets for home products) has predominated in certain mesures, while the ever propelling search for funds has been the motive force in other cases. Conflicts between the requirements of a free national market and the character of State and local taxes has reached serious proportions” (HANSEN e PERLOFF, “State and local Finance in the National Economy” (Norton, N. Y., 1944, páginas 41 e 42). No mesmo sentido, H. GROVES, “Financing Government” (H. Holt Co., N. Y., 1947, págs. 462 e segs., nas quais descreve as retaliações atuais dos Estados americanos).
IV. As Constituições contra os tributos interestaduais
PONTES DE MIRANDA salienta que as Constituições de 1934, 1937 e de 1946 “não podiam ser mais enérgicas” quanto à proibição dos impostos interestaduais, achando que aquelas Cartas vão mais além da “ingênua” lei n.º 1.185, de 1904. Os tributos permitidos, aliás com reserva, pelo art. 2.º dessa lei, que não foi revogada, “sòmente podem ser os do art. 19, n.º IV da Constituição de 1946”. “Quaisquer outros estabeleceriam distinção proibida” (“Comentários”, ed. H. Cahen, Rio, 1947, vol. 1.°, págs. 472 e 473).
Por outras palavras, para o eminente jurista, o Estado, hoje, só poderá alcançar as mercadorias de outros Estados por meio do impôsto de vendas e consignações. A solução não difere, em linhas gerais, daquela da lei n.º 1.185, elaborada na época em que, ainda não tendo sido criado êsse tributo sôbre vendas, o Estado só poderia gravar as mercadorias de outros Estados a título de impôsto de consumo (de competência concorrente no regime de 1891) quando o importador as retalhasse.
O diploma de 1904 só tolerou os impostos locais sôbre as mercadorias vindas de fora, quando – não discriminatórios – as gravassem depois de incorporadas à economia estadual, sendo que, se não tivessem similares, só seriam tributáveis como “objeto de comércio a retalho ou depois de vendidas pelo importador”.
A mens legis pode ser surpreendida nos materiais legislativos, especialmente nos dois discursos do deputado JESUÍNO CARDOSO, em setembro de 1903 (“Documentos parlamentares”, cit., págs. 249 e segs.), que foi quem fundamentou com argumentos históricos e jurídicos de absoluta idoneidade o substitutivo ARNOLFO AZEVEDO, do qual proveio a lei número 1.185.
Nessas orações, que honrariam qualquer Parlamento do mundo, JESUÍNO CARDOSO, hoje esquecido das gerações novas, invoca a tese de MARSHALL de que o “direito alfandegário não é meramente um gravame sôbre o ato da importação, mas um direito sôbre a coisa importada. Não se confina numa exação enquanto o artigo entra no país, mas estende-se como um direito depois da entrada“. O momento em que o Estado passa a ter competência de tributar a mercadoria de outros Estados ou do estrangeiro é aquêle em que ela passa a objeto de uma venda por parte do importador: “… os gêneros vindos de um Estado para outro cessam de estar em trânsito e podem ser sujeitos à tributação, no momento em que chegam ao lugar do destino e são expostos à venda“. Nunca antes.
Pois êsse pensamento subjacente à lei n.º 1.185 é o que ainda ilumina o problema sob a égide da Carta de 1946, como adiante estudaremos.
Os dispositivos fiscais desta devem ser interpretados dentro do sistema político e jurídico do pais, que reserva à competência federal a regulação do comércio interestadual e exterior, seguindo pois a rota aberta pelo direito americano e pelos mesmos motivos inspiradores da Constituição de Filadélfia. Ainda nesse ponto, ás palavras de JESUÍNO CARDOSO foram lapidares: “Regular é reger, não é taxar, mas taxar é regular. É possível regular sem taxar, mas não é possível taxar sem regular. Só tem competência para taxar o poder que tiver a atribuição de regular”. Taxar, no caso da consulta, é, inevitàvelmente, regular o comércio interestadual.
A Constituição de 1946, como as duas anteriores, não só proibiu os impostos interestaduais no art. 27, mas distribuiu tão rigorosamente os tributos entre União, Estados e Municípios, que se tornam inconstitucionais quaisquer invasões duns na área dos outros. Nesse ponto, atingiu perfeição não lograda pelo direito norte-americano nem pelo argentino.
Na República do Prata, a respectiva Côrte também se guiou pelo voto de MARSHALL no caso Brown versus Maryland, como informa LIÑARES QUINTANA, que o cita:
“En otra oportunidad, la Corte dijo que “para decidir los casos de impuestos que gravaban el comercio interprovincial, era imperioso establecer el momento en que una mercadoria dejaba de estar en tránsito, es decir, bajo el amparo de la libre circulación que garante el art. 10 de la Constitución, y caía bajo la jurisdicción impositiva de una provincia. Y siguiendo la interpretación dada por la sabiduría práctica de la Corte de E. U., señaló hechos que debían tenerse como signos presuntivos de que había cesado el viaje de la mercaduría y quedaba sometida al impuesto. Es así que esas presunciones han sido diversas: o que la mercaduria haya sido objeto de una venta o el envase por maior, tratandose de vino, como signo de que estaba destinada al consumo, o quando haya sido puesto a la venta” (QUINTANA, “El Poder Impositivo y la Libertad Individual”, Alfa, B. Aires, 1951, págs. 267 e 268).
E também os acórdãos citados por R. MARTINEZ RUIZ, em “La Constitución argentina anotada con la jurisprudencia de la Corte Suprema” (Kraft, B. Aires, 1945, págs. 48 e segs.).
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O art. 27 da Constituição de 1946 visou apenas a tornar expresso o que estava implícito no art. 5 °, XV, k.
A observação das repetidas violações por parte dos Estados levou o constituinte a essa redundância, que busca suprimir aquela “coexistência de um sistema legal e de um regime de fato, antagônicos e opostos, quanto à competência dos poderes gerais, regionais e locais, relativa à discriminação de rendas e tributos”, a que se referiu JESUÍNO CARDOSO.
V. Competência estadual para tributar vendas interestaduais
A taxa de estatística aplicada pela Bahia, a partir de 1952, ao volume de compras, consignações e transferências, incorre na censura de inconstitucionalidade, como passaremos a demonstrar, independentemente de sua mácula como violação da competência federal para regular e, portanto, tributar o comércio com o estrangeiro e entre os Estados.
A clarificação dêsse problema jurídico aconselha um confronto entre o direito anterior e posterior à Constituição de 1934 em matéria de impostos de Estado sôbre as mercadorias procedentes do estrangeiro e de outros Estados ou do Distrito Federal.
No regime da Constituição de 1891, os impostos de consumo e de vendas mercantis, não tendo sido expressamente colocados na competência exclusiva da União nem na dos Estados, poderiam ser indiferentemente ou concorrentemente decretados por uns e pela outra. E assim aconteceu de fato quanto ao de consumo, embora o de vendas só viesse a ser estabelecido pela União apenas já nos últimos anos daquele regime.
Em conseqüência, era sob a forma de impôsto de consumo que os Estados, dentro dos limites da lei n.º 1.185, de 1904, poderiam tributar as mercadorias estrangeiras ou de outros Estados, quando incorporadas às suas riquezas, isto é, quando, por venda do importador, perdiam a condição de artigos de importação ou do comércio interestadual e passavam ao comércio intra-estadual.
Por aquela lei, “as mercadorias estrangeiras ou nacionais, que não tiverem similares na produção do Estado, só poderão por êste ser taxadas ou tributadas, quando constituírem objeto de comércio a retalho ou depois de vendidas pelo vendedor” (art. 3.°). Esta disposição não foi revogada pelas Constituições de 1934 a 1946, mas, pelo contrário, delas e da nova legislação federal, recebeu mais rigor.
Hoje, não só as mercadorias estrangeiras e nacionais que não tiverem similares na produção do Estado, mas também as que sofrerem similares, só poderão ser tributadas pelo fisco estadual por meio do impôsto de vendas e consignações quando forem objeto de venda por negociante do Estado, ou no território dêste estiverem em depósito e não forem negociadas pelo produtor de fora.
Desde que, hoje, diferentemente do regime de 1891, o impôsto de indústrias e profissões cabe aos Município e o de consumo à União, só pelo impôsto de vendas poderá o Estado alcançar constitucionalmente as mercadorias provindas do estrangeiro ou de outro Estado. PONTES DE MIRANDA acentua êsse ponto, assim como o maior rigor do direito positivo atual em contraste com a lei n.º 1.185.
Resta saber qual Estado pode decretar e arrecadar o impôsto de vendas em se tratando de mercadorias provindas do estrangeiro ou de outros Estados. Como é histórico, êsse tributo foi instituído pela União, em 31 de dezembro de 1922, como “impôsto de vendas mercantis”. Transferido para os Estados pela Constituição de 1934, surgia êsse problema da competência quando o comércio se realizasse entre êles ou com o estrangeiro.
Para disciplinar a matéria, o Congresso, valendo-se de sua competência para legislar sôbre o comércio interestadual e internacional, começou por elaborar a lei n.º 187, de 15 de janeiro de 1936, cujo artigo 1.° estabelecia a emissão da duplicata pelo vendedor e emprestava ao título efeitos cambiais. Dois anos depois, “considerando a necessidade de dirimir dúvidas que têm surgido acêrca da incidência do impôsto, sobretudo quando ocorre a circunstância da transferência de mercadorias”, outro diploma federal, o dec.-lei n.º 348, de 23 de março de 1938, estatuiu:
“Art. 1.º Fica isenta do impôsto de vendas e consignações a primeira venda feita a comerciante, exclusivamente atacadista, de mercadorias para o lugar em que a mesma se efetue, desde que haja prova do pagamento do impôsto devido pela transferência ou de sua isenção legal, no lugar da procedência, conforme art. 1.º do decreto-lei n.° 140, de 1937.
Art. 2.º Considera-se “transferência”, para os efeitos dêste decreto-lei, a remessa de mercadorias de filiais a depósitos dos próprios remetentes ou vice versa”.
Sabe-se que, em 1937, o Senado, nos têrmos da Constituição de 1934, pronunciou-se sôbre a bitributação entre Pernambuco e Distrito Federal, porque firma domiciliada neste teve de pagar novo impôsto de vendas realizadas por agente naquele Estado para onde fôra transferida a mercadoria (v. ULHOA CANTO, “O impôsto sôbre vendas no sistema tributário brasileiro”, obra colet., Ed. Financ., 1956, pág. 29). Isso explica o dec.-lei n.° 348, que fixou a competência do Estado de origem da mercadoria, desde que vendida a atacadista do Estado outro onde a mesma se achasse depositada à ordem do remetente.
Meses depois, o dec.-lei n.º 915, de 1.° de dezembro de 1938 preceituou que o impôsto “é devido no lugar em que se efetuar a operação” (art. 1.º) isto é, onde tem sede o estabelecimento do vendedor ou consignante, seja matriz, filial, sucursal, agência ou representante, com depósito a seu cargo, salvo quando se tratar de venda efetuada diretamente pelo próprio fabricante ou produtor, caso
em que o lugar da operação será aquêle onde foi fabricada ou produzida a mercadoria” (parág. único do art. 1.°).
Quando as mercadorias forem produzidas num Estado e transferidas para outro pelo fabricante ou produtor, a fim de formar estoque em depósito, filial, etc., o impôsto será pago adiantadamente, por ocasião da saída, ao Estado onde se realizou a produção (art. 2.º, § 1.º).
Ao serem vendidas ou consignadas no Estado para o qual foram transferidas, o impôsto local por essa primeira operação feita pela firma que as transferiu recairá apenas sôbre a diferença a mais no preço originário (§ 2.º do artigo 2.º).
Finalmente, o dec.-lei n.º 1.061, de 20 de janeiro de 1939, trouxe mais outro esclarecimento: quando o comerciante de fora dum Estado, neste adquire e estoca mercadorias, em mãos do vendedor ou em armazéns gerais etc., o lugar da operação, para efeitos fiscais, é o da situação do depósito.
Logo, em resumo, a competência de tributar é:
a) do Estado onde foi fabricada ou produzida a mercadoria se ela é vendida pelo próprio produtor;
b) do Estado da sede do vendedor, seja matriz, filial etc., desde que nele esteja depositada a mercadoria;
c) do depósito da mercadoria se esta foi adquirida e estocada para ser vendida por negociante de fora do Estado.
Em qualquer hipótese, a competência nunca é do Estado onde se acha estabelecido o comprador domiciliado fora da sede ou depósito do vendedor.
Aquêles decretos-leis alicerçados no poder da União para regular o comércio exterior e entre os Estados no regime de 1937 e, depois de 1946, também no art. 5.º, XV, b, da Constituição atual, tiveram sua constitucionalidade reiteradamente proclamada por vários acórdãos do Supremo Tribunal Federal, que os tem aplicado repelindo enèrgicamente o recrudescimento da tributação interestadual. Por exemplo:
“O impôsto de vendas é cobrado no lugar da produção” (dec.-lei n.° 915) – Acórdão unânime do Supremo Tribunal Federal, pleno de 22-9-952, relator ministro RIBEIRO DA COSTA, no recurso extraordinário n.º 15.606, na “REVISTA FORENSE”, vol. 164, pág. 144 ou “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 42, pág. 87. Minas Gerais pretendia que, pelo dec.-lei n.º 1.061, lhe cabia o impôsto, porque o Moinho Fluminense tinha depósito em seu território, embora fôsse produtor sediado no Distrito Federal. Declarou o relator:
“Rege a matéria o disposto no dec.-lei nº 915, de 1° de maio de 1938, art. 1.º e seu parág. único, estatuindo que, se se tratar de venda efetuada diretamente pelo próprio fabricante ou produtor, o lugar da operação em que o impôsto será, devido será aquele onde fôr fabricada ou produzida a mercadoria, princípio êsse que o art. 2.º §§ 1.º e 2.º, do citado decreto-lei ainda reitera.
“Está demonstrado, igualmente, que o artigo único do dec.-lei n.º 1.061, de 20 de janeiro de 1939, não dispôs de forma a alterar o princípio contido no artigo 1.º do dec.-lei n.º 915, de 1939.
“Fizera notar o eminente Sr. ministro ANÍBAL FREIRE, no recurso extraordinário n.º 6.465, do Piauí: “Infirmou-se, neste Tribunal, com sólidos argumentos, que será inútil reproduzir, tal a notoriedade do assunto, que o impôsto é devido no local da produção e procedência da mercadoria”.
“O impôsto de vendas e consignações”, disse o saudoso ministro KELLY, “grava as operações dessa natureza onde quer que se efetuem, obrigando o vendedor ao pagamento do respectivo sêlo no local da celebração do contrato. Não é um tributo a incidir sôbre a mercadoria vendida ou consignada, mas um crédito fiscal lançado exclusivamente sôbre a operação realizada. Destarte, êle ou não pode recair sôbre a entrega efetiva ou simbólica de coisa vendida ou consignada, mas sôbre o valor da transação, onde foi feita e ajustada, sob a forma de um contrato de compra e venda, definitivamente concluído” (voto proferido no rec. ext. n.º 4.414, julgado em 23-10-941, in “Diário da Justiça”, apenso ao n.º 75, 31-3-942, pág. 952).
“Isso pôsto, desprezo os embargos”.
Ver revista e volume citados, pág. 141, ou na “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 42, pág. 83, o acórdão da 2.ª Turma, de 26 de agôsto de 1952, recurso extraordinário n.° 20.033, relator ministro AFRÂNIO COSTA.
“O venerando aresto recorrido afina com a jurisprudência dêste Tribunal, de que nos casos em que o produtor expõe e vende seus produtos através de agências, sucursais, etc., é o impôsto devido no lugar da procedência do produto ou de sua fabricação e não aquêle em que são vendidos ou entregues ao comprador”. Declara a constitucionalidade dos decs.-leis n.º 915 é 1.061. Acórdão unânime da 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, relator ministro OROZIMBO NONATO, no recurso extraordinário número 15.426, “REVISTA FORENSE”, vol. 151, pág. 137, ou na “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 34, pág. 124.
Acórdão unânime da 2.ª Turma, Supremo Tribunal Federal, 18 de julho de 1950, recurso extraordinário n.º 12.954, relator ministro OROZIMBO NONATO, in “Diário da Justiça”, apenso ao n.º 95, ed. de 25 de abril de 1952, pág. 2.089.
“Impôsto de vendas e consignações; dêle estão isentos os depósitos da própria fábrica para distribuição de produtos industriais, quando no local da fabricação sôbre a mesma mercadoria foi “pago o impôsto” – Acórdão unânime da 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, de 26-6-951, recurso extraordinário n.º 8.068, relator ministro OROZIMBO NONATO, no “Diário da Justiça”, apenso ao n.° 44, de 23 de fevereiro de 1952, pág. 657.
E, como essas, várias outras decisões, que testemunham a benemérita ação saneadora do Supremo contra as repetidas tentativas de restauração do famigerado tempo dos impostos interestaduais. Embora não sejam pròpriamente o caso da consulta, essas tentativas consideradas pela egrégia Côrte podem ser vistas com outros tributos no acórdão de 9 de julho de 1952 (apenso ao n.º 239, “Diário da Justiça”, 14-10-952, pág. 4.757); acórdão de 16 de maio de 1951 (apenso ao n.º 15, de 19 de janeiro de 1953, pág. 199), etc.
A legislação federal e a jurisprudência que acabamos de citar mostram que, após uma evolução de meio século, vingou a tese de RUI BARBOSA, exposta a partir de 1896, em vários trabalhos que o Prof. HOMERO PIRES em boa hora coligiu (“Comentários à Constituição Federal”, a de 1891, vol. 1, págs. 385 e seg.). A mercadoria de fora do Estado, seja estrangeira, seja de outros Estados, só é tributável quando o comprador local a revende. Com êste ato, ela entra no comércio intra-estadual sujeito ao fisco do Estado importador.
As disposições constitucionais e legais, que preservam o comércio exterior e o interestadual, são uma blindagem jurídica para o alvo político e econômico da mais alta importância – a unidade do território, base do vasto mercado interno sem o qual o país jamais atingirá seu desenvolvimento como potência em todos os sentidos. A inópia de alguns legisladores estaduais nem sempre descortina essa visão do futuro. O fato, aliás, também aconteceu nos Estados Unidos, onde a Côrte Suprema, inflexível desde MARSHALL na repulsa à tributação suicida, recebeu o maior elogio tanto mais honroso quanto foi escrito pelo seu crítico mais ousado e irreverente:
“À sombra dessa doutrina (a da Côrte desde Brown versus Maryland), nós nos transformamos no maior dos mercados internos no mundo, tão grande que algumas pessoas costumam dizer que não necessitamos de qualquer comércio com o estrangeiro” (CURTISS, “Lions under the throne – a study of the Supreme Court of U. S.”, Mifflin, Co., Boston, 1947, pág. 213).
VI. Caracterização da inconstitucionalidade
Já vimos que a “taxa de estatística” da Bahia, depois de 1952, não é jurídica nem financeiramente uma taxa. Não beneficia efetiva ou potencialmente o contribuinte. Não há, pois, causa jurídica para a formação da obrigação tributária. Logo, é indevida.
Destarte, a Bahia decretou e quer arrecadar um impôsto puro e simples.
Que impôsto será êsse, que recai sôbre as mercadorias compradas pelas firmas baianas dentro de seu território e fora dêle, quer no exterior, quer nos outros Estados e Distrito Federal?
No regime de 1891, as opiniões, desde RUI até AUGUSTO DE FREITAS, reconheciam nesses tributos o impôsto de consumo. Dêsse modo de ver ainda hoje comunga igualmente FRANCISCO CAMPOS em eruditas páginas nas quais reputa inconstitucionais, como disfarces do impôsto de consumo e de tributos interestaduais, as taxas de reajustamento, de estatística e fiscalização do Paraná em condições análogas às da consulta. Nesse trabalho redigido já sob o regime de 1946, o ilustre publicista examina o impôsto que, nos têrmos do decreto estadual n.º 1.336, “recairá sôbre todos os produtos incorporados à riqueza paranaense e produtos destinados e expostos à venda” (FRANCISCO CAMPOS, “Direito Constitucional”, Freitas Bastos, Rio, 1956, 1.º vol., págs. 135 e segs.). Essa “incorporação à riqueza” equivale às compras das leis baianas.
Aceitemos, porém, que seja impôsto estadual de vendas e consignações, dado que a compra e a venda são, dois aspectos do mesmo negócio jurídico. Não há venda sem compra e vice versa. Que nos perdoem o truísmo útil à argumentação. Se a Bahia assenta impôsto no volume global das compras, ela fixa o fato gerador no contrato jurídico de compra-e-venda. Logo, trata-se de impôsto previsto e entregue ao Estado pelo art. 19, n.º IV, da Constituição. Mas pode o Estado exigir êsse impôsto ao comprador ao invés do vendedor?
Em se tratando de comércio intra-estadual, cuja regulamentação não é de exclusiva competência da União, a contrario sensu do art. 5.°, XV, k, parece-nos que, no silêncio de norma geral de direito financeiro do Congresso (art. 5.°, XV, b), pode o Estado assim dispor supletiva ou complementarmente (art. 6.°, todos da Constituição). E com maior razão poderá legisla-lo o Congresso, para o que, aliás, existe projeto do deputado JOÃO MENESES.
Por outras palavras, os dec.-leis números 915 e 1.061 são diplomas de regulamentação do comércio interestadual e, ao mesmo tempo, normas gerais de direito financeiro. Desde que cuidam apenas dêsse comércio entre os Estados, cada um dêstes pode legislar sôbre o comércio intra-estadual, inclusive tributá-lo como lhe convier, sem discriminações de destino e procedência, até que a matéria venha ser objeto de norma geral da União com fundamento no art. 5.°, XV, b e k. Não nos repugna, pois, que um Estado, enquanto não houver norma geral da União em contrário, exija o impôsto de vendas do comprador e não do vendedor, contanto que se limite às operações com mercadorias, comprador, e vendedor que se situem em seu território.
Mas, segundo o direito positivo no país, as compras e vendas do comércio interestadual e exterior são reguladas pelos decretos-leis acima citados. Competente para tributa-las, na forma do artigo 19, IV, da Constituição, é o Estado do produtor, ou do local da operação ou o do depósito da mercadoria. Nunca o do comprador se não concorre uma dessas circunstâncias explícitas nos decs.-leis números 915 e 1.061.
Logo, é inconstitucional e ilegal o imposto de vendas mascarado de taxa de estatística da Bahia tôda vez que incidir sôbre compras de mercadorias vindas do estrangeiro ou de outros Estados e do Distrito Federal ou vendidas pelo produtor, ainda que êste possua depósito no território baiano. Escapam essas operações à competência daquele Estado, que está limitado a exigi-la apenas do comércio interestadual.
A mercadoria estrangeira só é tributável, à entrada, pela União. A lição de MARSHALL evidencia que ela conserva o caráter de importação até sair dos envoltórios e ser vendida pelo importador. Pouco importa que os artigos dos produtores locais também paguem pelas compras e seja uniforme o tributo:
“Not even a uniform tax, not even if the same tax were laid on competing interstate commerce. A State could tax its own local merchants, that was its own affair, but it could not tax the companies from outside the State with whom they were competing” (CURTISS, ob. cit., página 212).
Não importa apenas verificar-se se a taxa discrimina, mas apurar-se se ela é instrumento potencial idôneo para a discriminação: “o poder de tributar envolve o de destruir”.
A Bahia iniciou-a com pés de veludo na suave alíquota de 0,20 %. Quintuplicou-a em dois anos para 1%. Nada impede que a eleve para 3 ou 5%, ou seja, tanto quanto o impôsto de vendas. No dia em que fizer isso, ela pode suprimir êsse imposto sôbre os vendedores e exigi-lo ùnicamente dos compradores. Então, a mercadoria baiana pagará só 3%, mas a dos demais Estados suportará êsses 3% e mais o que pagou ao fisco do Estado onde foi produzida nos têrmos dos decs. ns. 915 e 1.061.
Em resumo, só uma lei da União, com o caráter não apenas de norma geral de direito financeiro (art. 5.º, XV, b) mas também com o de regulamentação do comércio exterior e interestadual (art. 5.°, XV, k), poderá substituir a competência estabelecida pelos decs.-leis ns. 915 e 1.061.
Qualquer gravame que se afaste dos dispositivos dêsses diplomas é inconstitucional, pelos mesmos motivos pelos quais pacificamente tem proclamado o Supremo Tribunal Federal a ilegalidade de outras exações interestaduais sob a forma de impôsto de vendas.
A mercadoria estrangeira só está sujeita a impôsto estadual quando for objeto de venda por negociante local; ou de outro Estado, permanecendo ela em depósito local (dec.-lei n.° 1.061). Tributação anterior atingiria a fazenda na fase de importação, segundo a doutrina da Côrte Suprema desde Brown versus Maryland, tradicionalmente acolhida pelos constitucionalistas brasileiros.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal já desmascarou o expediente de utilizar-se o impôsto de vendas para aplicar-se impôsto de exportação sôbre mercadoria de Estado produtor diverso. As frutas do Estado do Rio e o café de Minas eram fintados pelo Distrito Federal por êsse modo inconstitucional (acórdão de 31-1-955, no ag. pet. n.º 5.805, que cita ainda o de 14-5-954, no ag. pet. n.º 3.944, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 44, pág. 94).
Não é necessário ter alfândegas para gravar-se a mercadoria estrangeira em concorrência com a União: basta criar o Município uma discriminação especial do imposto de indústrias e profissões para as firmas importadoras ou exigir o Estado impôsto de vendas pela compra sem suprimir o mesmo impôsto sôbre a venda. Em conseqüência, os produtos do Estado pagam o tributo uma vez, na venda apenas, e os do estrangeiro e dos demais Estados pagarão duas vêzes – na compra e na venda. Essa mágica sutil mostra quanto fere o comércio exterior e o interestadual, em benefício da produção intra-estadual, a pseudo “taxa de estatística” da Bahia.
Um dos maiores mestres mundiais de direito financeiro, B. GRIZIOTTI, falecido em dezembro de 1956, recomendava para êsse ramo jurídico a interpretação que êle chamou de “funcional”: preocupe-se o aplicador menos com o “como” a lei dispôs, e muito mais com o “por que” ela assim o fêz.
Afortunadamente, no caso da consulta, o “como” – o art. 5.°, XV, b, da Constituição e dos decs.-leis ns. 915 e 1.061 – assegurou clara e eficazmente o “por que” do art. 5.º, XV, k, da Carta de 1946: o território nacional é uma unidade não só política mas também econômica, destinada a assegurar ao desenvolvimento e à prosperidade de todos os brasileiros, quaisquer que sejam os seus Estados, o mercado interno comum, sem barreiras, distinções nem sutilezas insidiosas.
Resposta. À primeira pergunta:
R. A “taxa de estatística – contrôle do movimento comercial”, que, pelas leis ns. 451, 531, 631 e 682, respectivamente de 1951, 1952 e 1954, o Estado da Bahia exige de comerciantes e industriais, tomando por fato gerador o volume de compras, consignações e transferências, não se enquadra no conceito jurídico e financeiro de taxa adotado pela Constituição e pela doutrina pacífica no Brasil e fora dêle.
A segunda pergunta:
R. O tributo instituído pelas citadas leis da Bahia, desde que tem por feito gerador o negócio jurídico da compra-e-venda e consignação de mercadorias, está caracterizado como impôsto sôbre vendas e consignações do art. 19, n.º IV, da Constituição, podendo revestir-se, entretanto, do caráter de direito de importação (Constituição, art. 15, n.° I) quando recai sobre a mercadoria de origem estrangeira, desembarcada na Bahia e antes de essa mercadoria ser objeto de venda no comércio celebrado no território do Estado.
À terceira pergunta:
R. O Estado não tem competência constitucional para, por meios tributários ou por quaisquer outros, exercer o “contrôle do movimento comercial” de seus negociantes e industriais com as praças de outros Estados e do estrangeiro, porque o art. 5.°, alínea XV, inc. k, da Constituição, reserva à União a competência para legislar e, portanto, regular, controlar e decretar impostos, sôbre o comércio exterior e interestadual. Desde que o inc. k da alínea XV do art. 5.° não foi contemplado no art. 6.° da Constituição, não é admissível sequer a legislação nem, portanto, o contrôle, a regulamentação, em caráter suplementar ou complementar, por parte do Estado, que fica restrito a legislar sobre o comércio intra-estadual.
A quarta pergunta:
R. É inconstitucional o imposto de vendas e consignações que o Estado da Bahia, sob o inexato nome de “taxa de estatística – contrôle de movimento comercial”, decretou, pelas citadas leis de 1951, 1952 e 1954, sôbre as compras, consignações e transferências de mercadorias adquiridas ou recebidas do estrangeiro, de outros Estados, Distrito Federal e Territórios, por negociantes, industriais ou quaisquer pessoas estabelecidas no território baiano.
Essa inconstitucionalidade se deduz dos seguintes raciocínios:
a) Os negócios de firmas domiciliadas na Bahia com emprêsas do estrangeiro e de outros Estados, Distrito Federal e Territórios, formam a substância do comércio exterior e do interestadual, para os quais a Constituição reserva privativamente, no art. 5.°, XV, k, a competência de legislar.
b) No exercício do poder de regular êsse comércio exterior e interestadual, hoje reforçado pelo de “legislar sôbre normas gerais de direito financeiro” (artigo 5.°, XV, b), a União, já no regime de 1891, expediu a lei n.º 1.185, de 1904, e, posteriormente, os decs.-leis ns. 348, de 23 de março de 1938; 915, de 1.° de dezembro de 1938; e 1.061, de 20 de janeiro de 1939, que estabelecem as regras de competência dos Estados para tributação de negócios com mercadorias oriundas de fora de seu território. Todos êsses diplomas foram reiteradamente proclamados constitucionais pelo egrégio Supremo Tribunal Federal.
c) Pelos dispositivos dêsses textos federais citados no item anterior, com caráter de “normas gerais de direito financeiro e de regulação do comércio exterior e interestadual”, a Bahia, como qualquer outra unidade federativa, está adstrita a decretar impôsto de vendas e consignações exclusivamente sôbre as operações celebradas por estabelecimentos em seu território, quando tais estabelecimentos, inclusive filiais e representantes, etc., tenham depósito no mesmo território baiano e não pertençam à fábrica ou produtor domiciliado em outro Estado ou no Distrito Federal.
Resta ainda à Bahia tributar livremente e sem discriminações, pela procedência ou destino (Constituição, art. 19, § 5.º), das mercadorias de sua produção ainda que vendidas por agentes noutros Estados se nêles depositadas ou para o território dêles foram transferidas por produtores e fábricas estabelecidos em território baiano. Ou se negociadas por estabelecidos de fora da Bahia, as mercadorias, permanecerem depositadas em território baiano, onde o vendedor de fora da Bahia as adquiriu (dec.-lei n.º 1.061).
d) Logo, em resumo, não podem ser tributadas as mercadorias de fora do Estado sempre que houver violação dos decretos-leis citados. O mesmo ocorre com a mercadoria estrangeira enquanto não fôr objeto de venda pelo importador, porque, nesse caso, o tributo se confundiria com o impôsto de importação, do qual seria mero disfarce
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