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Liberdade de expressão, religião e o papel do Estado-juiz
Ingo Wolfgang Sarlet
22/10/2021
Neste artigo, Ingo Sarlete Jayme Weingartner Neto trazem reflexões acerca do papel do Estado-juiz na garantia da liberdade religiosa e da liberdade de expressão.
Ingo Wolfgang Sarlet
Advogado e Professor
Jayme Weingartner Neto
desembargador do TJ-RS e professor
À vista da recente (20/10/2020) decisão da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível nº 1071628-96.2018.8.26.0100, apelante Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, e apelado Católicas pelo direito de Decidir SC.), verifica-se que a liberdade de expressão, aqui abarcando tanto a liberdade manifestação do pensamento, quanto a liberdade religiosa, volta a ocupar o centro das atenções, mobilizando a opinião pública e publicada, mas também a Igreja e a cena acadêmica.
Trata-se, portanto, de mais uma oportunidade para que, também no âmbito desta coluna, o tema volte a ser enfrentado, inclusive pela peculiaridade do caso concreto submetido ao crivo do Poder Judiciário, mais ainda em virtude das idiossincrasias da decisão acima referida.
Considerações sobre a liberdade religiosa e o princípio de neutralidade estatal
Todavia, antes de tecermos comentários sobre a decisão propriamente dita, é o caso de traçarmos algumas considerações de caráter mais genérico e dogmático sobre a liberdade religiosa e o princípio (e dever) de neutralidade estatal nesse domínio.
O direito constitucional brasileiro consagra um direito fundamental à liberdade religiosa em sentido amplo, compreendido como um feixe de posições jusfundamentais radicado em dados textuais da Constituição Federal de 1988 (nomeadamente, artigos 5º, incisos VI, VII e VIII; e 19, I) e apto a harmonizar a maximização da inclusividade (acolher as confissões religiosas minoritárias e posturas inconvencionais) com a tolerância ao fundamentalismo-crença e o bloqueio ao fundamentalismo-militante. Trata-se de um direito complexo que, nem por isso, deixa de ser eficaz e operacional, inserindo-se nas relações entre as pessoas, físicas e jurídicas, e o Estado — e das pessoas entre si.
Sabe-se, além disso, que, a par dos direitos subjetivos, há uma dimensão objetiva, na qual se destaca o que a doutrina majoritária chama de princípio da neutralidade e que, para os fins deste artigo e simplificadamente, vamos desdobrar em dois princípios básicos: o princípio da separação, que afirma que as igrejas e confissões religiosas estão separadas da estrutura e da organização político-administrativa do Estado, e são, portanto, livres na sua organização e no exercício das suas funções de culto; e o princípio da não confessionalidade, que se pode especificar no que interessa mais de perto ao texto: o Estado não adota qualquer religião (é vedado que estabeleça cultos religiosos ou igrejas), nem se pronuncia sobre questões religiosas, o que exclui subvencionar, embaraçar o funcionamento ou manter com as confissões religiosas relações de dependência ou aliança.
Importa destacar, nesse contexto, que a liberdade religiosa apresente elementos em comum com outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a liberdade de consciência, liberdade de reunião e de associação, entre outras. Assim, a peculiaridade do direito à liberdade religiosa só seria convocada nos casos em que houvesse suspeita “do caráter religioso dos fundamentos da restrição” (indiciada nos casos que não resistiriam à ponderação razoável daqueles direitos com outros bens constitucionalmente protegidos), mas as notas distintivas substanciais do culto religioso “podem justificar a aplicação ao mesmo de um tratamento específico relativamente a outras atividades”.[1]
Nesse sentido, Pontes de Miranda acentuava que a liberdade de associação para fins religiosos, “sem ser para culto, não se subsume, decerto, na liberdade de culto, mas sim na liberdade de consciência e na liberdade de associação, ou na liberdade de manifestação do pensamento”.[2]
Decisões anteriores sobre liberdade religiosa
Pois bem. Há mais de setenta anos, num julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal denegou o Mandado de Segurança nº 1.114 (por maioria, 17/11/1949).[3] A ação, impetrada por um ex-bispo da Igreja Católica, que pretendia erigir uma sua própria Igreja Católica Brasileira, atacava ato do Presidente da República, que aprovara parecer do Consultor-Geral da República “sobre a maneira de assegurar o livre exercício do culto da Igreja Apostólica Romana”, encaminhando-o ao Ministro da Justiça, para cumprimento. No parecer, recomendava-se o uso do poder de polícia da autoridade civil para assegurar à Igreja Católica “o livre exercício do seu culto, impedir o desrespeito ou a perturbação do mesmo culto (…) quando praticadas [manifestações externas] pela Igreja Católica Apostólica Brasileira”.
O parecer nascera em resposta a uma representação do Arcebispo do Rio de Janeiro, que reclamava do objetivo de “mistificar e confundir” do apóstata, do nome adotado “até o culto e ritos”, pois usam “as mesmas vestes e insígnias do clero e bispo romanos, praticam os mesmos atos religiosos da Igreja de Roma (…) adotam os mesmos paramentos, e o mesmo cerimonial do nosso culto externo”.
A decisão da Corte considerou não haver culto próprio da Igreja Católica Apostólica Brasileira do Rio de Janeiro e “causarem confusão as suas práticas religiosas, vestes sacerdotais e insígnias com as existentes nas solenidades externas da Igreja Católica Apostólica Romana, constituindo uma imitação destas, consequentemente violando-se a liberdade desta última Igreja, o que deve ser evitado em prol da ordem pública”.
Pontes de Miranda, ao comentar o caso, não tem dúvida, nem tergiversa: os “votos foram medievais” (Lutero, se ressuscitasse, não obteria o mandamus), ao negar o remédio jurídico impetrado por “bispo, dissidente, que pretendia fundar Igreja nacional”. Pontes ressalvou o voto vencido de Hahnemann Guimarães, do qual transcreveu trecho: o ex-bispo de Maura, D. Carlos Costa, “não quer reconhecer o primado do Pontífice Romano, quer constituir uma Igreja Nacional, uma Igreja Católica Apostólica Brasileira com o mesmo culto católico”. “É-lhe lícito exercer esse culto.”
O voto vencido, segundo Pontes, encontrou infringência, pelo poder temporal, do “princípio básico de toda a política republicana, que é a liberdade de crença, da qual decorreu, como conseqüência lógica e necessária, a separação da Igreja e do Estado (…) [e] dela resultou, necessariamente, a liberdade de exercício de culto”.
Prossegue Pontes de Miranda, referindo que a história da Igreja está repleta destes “cismas, está repleta desses delitos contra a fé”, sendo que “os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os conflitos espirituais resolvem-se dentro das próprias Igrejas; não é lícito que essas Igrejas recorram ao prestígio do poder para resolver seus cismas, para dominar suas dissidências”.[4]
Princípio da separação
Decorre do princípio da separação, no Estado democrático de direito, que a religião não é “assunto dos poderes públicos, mas dos cidadãos”. Liberdade e laicidade (não laicismo, de viés hostil), são vistas como expressão e conteúdo do Estado democrático de direito. Renunciando o Estado a qualquer competência em matéria de verdade religiosa, permanece fiel a um “princípio de não identificação confessional”. A maneira como é acolhido sinaliza o grau de importância conferido pela ordem constitucional ao “princípio da igual liberdade religiosa” (garantia institucional do princípio da igualdade).[5]
Considera-se, em suma, que o princípio da separação, estrutural, aparta as igrejas e confissões religiosas da organização político-administrativa do Estado, no escopo de garantir sua livre organização e livre exercício de culto, reforçando sua funcionalidade para o exercício das liberdades individuais. Já o princípio da não confessionalidade noutra linha, aparta o Estado das questões (matérias) e sujeitos religiosos, e exige uma atuação estatal imparcial. A não discriminação, a seu turno, decorre do princípio da tolerância (que incide inclusive nas relações horizontais entre particulares, pessoas naturais ou jurídicas),[6] dos deveres de proteção[7] e das garantias institucionais do princípio da igualdade, da autodeterminação confessional e da diversidade e pluralismo religiosos.
É de se agregar, pela relevância no presente caso, que a liberdade religiosa não é absoluta, sendo submetida a limites, que abarcam a ordem pública em sentido amplo (segurança pública, saúde pública, direitos e liberdades das demais pessoas, dentre outros).
Descartamos, porém, em interpretação sistemática e acompanhando Jónatas Machado, o limite dos bons costumes (ainda que na roupagem de moral pública), cuja vagueza semântica autorizaria a imposição de visões de mundo fixadas e discriminatórias e que podem ser utilizados como “conceitos de atalho” (shortcuts) “para justificar a restrição ou mesmo a neutralização de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, de imprensa, de manifestação, de religião, de uma forma subtraída a qualquer avaliação crítica”.
Note-se — igualmente de acordo com Jónatas Machado — que as razões fundadas na categoria da moral e dos bons costumes surgiram como “instrumentos de racionalização autoritária da imposição heterônoma de uma determinada concepção do bem, através do monopólio da coação legítima” – daí o “relativo descrédito” em que caíram nas doutrinas constitucionais pluralistas, pós-tradicionais ou pós-teológicas”, frequentemente funcionando como “instrumento de luta política e cultural”.[8]
Análise da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo
Ora, voltando o nosso olhar para a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, justificadamente alvo de tanta celeuma, esta determinou a abstenção do uso da expressão “católicas” no nome da associação requerida, cuja atuação e finalidade — a defesa da possibilidade de levar a efeito interrupção voluntária da gravidez — revelariam pública e notória incompatibilidade com os valores adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral.
De acordo com o julgado, o objeto da atuação da requerida implicaria “violação à moral e bons costumes”, havendo evidente contrariedade ao bem e interesse públicos, o que vedaria até o registro de ato constitutivo de pessoa jurídica em tais circunstâncias, a teor do artigo 115 da lei 6.015/73. Outrossim, manter o “católicas”, para além de ferir notoriamente o Direito Canônico, se traduziria em “inegável desserviço à sociedade, não interessando a quem quer que seja a existência de grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade”.
Além disso, a requerida estaria violando o disposto no artigo 7º do Decreto 7.107/2010, segundo o qual a República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.
No que diz respeito à liberdade de expressão, esta, ainda de acordo com a decisão, não estará minimamente prejudicada, podendo a associação requerida defender seus valores (inclusive o aborto) como bem entender, “desde que utilize nome coerente, sem se apresentar à sociedade com nome de instituição outra que adota pública e notoriamente valores flagrantemente opostos”.
Além disso, segue o decisum, a requerida, nos termos do art. 187 do Código Civil, incorreu em “flagrante ilicitude e abuso de direito no caso concreto pela notória violação à moral, boa-fé e bons costumes na atuação da requerida sob tal nome”, destacando que o fato de nominar-se católica “sem autorização eclesiástica/canônica”, leva à confusão e dissemina o erro junto aos menos esclarecidos acerca de doutrina sólida, pública e notória, em prejuízo do sentimento religioso, valores e interesses dos fiéis e da associação autora, violando a boa fé e transparência necessárias à construção de uma sociedade mais justa e solidária, objetivo fundamental da República, estabelecido no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal.
Pese a ampla motivação, em mais de 60 laudas, cerca de metade dos 40 itens que concentram os argumentos da decisão, com a devida vênia, aprofundam-se numa querela espiritual e arbitram uma disputa confessional, endossando a doxa dominante de uma igreja majoritária e fulminando a possibilidade de contestação de determinado dogma por adeptos que, pese se identificarem com boa parte das crenças e práticas da Igreja Católica Apostólica Romana (diapasão utilizado pela decisão), questionam aspectos específicos e buscam hermenêutica diversa e mudança social e legal.
Além disso, a decisão envereda por caminho altamente questionável do ponto de vista constitucional (em especial o dever de neutralidade em matéria religiosa) ao se reportar, como razão de decidir, ao Direito Canônico, como se extrai da leitura do seguinte trecho (p. 16):
(…) a atuação concreta e a finalidade da associação requerida revelam PÚBLICA, NOTÓRIA, TOTAL E ABSOLUTA incompatibilidade com os valores mais caros adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral e universal; 17. Ao defender o direito de decidir pelo aborto, que a Igreja condena clara e severamente, há nítido desvirtuamento e incompatibilidade do nome utilizado em relação às finalidades e atuação concreta da associação, o que viola frontalmente a moral e os bons costumes”; 19. (…) além de ferir notoriamente o Direito Canônico (Cânon 1.398 do Código de Direito Canônico, segundo o qual Quem procurar o aborto,seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão lataesententiae, aquela em que o fiel incorre no momento quecomete a falta previamente condenada pela religião), se traduz em INEGÁVEL DESSERVIÇO À SOCIEDADE, não interessando a quem quer que seja a existência de grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade;
O mesmo se verifica no caso das p. 31 e 32:
(…) E nos termos do Can. 300 do Código de Direito Canônico NENHUMA ASSOCIAÇÃO ADOPTE A DESIGNAÇÃO DE “CATÓLICA”, A NÃO SER COM O CONSENTIMENTO DA AUTORIDADE ECLESIÁSTICA COMPETENTE, SEGUNDO AS NORMAS DO CÂN. 312 (…). Reitere-se que referida doutrina é absolutamente clara, notória e pública. Referidos artigos do citado CATECISMO classificam o aborto como “delito contra a vida” e mencionam o “inalienável direito à vida de todo indivíduo humano”. Confiram-se os artigos 2270 a 2275, que integram a Segunda Seção (sobre os dez mandamentos), mais especificamente sobre o QUINTO MANDAMENTO (NÃO MATARÁS previsto na Bíblia, em Êxodo 20, 13) (…).
À vista do exposto, já resulta evidente que as citações extraídas da decisão falam por sim.
Considerações finais
Para finalizar — e sem que aqui se esteja tomando posição pessoal relativamente ao objeto do embate entre as entidades litigantes —, não há como sustentar, quando nos movemos na arena do sagrado, uma atuação do poder público em geral, e do Poder Judiciário em particular, que não esteja balizada constitucionalmente pelos princípios da separação e da não-confessionalidade, que veda categoricamente aos juízes do Estado democrático de direito endossar ou vetar determinada jogada estratégica no livre mercado de ideias religiosas.
Isso não significa, como já adiantado, que inexistam limites, como se dá nos casos do assim chamado discurso do ódio e do fundamentalismo-militante. Mas não é disso que se trata quando cidadãs brasileiras associam-se para debater tema profunda e moralmente controverso como o aborto, não importando se o fazem movidas (ou não) por inspiração religiosa.
Tudo isso, ao fim e ao cabo, se impõe em homenagem à proteção da liberdade religiosa individual, consignada em todas as principais declarações e tratados internacionais de direitos humanos e nos catálogos de direitos fundamentais de todas as constituições democráticas, ademais de um direito que se consolidou para deixar na poeira da história as inquisições e afastar o Estado Constitucional do perigoso e supostamente liberticida papel de supremo senhor das razões heréticas.
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[1] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 231.
[2] MIRANDA, Pontes, de. Comentários à Constituição de 1967.Tomo IV. São Paulo: RT, 1967, p. 123.
[3] O MS nº 1.114 foi julgado em 17/11/1949, tendo como relator o Min. Lafayette de Andrada (negado provimento, contra um voto), publicado o acórdão na Revista Archivo Judiciário, v. CI/6-15, (jan. a mar/1952). Além do livre exercício do culto, o impetrante pretendia assegurar as atividades da escola mantida pela Associação Nossa Senhora Menina – uma vez impedidos pela polícia (disponível no site www.stf.gov.br, “julgamentos históricos”).
[4] MIRANDA, Pontes, Comentários, IV, pp. 125-7. Em seu estilo único, o autor verbera contra a “profunda regressão política”, submetida a camada dirigente do país, em grande parte, “a uma das três forças internacionais (o capitalismo internacional, a Igreja Católica e o comunismo)”. Tão medievais os votos que “Lutero, se ressuscitasse e pedisse mandado de segurança, não o teria obtido. Para os juízes, Roger Williams não existiu”. Daí celebrar o voto dissidente: “uma consciência vibrou, posto que católico o votante (…) Ainda há consciências livres e brasileiras, no país, para aplaudirem o voto, estritamente jurídico, do ilustre Ministro”.
[5] MACHADO, Liberdade religiosa, p. 310.
[6] Dever estatal de tolerância, não podendo discriminar os titulares de direitos religiosos quando do exercício.
[7] Proteção dos indivíduos e da sociedade civil contra os abusos
[8] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2002, pp. 849-55.