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Liberdade de iniciativa e STF

Ana Frazão

Ana Frazão

20/03/2024

O tema da livre iniciativa e seus contornos é sempre um dos mais importantes dentre os que são tratados nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF). Por essa razão, é necessário fazer uma breve retrospectiva dos principais julgados que, no ano de 2023, exploraram o assunto.

Como ocorre com frequência, muitos dos julgamentos sobre o tema da liberdade de iniciativa referem-se a regulações estaduais que são consideradas inconstitucionais por ferirem a competência da União Federal. Um exemplo foi a ADI 7.208[1], na qual se fixou a tese de que é “inconstitucional, por violação à competência da União para legislar sobre direito civil e seguros (CF/1988, art. 22, I e VII), lei estadual que estabelece obrigações contratuais para operadoras de planos de saúde”. Na oportunidade, foi destacado o fundamento de que é competência da União Federal regular o mercado de planos de saúde, o que inclui a normatização da matéria e a fiscalização do setor.

Em sentido convergente, também na ADI 7.252[2] o STF considerou inconstitucional, por violação à competência legislativa privativa da União, lei estadual que reconhecia o risco da atividade e a efetiva necessidade de porte de armas de fogo para vigilantes de empresas de segurança privada.

No que diz respeito às relações de trabalho, o ano foi bastante intenso, uma vez que diversos pontos da reforma trabalhista foram julgados, o que merece um exame apartado que seria impossível de ser realizado neste artigo. Entretanto, chama igualmente a atenção o grande número de decisões monocráticas em reclamações com o objetivo de afastar o vínculo empregatício, reconhecido nas instâncias próprias, sem nem mesmo apreciar as questões de fato nas quais se baseou a Justiça Trabalhista.

Já tive oportunidade de alertar para o fato de que essa excessiva e indevida interferência do STF nas competências ordinárias da Justiça do Trabalho está, na prática, legitimando a fraude à legislação trabalhista, de forma contrária aos próprios precedentes do STF[3]. Nesses casos, longe de estar sendo cumprido o equilíbrio entre a livre iniciativa e a valorização do trabalho, tal como exige o art. 170, da Constituição, está havendo uma degradação injustificável e desproporcional do trabalho humano.

Livre iniciativa ambiental

Outra seara em que houve bastante discussão em torno dos limites da livre iniciativa foi a ambiental. Nas ADI 7.273 e 7.345[4], o STF concedeu a cautelar para suspender dispositivo que, modificando o processo de compra de ouro, passava a presumir a legalidade de sua aquisição e a boa-fé do adquirente. Entendeu o tribunal que tal medida não atendia ao princípio da proporcionalidade, na medida em que violava o dever de proteção ao meio ambiente, fragilizando a efetividade do controle do garimpo, com graves repercussões na saúde da população, notadamente dos indígenas, e aumento da violência nas regiões garimpeiras.

Além da suspensão da eficácia do dispositivo de lei federal que tratava do assunto, o STF ainda determinou que o Poder Executivo adotasse, no prazo de noventa dias, uma série de medidas, dentre as quais um novo marco normativo para a fiscalização do comércio de ouro e providências para inviabilizar a aquisição de ouro extraído de áreas de proteção ambiental e de terras indígenas.

Ainda na seara ambiental, o STF teve a oportunidade de prestigiar a constitucionalidade de normas estaduais que ampliavam a proteção do meio ambiente. Ao julgar a ADI 6.137[5], o Supremo, reforçando a competência concorrente entre União e Estados para tratar da proteção do meio ambiente e da defesa da saúde, entendeu que “é constitucional — por representar norma mais protetiva à saúde e ao meio ambiente do que as diretrizes gerais da legislação federal, bem como estabelecer restrição razoável e proporcional às técnicas de aplicação de pesticidas — norma estadual que veda a pulverização aérea de agrotóxicos na agricultura local e sujeita o infrator ao pagamento de multa.”

Em sentido semelhante, no julgamento da ADI 6.218[6], entendeu o STF que “é constitucional — uma vez observadas as regras do sistema de repartição competências e a importância do princípio do desenvolvimento sustentável como justo equilíbrio entre a atividade econômica e a proteção do meio ambiente — norma estadual que proíbe a atividade de pesca exercida mediante toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas na faixa marítima da zona costeira de seu território.”

É importante destacar que, neste último caso, ficou vencido o relator, ministro Nunes Marques. De toda sorte, a ementa do julgado destacou que “a livre iniciativa (CF, art. 1º, IV e 170, caput) não se revela um fim em si mesmo, mas um meio para atingir os objetivos fundamentais da República, inclusive a tutela e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225)”.

Outro julgado que merece ser mencionado é a ADI 4.031[7], ocasião em que o tribunal considerou constitucional norma estadual que, independentemente da obrigação de reparar o dano, condicionava a exploração de recursos minerais ao pagamento de indenização monetária pelos danos causados ao meio ambiente.

É visível também o esforço do STF para conciliar o princípio da livre iniciativa com o da proteção ambiental. Isso ficou claro na ADI 7.008[8], quando o STF fixou a tese de que “é constitucional norma estadual que, sem afastar a aplicação da legislação nacional em matéria ambiental (inclusive relatório de impacto ambiental) e o dever de consulta prévia às comunidades indígenas e tradicionais, quando diretamente atingidas por ocuparem zonas contíguas, autoriza a concessão à iniciativa privada da exploração de serviços ou do uso de bens imóveis do Estado”, ressaltado que “a concessão pelo Estado não pode incidir sobre áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, remanescentes quilombolas e demais comunidades tradicionais.”

Outro caso em que se observa o mencionado esforço conciliatório é a ADI 5.014[9], quando o STF considerou constitucional — pois não viola o princípio do pacto federativo e as regras do sistema de repartição de competências — norma estadual que criava modelo simplificado de licenciamento ambiental para regularização de atividades ou empreendimentos em instalação ou funcionamento, e para atividades de baixo e médio potencial poluidor. Assim, ficou chancelado o entendimento de que os estados podem criar procedimentos ambientais simplificados em complementação à legislação federal.

Livre iniciativa e dignidade da pessoa humana

Já no que diz respeito aos esforços para conciliar a livre iniciativa e a dignidade da pessoa humana, caso interessante foi o objeto da ADI 6.989[10], no âmbito da qual o STF entendeu que “é constitucional — pois não verificada violação aos princípios da livre iniciativa (CF/1988, arts. 1º, IV; e 170, “caput”), da livre concorrência (CF/1988, art. 170, IV), da propriedade privada (CF/1988, art. 170, II) e da isonomia (CF/1988, arts. 5º, “caput”; e 19, III), tampouco invasão à competência privativa da União para legislar sobre comércio interestadual (CF/1988, art. 22, VIII) — lei estadual que obriga empresas do setor têxtil a identificarem as peças de roupa com etiquetas em braile ou outro meio acessível que atenda as pessoas com deficiência visual”.

No que tange à propriedade privada e à sua função social, vale mencionar a ADI 3.865[11], em que o Supremo considerou que “são constitucionais os artigos 6º e 9º da Lei 8.629/1993, que exigem a presença simultânea do caráter produtivo da propriedade e da função social como requisitos para que determinada propriedade seja insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária”.

Ainda sobre a função social da empresa, vale mencionar o RE 1.319.935 AgRED[12], oportunidade em que o tribunal reiterou a jurisprudência no sentido de que não é dever legal do segurado de plano de saúde a reposição de verbas recebidas de boa-fé para custear direitos fundamentais de natureza essencial.

Caso interessante foi o julgamento da ADO 20[13], em que o STF reconheceu a omissão institucional do legislador em regulamentar a licença-paternidade prevista no art. 7º, XIX, da CF/1988, fixando prazo de 18 meses para o Congresso Nacional legislar a respeito da matéria, sob pena de, não o fazendo, caber ao tribunal a fixação do período. Tal questão pode ter importantes impactos na liberdade econômica das mulheres, na medida em que vários estudos mostram que uma maior equalização entre o tempo das licenças maternidade e paternidade pode ser determinante para assegurar maior igualdade de gênero no mercado de trabalho.

Ainda merece destaque a ADI 3.953[14], em que o STF tratou do tema da sanção política, entendendo ser constitucional o cancelamento sumário do registro especial de fabricação e comercialização de cigarros decorrente de não cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, desde que se entenda que se trata de medida excepcional, que deve atender aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade, precedido (i) da análise da relevância (montante) dos débitos tributários não quitados; (ii) da observância do devido processo legal na aferição da exigibilidade das obrigações tributárias; e (iii) do exame do cumprimento do devido processo legal para a aplicação da sanção.

Nesta oportunidade, o Supremo deixou claro que não há propriamente sanção política quando as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater agentes que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente, a sua maior vantagem concorrencial. Daí por que a restrição deve ser concebida para regular situações extremas e graves de desequilíbrios concorrenciais, não podendo ser mero instrumento de combate ao inadimplemento.

Notícias falsas

Por fim, ainda merece destaque o RE 1.075.412[15], oportunidade em que o STF entendeu que os veículos de imprensa devem responder pelo abuso de direito consubstanciado em notícias falsas, nos termos da seguinte tese:

  1. “A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Admite-se a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas”;
  2. “Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.

Vale ressaltar que, apesar da importância da liberdade de imprensa, entendeu o STF que o veículo responde por informação falsa que decorrer de intenção deliberada, má-fé ou grave negligência por parte do canal de imprensa, isto é, quando, mesmo presentes indícios concretos acerca da inveracidade da acusação, ele se abstém do estrito cumprimento de seu dever de cuidado, consistente em oportunizar a manifestação da pessoa atingida e em adotar providências e cautelas que objetivem uma análise mais apurada da genuinidade das informações.

Trata-se de importante precedente, por mostrar que a liberdade de iniciativa, mesmo quando vinculada à liberdade de imprensa, não pode ser exercida sem as devidas responsabilidades, princípio que pode e deve ser aplicado a todas as atividades econômicas.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] ADI 7208, Relator Ministro Roberto Barroso, DJe 20.04.2023.

[2] ADI 7252, Relator Ministro Roberto Barroso, DJe 06.06.2023.

[3] Ver FRAZÃO, Ana. Jota.https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/ate-quando-o-stf-vai-virar-as-costas-para-a-realidade-31052023

[4] ADI 7273 MC-Ref e ADI 7345 MC-Ref, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe 10.05.2023.

[5] ADI 6137, Relatora Ministra Carmen Lucia, DJe 20.09.2023.

[6] ADI 6218, Relatora para o acórdão Ministra Rosa Weber, DJe 21.08.2023.

[7] ADI 4031, Relatora Rosa Weber, DJe 09.11.2023.

[8] ADI 7008, Relator Ministro Roberto Barroso, DJe 06.06.2023.

[9] ADI 5014, Relator Ministro Dias Toffoli, decisão de 13.12.2023.

[10] ADI 6989, Relatora Ministra Rosa Weber, DJe 15.08.2023.

[11] ADI 3865/DF, Relator Ministro Edson Fachin, Dje 14.09.2023.

[12] RE 1319935 AgRED, Relator Ministro Edson Fachin, Dje 23.10.2023.

[13] ADO 20, Relator para o acórdão Ministro Edson Fachin, Decisão de 14.12.2023.

[14] ADI 3952, Relator Originário Ministro Joaquim Barbosa, Relatora para o acórdão Ministra Carmen Lúcia, julgamento finalizado em 29.11.2023, ainda sem acórdão publicado.

[15] RE 1075412, Relator Originário Ministro Marco Aurélio, Relator para o acórdão Ministro Edson Fachim, julgamento finalizado em 29.11.2023, ainda sem acórdão publicado.

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