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Indulto presidencial também é subordinado à Constituição
Ingo Wolfgang Sarlet
20/03/2023
Nada obstante o tema possa soar um tanto árido e mesmo desconfortável numa ocasião em que talvez o mais adequado fosse apresentar e discutir uma pauta supostamente mais leve e positiva, a gravidade e urgência do tema no que diz respeito à violação de alguns dos mais tradicionais direitos humanos e fundamentais, recomenda que, na primeira coluna do ainda novo ano de 2023, nos dediquemos a uma breve análise do problema dos limites jurídico-constitucionais ao poder atribuído ao presidente da República, no sentido da concessão de indulto e da comutação de penas.
Considerando que, a teor do artigo 84, XII, da Constituição Federal de 1988 (CF) compete privativamente ao presidente da República “XII – conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”, o que aqui pretendemos polemizar — juntando-nos a tantos outros que já se pronunciaram sobre a matéria, inclusive no ConJur —, é se e em que medida a prerrogativa presidencial constitucionalmente ancorada, encontra-se, por sua vez, submetida a limites expressos e/ou implícitos igualmente estabelecidos pela CF.
Indulto presidencial
Embora tal debate já tenha sido travado publicamente quando do altamente questionável e questionado indulto individualizado concedido pelo então presidente Jair Bolsonaro em favor do, também na época, deputado federal Daniel Silveira, o fato mais recente que deu ensejo a nossa manifestação, é o indulto natalino concedido, pelo mesmo chefe do Poder Executivo brasileiro, mediante o Decreto nº 11.302, de 22/12/2022, publicado em 23/12/2022.
Se no caso do indulto concedido ao deputado Daniel Silveira já se tratava de ato presidencial inquinado, também no nosso sentir, de manifesta inconstitucionalidade, no caso do indulto natalino mencionado, a situação se revela ainda mais gravosa, visto que — a teor do disposto no seu artigo 6º — o Decreto acaba por beneficiar também os 74 policiais militares condenados a penas que variam de 48 a 624 anos de prisão, pelo homicídio de 111 pessoas, na ocasião presas na casa de detenção do Carandiru, em 2/10/1992, episódio tristemente conhecido como “massacre do Carandiru”.
Importa gizar, ainda em caráter preliminar, que, embora o decreto não faça referência expressa aos policiais condenados pelo inominável episódio, que causou repúdio em nível internacional, o indulto os beneficia, visto que, nos termos do seu artigo 6º acima referido, alcança agentes de segurança pública condenados por crimes que não eram considerados hediondos quando foram cometidos [1], o que precisamente é o caso do massacre ocorrido em SP, já há mais de 30 anos.
À vista dos termos do decreto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, propôs — em boa hora — Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.330), requerendo, em caráter liminar, a suspensão, pelo STF, da eficácia do artigo 6º do Decreto, de modo a conter o esvaziamento das condenações impostas aos autores do massacre. Em virtude das férias do relator sorteado, ministro Luiz Fux, a presidente da Suprema Corte brasileira, ministra Rosa Weber, responsável pelo plantão, despachou no sentido de determinar que o presidente Jair Bolsonaro e a Advocacia-Geral da União prestem, no prazo de 48 horas, informações sobre o caso.
A despeito da resposta do presidente da República, sustentando a legitimidade do indulto, por conta da circunstância de que os delitos pelos quais os policiais foram condenados (homicídio qualificado) não eram considerados hediondos quando de seu cometimento (outubro de 1992), visto que tal enquadramento legal se deu apenas em 1994, o procurador-geral da República, dentre outros argumentos a serem colacionados, advoga que o aferição do caráter hediondo do crime se dá quando da edição do decreto de indulto e não no momento da prática do crime.
Em entrevista concedida recentemente, o procurador-geral da República, Augusto Aras. afirmou que “O indulto natalino conferido pelo presidente da República aos agentes estatais envolvidos no caso do Massacre do Carandiru representa reiteração do Estado brasileiro no descumprimento da obrigação assumida internacionalmente de processar e punir, de forma séria e eficaz, os responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade cometidos na Casa de Detenção em 02.10.1992”.
Ainda para Aras, a despeito da natureza política do indulto e da liberdade da qual dispõe o presidente da República para a sua concessão, o decreto presidencial encontra-se vinculado aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, ademais da submissão às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, precisamente no caso do massacre do Carandiru, reconheceu a responsabilidade do Brasil por grave violação de direitos humanos. Por tal razão, o procurador-geral da República entende que a concessão do benefício aos policiais condenados pela prática do crime, consiste em afronta à decisão da Corte de São José da Costa Rica, podendo implicar até mesmo a responsabilização do Brasil por seu descumprimento.
Legitimidade constitucional do indulto
A matéria, por certo, é bem mais complexa, existindo também argumentos sustentando a legitimidade constitucional do indulto, como é o caso, dentre outros, a) da incidência da regra da irretroatividade de norma penal mais gravosa (artigo 5º, XL, CF); b) tanto a graça quanto o indulto podem ser concedidos por critério de conveniência e oportunidade do presidente da República; c) a única limitação constitucional e legal é a de que o benefício não cabe no caso de pessoas condenadas por crimes hediondos e equiparados (artigo 5º, XLIII, CF, e artigo 2º, I, da Lei 8.072/1990); d) a concessão do indulto antes do trânsito em julgado da condenação — o que se verifica no caso dos condenados pelo massacre do Carandiru — não é causa de nulidade e tampouco de indeferimento do benefício, ao que se soma o fato de que o próprio decreto ora discutido concessivo refere expressamente que o indulto se aplica também no caso de condenação provisória; e) a Convenção Americana dos Direitos Humanos, além de não vedar expressamente a graça e o indulto, possui, no âmbito doméstico brasileiro, apenas hierarquia normativa supralegal, estando, portanto, subordinada à CF; f) os homicídios, além de não serem enquadráveis na categoria de crimes de lesa-humanidade, nos termos do disposto no artigo 7º do Estatuto de Roma, não podem ser levados a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional, visto que o Brasil aderiu ao estatuto apenas em 2002, aplicando-se também neste caso a regra da irretroatividade da norma penal mais gravosa [2].
Relativamente ao rol de argumentos acima esgrimidos apontando para a legitimidade constitucional do indulto concedido aos agentes de segurança, no caso, os policiais militares condenados (embora ainda não em caráter definitivo) por sua participação no massacre do Carandiru, algumas notas se impõem, não necessariamente na mesma ordem.
1 – Que tanto a graça quanto o indulto podem ser concedidos por critério de conveniência e oportunidade do presidente da República, não é aqui (e mesmo em geral) objeto de questionamento, mas sim, o fato de que inexiste, em regra, ato do poder público totalmente blindado contra algum tipo de controle judicial, justamente pelo fato de que a discricionariedade administrativa, assim como a liberdade de conformação legislativa, encontram seus limites na CF e na legislação, incluindo aqui também — ainda que com atenção a determinadas peculiaridades — a normativa internacional.
2 – A regra da irretroatividade da lei penal mais gravosa indiscutivelmente não ser pode pura e simplesmente superada e colocada na balança da ponderação, tratando-se não apenas de direito-garantia fundamental constitucional, mas de direito humano insculpido em tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Contudo, o que se sustenta é que o Decreto que concede a graça ou indulto não veicula norma penal, mas sim, benefício que pode — e deve —, quanto aos requisitos de cabimento, ser aplicado com base no regime jurídico vigente quando de sua concessão. Aliás, tal entendimento já encontrou acolhida no STF em pelo menos um caso, julgado em 2013, da relatoria da ministra Rosa Weber.
3 – Os únicos delitos que não são suscetíveis de indulto, tal como previsto no artigo 5º, XLIII, CF, não são os crimes hediondos e equiparados, mas sim, “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Quanto a tal argumento, a resposta, no nosso sentir, constitucionalmente adequada, é a de que o rol constitucional e legal de limitações ao indulto não é taxativo, existindo limites constitucionais implícitos, não sendo vedado ao legislador, desde com base em tais limites fundados na CF, estabelecer novas limitações.
4 – No que diz respeito a tese de que juridicamente possível a concessão do indulto antes do trânsito em julgado da sentença condenatório (caso dos policiais condenados pelos homicídios praticados quando da contenção da revolta na Casa de Detenção do Carandiru), trata-se, salvo melhor juízo, de uma falácia argumentativa e em si contraditória. Isso porque antes do trânsito em julgado não se tem sequer apenamento em definitivo, pois a depender da pena fixada, a concessão do indulto poderá ser inviável. Além disso, admitir um indulto condicionado a eventual condenação, já que inclusive essa poderá sequer ocorrer, definitivamente não soa compatível com a ratio e o telos do instituto.
5 – No concernente ao argumento de que a Convenção Americana de Direitos Humanos não contempla expressamente vedação ao indulto no caso ora discutido, ademais de não ter, na ordem jurídica brasileira, nem hierarquia constitucional e tampouco supraconstitucional, mas apenas supralegal, a resposta que aqui se oferece é de que tal linha de entendimento igualmente não pode prosperar. Com efeito, a ausência de limitação expressa na convenção, por si só não impede aos Estados signatários estabelecer requisitos próprios, desde que não violem os direitos nela consagrados. Já quanto ao argumento da hierarquia apenas supralegal da convenção no Brasil, o que aqui se sustenta é que a hierarquia (seja ela qual for) não exime o Estado brasileiro — perante a comunidade internacional — do cumprimento das obrigações assumidas. Além disso, como já referido, o rol constitucional de limitações não é taxativo e um decreto presidencial não poderia prevalecer, ao fim e ao cabo, sobre uma norma com valor supralegal, ao passo que uma lei elaborada pelo Congresso Nacional àquela se encontra subordinada.
6 – Finalmente, quanto aos argumentos de que os crimes pelos quais respondem os acusados do massacre do Carandiru não se enquadram na categoria de crimes contra a humanidade processados e julgados perante o Tribunal Penal Internacional e que este só passou a ter jurisdição sobre o Brasil em 2002, responde-se no sentido de apontar a irrelevância da questão para o caso ora comentado. O fato de eventuais crimes tipificados no Estatuto de Roma não serem submetidos ao crivo do Tribunal Penal Internacional ou mesmo não serem enquadráveis na moldura típica não afasta a possibilidade de responsabilização na ordem jurídica doméstica, além de não ser obstáculo à responsabilização perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ainda sobre a vedação do indulto em casos envolvendo a grave violação de direitos humanos, invoca-se a arguta lição de Ademar Borges e Pierpaolo Cruz Botttini, em artigo veiculado pela Folha de S.Paulo em 5/1/2022, no sentido de que tanto a Corte Interamericana e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos não admitem a concessão de anistias e indultos amplos e que imponham restrições ao dever de investigação, julgamento e sancionamento de graves violações de direitos humanos. Os autores, além disso, alertam para o fato de que a Corte Interamericana apenas autoriza a renúncia a ações penais por conta de graves violações de direitos humanos quando isso for necessário para negociar o fim de uma guerra, o que definitivamente não é o caso do massacre do Carandiru.
Assim, independentemente da controvérsia em torno da aplicação da regra da irretroatividade da lei penal mais gravosa, da hierarquia dos tratados de direitos humanos no Brasil, da eventual possibilidade de submissão da matéria à jurisdição do Tribunal Penal Internacional e do peso, maior ou menor, dos demais argumentos esgrimidos e relacionados acima em favor da legitimidade do indulto concedido aos acusados pelos crimes praticados quando da operação policial ocorrida na casa de detenção do Carandiru, o que de fato assume inequívoca e determinante relevância é a ilegitimidade intrínseca de uma anistia nessas circunstâncias, seja em termos constitucionais, seja pelo fato de configurar afronta ao direito internacional dos direitos humanos.
Antes de encerrar, já que não nos resta muito espaço, calha invocar texto da lavra de Bernardo de Moraes [3], professor da USP, publicado em 6/5/2022 no periódico Contraditor.com, noticiando que nem mesmo no auge do Império Romano, período marcado pela maior concentração de poder nas mãos do Imperador, a prerrogativa imperial de conceder indultos e anistias (indulgentia principis) em matéria criminal — tanto em caráter individual quanto coletivo – era ilimitada.
Em homenagem ao autor e para espancar qualquer dúvida em relação ao conteúdo de seu articulado, tomamos a liberdade de transcrever as passagens que seguem (grifos nossos):
“(…) Conforme a pena a ser imposta, esses crimes se diferenciavam em capitais e não capitais. No caso (mais grave) dos capitais, poderia ser imposta pena de morte, de banimento e perda da cidadania e patrimônio, de deportação ou de trabalho em minas…
A gravidade dessas penas, o fato delas tocarem o interesse público e de o imperador ser o protetor do ‘populus Romanus’ davam ao príncipe a legitimidade e o fundamento para, em casos especiais, conceder o perdão ou afastar os efeitos da punição (no que se chamava de ‘restitutio’ por ‘indulgentia principis’).
Entretanto, não poderia ser dada a seu bel-prazer. Tratava-se de um exercício de discricionariedade, não de arbitrariedade política. Deveria, portanto, levar em conta as funções da pena e não deveria projetar efeitos maléficos, como sentimento de impunidade.
Dentre os casos de indulto por política criminal, há um grande destaque nas fontes de perdões dados por ocasião da Páscoa cristã. Eram casos de indultos (por sua extensão, poderiam mesmo ser tidos como anistias) que atingiam a grande maioria dos condenados, com exceção dos condenados por alguns crimes considerados graves (pelo mesmo fundamento que a nossa CF proíbe a graça em alguns casos) e dos reincidentes. Em outros termos, a medida não podia favorecer condutas de grande reprovabilidade social ou aqueles que se aproveitavam da presumível habitualidade dela para se manterem impunes(o reincidente é qualificado como ‘indignus humanitate’). Ou seja, a medida não poderia prejudicar a função primordial das penas na época do Dominato: a prevenção geral, sob pena de afetar a ‘disciplina pública’ (não poderiam ser um ‘público decreto de impunidade’).
Por fim, a intervenção do imperador somente podia ter lugar após a conclusão definitiva do julgamento (‘res iudicata’), com a prolação de sentença que não podia ser mais alterada pelo juiz competente” (….).
À vista do exposto, à guisa de síntese conclusiva, não restam dúvidas de que, num Estado Democrático de Direito comprometido com a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana e os direitos humanos e fundamentais, seja no plano interno, seja em nível externo (perante a comunidade internacional), a prerrogativa presidencial de anistiar e indultar, além de não absoluta, não pode, em hipótese alguma, alcançar crimes de suma gravidade, que, além de configurarem graves violações de direitos humanos e fundamentais (não necessariamente crimes contra a humanidade), afrontem decisões emanadas de tribunais internacionais. Que o massacre do Carandiru — o qual, aliás, causou grande e negativa repercussão na esfera internacional — se enquadra nessa moldura, soa mais do que evidente, razão também pela qual é de se saudar enfaticamente a iniciativa do procurador-geral da República no sentido de contestar a legitimidade constitucional do disposto no artigo 6º do Decreto Presidencial nº 11.302, de 22/12/2022. Oxalá seja o STF sensível ao pleito, afirmando-se, mais uma vez, com firmeza, como guardião da obra constitucional.
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NOTAS
[1] Art. 6º – Será concedido indulto natalino também aos agentes públicos que integram os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática. Parágrafo único. O disposto no caput aplica-se, ainda, às pessoas que, no momento do fato, integravam os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição, na qualidade de agentes públicos
[2] Cf. SILVA, César Dario Mariano da. CONJUR, 30/12/22.
[3] Agradecemos ao colega Fábio Siebeneichler de Andrade, Professor Titular da Escola de Direito da PUC-RS, pela indicação do precioso texto.