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Governador – Incompatibilidade do mandato com o cargo de ministro

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CONSTITUCIONAL

REVISTA FORENSE

Governador – Incompatibilidade do mandato com o cargo de ministro de Estado

PARECER

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 150

Revista Forense

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16/05/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 150
NOVEMBRO-DEZEMBRO DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICARevista Forense 150

Ortotanásia ou eutanásia por omissão – Nélson Hungria

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • A inconstitucionalidade do prejulgado trabalhista – Alcides de Mendonça Lima
  • Responsabilidade civil por danos causados por aeronaves estrangeiras a terceiros e bens a superfície Convenção de Roma – Euryalo de Lemos Sobral
  • Sôbre o conceito de Estado – Jônatas Milhomens
  • As autarquias estaduais e as concessões de serviços de energias elétrica – José Martins Rodrigues
  • A filiação adulterina no direito brasileiro e no direito francês – Válter Bruno de Carvalho
  • Recurso ordinário em mandado de segurança – João de Oliveira Filho
  • A habitação como acessório salarial – Carmino Longo
  • Operações bancárias – Francisco da Cunha Ribeiro

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

Osvaldo Trigueiro, deputado federal pelo Estado da Paraíba.

PARECERES

Governador – Incompatibilidade do mandato com o cargo de ministro de Estado

– A acumulação do mandato de governador e do cargo de ministro é inconciliável com o regime de autonomia federativa, que a Constituição da República assegura aos Estados.

PARECER

A hipótese de que um governador possa licenciar-se para exercer o cargo de ministro de Estado encontra geralmente, entre os entendidos, espontânea e imediata repulsa. Todos quantos consideram o assunto rejeitam, como que instintivamente, a possibilidade dessa acomodação. Mesmo sem maior exame, a opinião corrente é a de que a acumulação em causa não é permitida ou, pelo menos, não deve ser tolerada.

Essa primeira impressão reflete a convicção de que a fórmula, que ora se tenta pôr em prática, é inconciliável com o resguardo da autonomia estadual, e inadaptável ao regime de rígida separação que mantém, em esferas inconfundíveis, o govêrno da União e os dos Estados.

A simples idéia de que o chefe do govêrno de um Estado da Federação venha a estar subordinado, hieràrquicamente, funcionalmente e até burocràticamente, ao presidente da República, tem para os federalistas ortodoxos, que consideram a autonomia dos Estados como “o coração da República”, o significado de verdadeira heresia constitucional.

Embora ninguém já hoje sustente, como CAMPOS SALES, que os Estados são entidades soberanas, a autonomia configurada na Lei Magna rejeita a possibilidade da submissão, direta ou indireta, dos poderes locais a qualquer dos órgãos do govêrno da União. Na construção da doutrina republicana, RUI BARBOSA nos ensinou, com. a sua autoridade insuperável, ser inadmissível a acumulação de funções da União e funções dos Estados, porque se trata de “funções opostas, contraditórias, inconciliáveis na mesma pessoa”. E o que êle sustentou é que não se trata apenas de incompatibilidade limitada ao exercício de funções dos dois governos, nas da “inalienabilidade, na mesma pe§soa, de funções da União e funções dos Estados” (“Comentários”, VI, pág. 274).

2. Governador

O governador, via de regra, está vinculado ao compromisso de cumprir a Constituição do Estado e de defender-lhe a autonomia e a integridade (Constituição da Paraíba, art. 49). E entre as atribuições que lhe, são expressamente cometidas, figura a e representar o Estado perante os poderes federais. (art. 52, V).

Ora, os ministros, estão também presos, não apenas ao compromisso de cumprir a Constituição e as leis, mas também ao dever do lealdade e obediência ao presidente da República.

Primeira, questão: Dentro de nosso regime federativo, será jurídica e até humanamente possível, a uma mesma pessoa, harmonizar e cumprir, concomitantemente, deveres e compromissos que como é óbvio, hurlent de se trouver ensemble?

O ideal do federalismo seria o de uma inalterável unidade de vistas entre o govêrno nacional e os dos Estados-membros. Mas isso é apenas o ideal; porque os interêsses e propósitos dêsses governos são freqüentemente conflitantes, e ó regime federal não é, em última análise, senão uma técnica jurídica para á composição dêsses conflitos.

Não aludimos às hipóteses, cada vez mais improváveis, entre nós, de dissídios, profundos, e até de luta armada, entre êsses governos. Mas a própria rotina administrativa do País freqüentemente coloca governadores e ministros em pólos opostos. As relações entre a União e os Estados desenvolvem-se, em larga parte, no plano contratual. Ministros e; governadores, todos os dias, firmam convênios e acôrdos os mais variados, dos quais derivam obrigações, cujo cumprimento pode dar lugar a divergências, que pode evoluir até a necessidade de solução jurisdicional.

Um governador-ministro está naturalmente impedido de contratar e portanto, de transigir e assumir obrigações no interêsse simultâneo da administração federal e da estadual. Como governador, que continua sendo, é compreensível que êle pleiteie favores e vantagens para seu Estado. Como ministro, irão lhe é lícito transigir com o dever funcional de acautelar os interêsses e os critérios administrativos do departamento federal que lhe está confiado. Parece evidente que uma elementar concepção do federalismo está a impedir que a prática do regime possa experimentar deturpações dêsse gênero. Aliás, nem mesmo em direito privado, no terra-a terra das relações jurídicas da vida comum, essa confusão de órgãos, agentes ou representantes, pode ser admitida.

As relações financeiras entre a União e um grande Estado, como o de São Paulo, servem para exemplificar as situações absurdas que podem decorrer da prática Impugnada. Como todos sabemos, há muitos anos o govêrno da União e o de São Paulo discutem as suas contas, sem terem até agora chegado à conclusão de qual dêles seja o credor e qual seja ai saldo a liquidar. Pergunta-se: seria admissível que o governador de São Paulo se licenciasse; viesse exercer a pasta da Fazenda e, como ministro, dirimisse essa velha contenda, porventura renunciando a direito da União para beneficiar o Estado, ou exigindo dêste sacrifício de ordem patrimonial?

A consideração dessa hipótese constitui decerto mais um argumento favorável à tese autonomista, isto é, à tese dos que julgam impossível, em face da Constituição que os órgãos ou agentes dos poderes estaduais sejam, ao mesmo tempo, agentes ou órgãos do govêrno federal, com a subordinação funcional daí decorrente.

3. Mandato e prerrogativas

Importa observar, desde logo, que, apesar de licenciado, o governador continua investido de seu mandato, e no gôzo de tôdas as prerrogativas a êle inerentes. A começar pela prerrogativa de perceber os subsídios constitucionais, que, como ninguém desconhece, são irrenunciáveis.

Enquanto conservar o mandato, o governador tem o privilégio de fôro especial para os crimes comuns (Constituição da Paraíba, art. 54). Como ministro, tem êle também o privilégio de outro fôro especial, tanto para os crimes de responsabilidade como para os de natureza comum (Constituição federal, art. 98).

É admissível essa cumulação de privilégios? Como poderiam ser êles conciliados na prática? A impossibilidade de solução jurídica para os conflitos de competência, que disso pudessem resultar, traz mais um argumento ponderável à tese dos que sustentam que nem o ministro pode ser governador, nem o governador pode ser ministro.

4. Argumento principal

Argumento principal dos que sustentam a tese contrária é o de que, não tendo a Constituição da Paraíba proibido expressamente que o governador possa exercer outro emprêgo, ou cargo de govêrno, isso se torna possível, desde que a Assembléia para tanto lhe conceda licença.

O argumento teria fôrça se não existisse, na Constituição federal, o art. 18.

Na conformidade dêsse preceito, cada Estado se rege pela Constituição e pelas leis que adotar, observados os princípios estabelecidos na Constituição federal. O § 1° vai ainda mais longe, pois impõe aos Estados obediência a tôdas as proibições explícitas e implícitas da Lei Magna. É fora de dúvida, portanto, que o poder de auto-organização dos Estados está delimitado por duas normas fundamentais: a primeira é a da observância dos princípios estabelecidos na Constituição federal; a segunda é a de que há, na Constituição federal, não apenas proibições expressas, mas também proibições implícitas, a que os Estados devem acatamento.

Importa esclarecer, assim, que a Constituição da República não impõe aos Estados apenas a observância dos princípios arrolados no art. 7°, VII, ao regular o instituto da intervenção. Os princípios aí previstos são aquêles cuja inobservância dá lugar à intervenção federal por qualquer de suas formas, mas é fora de dúvida que não são êles os únicos princípios que condicionam a organização política dos Estados. É que êstes estão adstritos à observância de todos os princípios fundamentais da Constituição federal e ao respeito de tôdas as proibições que dêsses princípios implicitamente decorrerem (cf. MAXIMILIANO, “Comentários”, III, pág. 246).

5. Questão da interpretação

Decerto, a identificação dos princípios que a Constituição impõe aos Estados é uma tarefa de interpretação. Nesta haverá sempre pontos de dúvidas para as controvérsias dos doutos. Mas a conceituação dêsses princípios, em nossa doutrina constitucional, pode ser tida como pacífica.

Para SAMPAIO DÓRIA, êles “… são, as bases orgânicas do Estado, aquelas generalidades do direito público que, como naus da civilização, devem sobrenadar às tempestades políticas e às paixões dos homens. Os princípios constitucionais da União brasileira são aquêles cânones sem os quais não existiria esta União tal qual é nas suas características “essenciais” (“Princípios Constitucionais”, pág. 17).

Estes princípios podem ser divididos em dois grandes grupos: de um lado, os que protegem as liberdades democráticas e asseguram as garantias dos direitos dos cidadãos; de outro, os que estruturam a organização do Estado, quer no aspecto do recrutamento dos órgãos de govêrno,, quer no da discriminação das competências do poder público.

Aceitamos todos que a Constituição adota como princípios fundamentais a forma republicana, o regime federativo, a separação dos poderes, a temporariedade das funções eletivas. Êstes os grandes princípios cardeais, mas não os únicos, porque dêles promanam, como derivações naturais, outros princípios implicitamente contidos nos objetivos da Constituição, e necessários à cristalização da ordem política nela estabelecida.

Ainda aqui a lição de RUI BARBOSA é conclusiva: “A incógnita constitucional de cada espécie ocorrente está na consonância entre a maneira de regulá-la e as exigências fundamentais do sistema, a que ela se tem de subordinar. Estabelecido, na Lei das Leis, um principio, formulado um tipo de organização, havemos de considerar (salvas as restrições expressas) como condenadas por êle tôdas as soluções que o contradisserem, como contidas nêle tôdas as soluções que o completarem” (“Comentários”, VI, pág. 272).

Dentro desta ordem de idéias, o princípio da Federação, que é uma das bases do regime, pressupõe Estados dotados de governos autônomos e órgãos próprios, por êles livremente escolhidos. A subordinação, sob qualquer aspecto, de um órgão de govêrno estadual a qualquer autoridade federal representa negação frontal daquele princípio.

De igual modo, a separação rígida de poderes, peculiar ao presidencialismo, repousa na independência dos órgãos respectivos, isto é, na impossibilidade de confusão entre êles, e na inadmissibilidade de que um poder venha a ser corrompido ou anulado pela interferência de outro poder.

Dai haver a Constituição estabelecido como norma essencial do regime e, sobretudo, como meio de extirpar vícios e abusos que tanto contribuíram para o desprestígio das nossas instituições, o mais analítico, o mais completo, o mais rigoroso sistema de inelegibilidades e de incompatibilidades.

6. Ilegibilidades

Nos arts. 139 e 140, a Constituição federal definiu as inelegibilidades. No artigo 48, combinado com o art. 197, dispôs sôbre incompatibilidades.

Nestes preceitos, ao mesmo tempo que se estabelece a norma da incapacidade de pleitearem cargos eletivos, para quantos detenham cargos executivos, adota-se a norma de que os detentores de mandatos políticos não podem aceitar nem exercer qualquer emprêgo público.

Ao princípio de que o ocupante de cargo do Poder Executivo não pode concorrer a qualquer eleição está, ligado o princípio da incompatibilidade da investidura de dois cargos de govêrno na mesma pessoa. De sorte que, em rigor, tôda inelegibilidade (salvo exceção expressa) acarreta Incompatibilidade necessária e implícita, de direito e de fato. Um governador não pode ser eleito presidente da República; por conseguinte, os dois cargos são Incompatíveis. Um chefe de polícia não pode eleger-se deputado; por conseguinte, êle não pode ser simultâneamente uma e Outra coisa. Um ministro não pode candidatar-se a governador; por conseguinte, não lhe é permitido ser ao mesmo tempo ministro e governador.

São êstes princípios de bom-senso político, de moralidade pública, de direito constitucional positivo, que estão no âmago das nossas instituições. É possível alguma exceção a essas normas? Sem dúvida que sim, e a Constituição abriu uma em favor dos membros do Congresso, que podem ser ministros ou secretários. Mas, para que isso fôsse possível, foi preciso que a própria Constituição, contrariando a tradição presidencialista, expressamente dispusesse a respeito.

7. Campo estadual

Os princípios da Constituição federal atinentes a inelegibilidades e incompatibilidades não podem deixar de aplicar-se no campo estadual. Eles não podem deixar de estar incluídos entre os princípios cuja; observância o art. 18 impõe aos Estados.

Ninguém pretende que uma Constituição estadual pode dispor em sentido contrário a qualquer norma dá Constituição federal. As Constituições dos Estados podem inovas em certas matérias, podem dispor supletivamente em outras, podem adotar soluções diferentes das adotadas pelo direito federal. Mas não podem dispor contrariamente aos princípios da Constituição da República.

E certo que as Constituições dos Estados, em geral, reproduzem; ipsis verbis, as normas federais relativas às incompatibilidades. Mas, sei alguma Constituição porventura não o fizesse, é deixasse de copiar o art. 48, poderíamos daí tirar a ilação de que os deputados dêsse Estado estariam livres de quaisquer incompatibilidades, podendo assim aceitar empregos públicos e cumulativamente exercê-los? Não parece juridicamente acertado responder-se pela afirmativa.

E sabido também que as Constituições estaduais reproduzem, mutatis mutandis, os preceitos referentes às condições de elegibilidade para o cargo de governador, entre as quais se inclui a de brasileiro nato. Pode-se admitir que algum Estado não o faça e, em vez disso, expressamente permita a eleição de um estrangeiro para governador? Seria igualmente absurdo.

Ainda, nessa ordem de idéias, poderá algum Estado dizer em sua Constituição que o seu governador não está sujeito a. qualquer incompatibilidade, quando o presidente da República está sujeito a várias limitações dessa espécie? Ninguém decerto o admitiria. E nem isso se pode imputar à Constituição da Paraíba, que não contém qualquer dispositivo contrário a preceito da Constituição federal. O mais que dela se pode dizer é que, a respeito, é omissa, ou silenciosa. Admita-se, mas o que não é aceitável é pretender-se que a Constituição paraibana conseguiu, por omissão, o que não poderia conseguir de forma expressa, ou que, o seu silêncio tenha o condão de anular um princípio da Constituição federal, que deve ser observado pelo Estado, como norma através da qual o nosso direito constitucional define a natureza das instituições e protege a independência dos poderes.

8. A extensão dos princípios do direito federal ao campo estadual

A extensão dos princípios do direito federal ao campo estadual não colide com a autonomia federativa, nem é expediente estranho à nossa tradição constitucional.

O reconhecimento das garantias da Magistratura sob a Constituição de 1891 constitui exemplo clássico. A Constituição federal não assegurou essas garantias à Justiça dos Estados e muitas Constituições estaduais se abstiveram de fazê-lo. Prevaleceu, entretanto, o bom entendimento, consagrado pela jurisprudência do Supremo Tribunal, de que as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, em relação aos juízes estaduais; eram princípios da Constituição federal que os Estados não podiam desconhecer.

Já sob a atual Constituição, tivemos á controvérsia suscitada pela introdução do govêrno parlamentar na Constituição do Rio Grande do Sul. A Constituição federal não proíbe expressamente a solução tentada naquele Estado. Mas o Supremo Tribunal; por unanimidade, tirou do princípio da separação, dos poderes, adotado na esfera federal, uma proibição implícita ao sistema preferido pela Constituinte gaúcha (acórdão de 17 de julho de 1946).

Nesse particular não se tem qualquer dúvida sôbre a orientação de nossa Suprema Corte, cuja doutrina vem reiteradamente impedindo que os Estados contrariem os princípios normativos do governo nacional. Veja-se a respeito o testemunho de TEMÍSTOCLES CAVALCANTI, em sua “Constituição Federal Comentada”, I, pág. 275: “O Supremo Tribunal, ao examinar as Constituições do Rio Grande do Sul, Ceará, São Paulo, deu ao preceito ampla aplicação e considerou inconstitucional tudo quanto as Constituições dos Estados dispuseram em contrário, colidindo com qualquer dos princípios afirmados, na Constituição federal”.

9. Advertência elementar

É advertência elementar, em hermenêutica constitucional, não se poder atribuir ao legislador a intenção de autorizar um absurdo.

Não é admissível, por isso, aceitar-se que uma Constituição que expressamente impõe aos Estados a observância de seus princípios; que determina que os Estados não podem infringir as proibições constitucionais explícitas ou implícitas; que se esmerou em prever todos os casos de inelegibilidades; que traçou as mais severas normas de incompatibilidades, para impedir qualquer forma de acumulação de cargos, de funções e de proventos; não é admissível que essa Constituição houvesse pretendido o absurdo de deixar aos Estados o arbítrio de suprimirem, por dispositivo contraditório, e até pelo silêncio de suas Constituições, essa incompatibilidade e, conseqüentemente, permitirem a prática de atos inconciliáveis com a índole das instituições e com a sistemática de sua ordem jurídica.

Se entendêssemos que ó silêncio das Constituições estaduais autoriza a prática de atos contrários aos princípios da Constituição federal, estaríamos abrindo caminho à restauração de práticas condenáveis, que a nossa evolução democrática já não aceita, por colidirem com as exigências ide aprimoramento do regime democrático, que se tornam mais severas de uma Constituição para outra.

Hoje, seria um governador a ocupar um ministério; amanhã, seriam 10 governadores a ocuparem 10 ministérios. Hoje, um governador seria agraciado com um cartório; amanhã, outro governador poderia estagiar na presidência do Banco do Brasil. Num Estado mais modesto, o chefe do Executivo poderia limitar as suas aspirações à agência do Lóide; outro poderia contentar-se em assegurar, para depois do govêrno, uma diretoria de Caixa Econômica. Dir-se-á que se trata de hipóteses graciosas, que não podem prevalecer como argumento jurídico. Mas a experiência demonstra que coisas dêsse gênero podem ocorrer, em qualquer país, se contra elas não se levantarem as barreiras das leis e a vigilância da opinião pública.

Não se interpreta uma Constituição como um Regimento doe Custas, resolvendo-se tôdas as dúvidas com a simples consulta às tabelas que o acompanham. As Constituições, da União como dos Estados, têm que ser entendidas mais em seu espírito do que em sua letra, com imperativa harmonização de princípios, que não permite contradições chocantes ou adaptações ilógicas.

Temos como certo que a interpretação sistemática dos nossos textos constitucionais veda a confusão, na mesma pessoa, dos cargos de governador e de ministro. Isso, que está expressamente proibido, como regra, no direito federal, não está permitido expressamente em nenhuma Constituição estadual, a começar pela da Paraíba.

E dispensável entrar-se na apreciação dos aspectos políticos do caso, que poderá permanecer como exemplo isolado, mas também poderá proliferar com tal intensidade que, de agora por diante, os chefes dos governos estaduais não se contentem em indicar candidatos e prefiram indicar-se a si próprios a os ministérios. Não é demais lembrar que o novo regime procurou impedir, através de vários expedientes constitucionais, a volta à política dos governadores. Seria deveras surpreendente que, pela malha que se procura abrir no sistema constitucional, o retôrno a um estilo de govêrno definitivamente proscrito se verificasse por forma tão exacerbada.

10. Está expresso que os ministros são inelegíveis para os governos dos Estados. É certo, portanto, que um ministro; em nenhuma hipótese, pode passar a governador, conservando o lugar que tem no ministério. A Constituição proíbe, pois, que um ministro seja governador, quer acumula, quer não acumule o exercício das duas funções. E êste um princípio claro do direito constitucional federal, que na prática não pode ser anulado ou subvertido.

Pretende-se, entretanto, que uma simples alteração na ordem dos fatôres, ou na colocação das palavras, anule o preceito e firme norma contrária. Em nenhuma hipótese, de acordo coxas a Constituição da República, um ministro pode vir a ser governador, porém, com uma simples transposição de têrmos, tudo se transforma de tal modo que um governador pode vir a ser ministro. Ainda que isso constasse da Constituição da Paraíba, nunca se poderia pretender que esta revogasse a Constituição federal no tocante às incompatibilidades dos ministros. É noção de cartilha que, mesmo no campo da competência concorrente, o direito estadual jamais pode prevalecer sôbre o direito federal.

Insiste-se, porém, em que não há acumulação de funções, porque, para exercer o cargo de ministro, o governador entrou em licença. O argumento não colhe, porque a incompatibilidade diz respeito à investidura em cargo de govêrno por quem já exerce outro cargo de govêrno. Aliás, o princípio constitucional impeditivo das acumulações refere-se a quaisquer cargos e não ao exercício cumulativo de mais de uma função (Constituição federal, artigo 185).

11. Constituição republicana

A hipótese já foi objeto de discussão sob a primeira Constituição republicana, cujo art. 50 vedava aos ministros de Estado “acumular o exercício de outro emprêgo ou função pública”.

Pretendeu-se que o que se proibia era apenas a acumulação de exercício, o que, a contrario sensu, permitia a acumulação de investidura em dois cargos de govêrno.

Foi ainda RUI BARBOSA quem fulminou a distinção especiosa com que se pretendia contornar um dos princípios constitucionais do regime. Na discussão de um projeto sôbre incompatibilidades, cuja disciplina competia então ao legislador ordinário, foi suscitada hipótese semelhante à que ora apreciamos. Sôbre a matéria, doutrinou o mestre: “Desde que, adotamos a forma federativa de govêrno, devemos supor admitidas pela Constituição tôdas as conseqüências dessa forma, que ela estabeleceu. Ora, é previsto que a República Federativa siga uma forma de descentralização mais adiantada pelo menos que aquela que existia sob a Monarquia unitária, sob o Império centralizado. Entretanto, nos piores dias da centralização imperial, nunca se sonhou que um ministro de sua majestade pudesse reunir na sua pessoa as condições de conselheiro do rei e presidente de Província”. (Há um aparte) “São coisas diferentes. Não havia incompatibilidade lógica na aliança entre essas duas funções; pelo contrário, existia até afinidade e correlação mútua entre elas; ambas eram, por assim dizer, emanações da mesma fonte, irradiações do mesmo centro, porque o poder que administrava as Províncias era o que governava o pais; não havia, pois, monstruosidade lógica, a combinação não a encerrava, mas feria o sentimento moral da população imprimiria a centralização no seu caráter mais estrito, mais ferrenho, mais odioso, mais pessoal; arrancaria à centralização a máscara sob que se disfarçava. Pois bem! Por ódio à centralização fundou-se a República, traçou-se Profundo círculo de circunvalação entre os Estados e o poder central, discriminaram-se as atribuições, declarou-se que os Estados se governariam a si mesmos, e de que modo se vem agora – executar êste programa, completar esta transformação? Dando aos secretários do presidente da República privilégios com que nunca sonharam os ministros do imperador…” (“Comentários”, III, pág. 413).

É preciso ter em consideração que RUI BARBOSA assim pensava ao interpretar uma Constituição que deixou as incompatibilidades para o plano da legislação ordinária, è que aos ministros só proibia, expressamente acumular o exercício de outro emprêgo ou função pública. Pode-se imaginar o que êle diria hoje, diante de uma Constituição que explicitamente veda aos ministros se elegerem governadores, e que é mais rigorosa do que as anteriores na definição das incompatibilidades e na proibição das acumulações de cargos!

12. As razões aqui desenvolvidas são, em resumo, as seguintes:

a) A acumulação do mandato de governador e do cargo de ministro é inconciliável com o regime de autonomia federativa, que a Constituição da República assegura aos Estados.

b) O governador, enquanto conservar o mandato, está prêso ao compromisso de defender a autonomia e os interêsses de seu Estado, que lhe cumpre representar perante a União. Esse dever não se harmoniza com a situação de dependência hierárquica ou subordinação funcional em que se acham os ministros com relação ao presidente da República.

c) Enquanto permanecer investido no mandato, o governador goza prerrogativa de fôro especial para os crimes comuns. A existência de privilégio idêntico para os ministros torna juridicamente inadmissível a investidura simultânea nos dois cargos.

d) Enquanto não se extinguir o seu mandato, o governador tem direito aos subsídios previstos na Constituição do Estado, os quais são irrenunciáveis. A Constituição federal, que veda expressamente a acumulação de quaisquer cargos, proíbe conseqüentemente a acumulação de um mandato estadual e de um cargo de govêrno federal com os proventos de ambos, embora não ha a cumulação de exercício.

e) A Constituição federal instituiu um sistema de inelegibilidades e de incompatibilidades de que resulta (salvo as exceções expressas) a impossibilidade de alguém ocupar dois cargos de govêrno: E êste um princípio que os Estados devem observar, ex vi do art. 18.

f) Em suas Constituições e em suas leis não podem os Estados infringir as proibições explicitas ou implícitas da Constituição federal, entre as quais figuram as que dizem respeito à não-acumulação de cargos, de funções, de exercício ou de proventos, quer no âmbito federal, quer no estadual, quer no municipal, ressalvadas as exceções constitucionais expressas, que não se aplicam à hipótese em discussão.

g) A Constituição da Paraíba não contraria a Constituição da República, nem poderia vàlidamente fazê-lo. Ela será apenas omissa, parecendo intuitivo que uma omissão, numa Constituição estadual, não tem o poder de revogar, anular ou deixar de aplicar normas do direito federal, a que os Estados devem obediência.

h) Se, pela Constituição federal; o ministro, em nenhuma hipótese, pode ser eleito governador, o que torna as duas investiduras forçosamente incompatíveis, afigura-se destituído de base jurídica admitir-se que êste princípio do direito federal seja violado por meio de simples jogo de palavras, ao sustentar-se que, no caso em aprêço, o ministro não é governador, o governador é que é ministro. E nosso parecer, em conclusão, que os pressupostos essenciais do regime federativo tornam incompatíveis o mandato de governador de Estado e o cargo de ministro do govêrno da União. Essa incompatibilidade, sob a Constituição federal de 1946, deriva de normas de direito positivo, cuja transgressão atenta contra a ordem jurídica estabelecida.

Rio de Janeiro, julho de 1953.

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