32
Ínicio
>
Clássicos Forense
>
Constitucional
>
Revista Forense
CLÁSSICOS FORENSE
CONSTITUCIONAL
REVISTA FORENSE
Discriminação De Côr – Recusa Ou Cancelamento De Matrícula Em Escola, de Jorge Guedes
Revista Forense
26/08/2024
– A contravenção penal se caracteriza não só pela recusa de inscrição ou matrícula em escola, mas também pelo seu cancelamento, por motivo de discriminação de côr.
– Interpretação da lei n. 1.390, de 1951.
PARECER
* Começando com citações de RUI BARBOSA e SÍLVIO ROMERO, inteiramente inaplicáveis ao caso de quo agitar, apelam os réus, Johannus Petrus Theodorus Van Lamelen e Sílvia Carrera Lamounie Van Lameren, acusando o douto Dr. juiz a quo, da 17ª Vara Criminal, de parcial e impressionável pela voxpopuli, que teria sido falsamente inculcada por uma imprensa mal orientada.
Lidos êstes autos com tôda atenção, e sòmente os autos e não os recortes de jornais, para evitar outra acusarão de igual porte, a conclusão a que chegamos é a de que injustíssima foi a acusação dos apelantes, pois a veneranda sentença está, não só perfeitamente justa nas suas consideranda, como bem fundamentada. E se é verdade que S. Exª se impressionou com a publicação de uma entrevista (fls. 77), esta serviu, apenas, para alicerçar a sua convicção, e não como mola mestra do seu decisório. Além disso, o juiz não deve ficar estático, qual bonzo chinês e, sim, estar atento às realidades do meio ambiente, de vez que:
“Pour apporter aux faits (qu’il doit juger) l’analyse pénétrante indispensable, le magistrat ne saurait s’isoler de l’existence moderne” (M. FABREGUETTES, in “La logique judiciaire et l’art de juger”, ed. 1926, pág. 13).
Mas, passemos ao caso. Para o desate dêste, temes que analisar as duas versões, a respeito do que motivou a expulsão do menor: a acusatória, isto é, que por preconceito racial o menino foi expulso do colégio, e a da defesa, pelo comportamento agressiva do menor para com os seus colegas e para com a apelante.
A primeira é baseada em prova testemunhal convincente (fls. 24 a 27 e 36-37) e pela lógica dos fatos no id quod plerumque accidit.
A segunda não tem base de espécie alguma e o ilogismo e a falsidade da mesma saltam aos olhos.
Não tem base, porque os apelantes não trouxeram testemunhas, nem declarações, de pessoas que tivessem presenciado, devisu, a pretensa indisciplina do menor. As declarações juntadas aos autos, verbigratia, se referem a alguns pais que não têm preconceito de cor. Note-se: de alguns, escolhidos a dedo, pois tolos não seriam os apelantes de irem colhêr as declarações de todos os pais, especialmente daqueles que fizeram pressão junto à Diretoria… E é ilógica e falsa pelo seguinte:
A apelante disse que a criança era “terrivelmente irrequieta” (fls. 39 v.), e que, ao observá-la, recebera do menor tapas e pontapés e, “notando a impossibilidade de ter o referido, menor na escola, entendeu oportuno afastá-lo, pelo menos temporariamente” (fls. 39 v.).
A desculpa é esfarrapada. Se fôsse verdadeira, feriria os mais comezinhos princípios pedagógicos. Ora, a escola em questão é organizada, bem freqüentada, e os apelantes são educadores especializados, com prática inclusive no Canadá, país notòriamente conhecido pelo seu alto grau em matéria de eficiência de ensino.
O tipo de escola dos apelantes é justamente o destinado à educação e ao ensino preliminar das crianças. Destarte,
“Conhecendo, assim, o que se faz numa instituição de educação pré-primária, como se faz e porque o trabalho aí auxilia tanto ao pré-escolar, tem-se a certeza de que a freqüência da criança à escola maternal e ao jardim da infância não é perda de tempo” (CELINA AIRLIE NINA, in “Escolas Maternais e Jardins da Infância”, ed. 1954, do Departamento Nacional da Criança, pág. 119).
Exigir-se placidez, máxime em uma criança de três anos, seria absurdo, já que:
“A motricidade nesta época é prodigiosa. O número de movimentos durante a infância, a freqüência de sua repetição, a variedade de suas combinações, a soma do seu quantumcinetico é assombrosa; e ainda mais se considerarmos os movimentos fundamentais dos membros ou as motricidades acessórias mais tênues. Tôda ou quase tôda excitação exterior é acompanhada de uma reação motriz” (J. DE LA VAISSIÈRE, in “Psicologia Pedagógica”, ed. Globo, 1950, pág. 71).
Mas não é só a motricidade, é a própria agressividade uma inclinação da criança:
“A agressividade constitui, realmente, a tendência dominante na conduta pré-escolar e representa a atitude da criança contra tudo que se oponha à satisfação de suas necessidades” (TEOBALDO DE MIRANDA SANTOS, in “Psicologia da Criança”, ed. Boffoni, 1948, pág. 120).
E não se pode admitir que, com apenas quatro dias de aulas, a escola não aturasse a criança, nem procurasse corrigi-la. Em primeiro lugar, porque a agressividade e a timidez são passageiras, de vez que:
“Estas emoções, como, aliás, tôdas as reações afetivas da criança, são efêmeras, superficiais e volúveis” (TEOBALDO DE MIRANDA SANTOS, ob. cit., pág. 122).
Em segundo lugar, porque é dever precípuo da escola o ensinamento, com a compreensão, a tolerância e o carinho que deve ter o educador:
“Na escola maternal, a criança adquire, desde cedo, hábitos de comer, falar, vestir-se e vai, naturalmente, aprendendo a ter independência. Não devemos jamais considerar as crianças muito pequenas para serem ensinadas, ou muito pequenas para entender” CELINA AIRLIE NINA, ob. cit., pág. 44).
Ora, êstes elementaríssimos princípios de pedagogia são, mais que conhecidos e aplicados pelos apelantes, que possuem, nesse mister, elevada cultura e até especialização canadense. O motivo, portanto, não é êste…
Passemos, agora, a focalizar uma questão de hemenêutica, suscitada pelos apelantes. Dizem êstes que o Dr. juiz a quo interpretara analògicamente a lei já que esta só puniria a recusa de inscrição (fls. 99). Vamos por partes.
Por analogia se entende que, na falta do dispositivo legal, espécies semelhantes são reguladas por normas semelhantes. Para a sua existência, é preciso que haja um princípio que seja aplicável diante da lacuna da lei e que lhe sirva de paradigma. Assim, há dois tipos de analogia:
“A analogia legis apóia-se em uma regra existente, aplicável a hipótese semelhante na essência; a analogia juris lança mão do conjunto de normas disciplinadoras de um instituto, que tenha pontos fundamentais de contato com aquêle que os textos positivos deixaram de contemplar; a primeira, encontra reservas de soluções nos próprios repositórios de preceitos legais; a segunda, nos princípios gerais de Direito” (CARLOS MAXIMILIANO, in “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, ed. 1941, pág. 255).
Ora, analogia a que teria o Dr. juiz a quo aplicado ? A nenhuma, evidentemente! A interpretação foi feita dentro da própria lei n. 1.390, consoante os cânones mais rigorosos de hermenêutica. E o foi porque:
1°) O art. 1° dessa lei fala, de modo geral, “em recusar“, sem estabelecer limite. A recusa é ampla e na lei não há palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda). Não fixando o legislador o momento da recusa, não cabe ao intérprete fazer distinções: Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus. Explica CARLOS MAXIMILIANO:
“Quando o texto dispõe de modo ampla, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas” (pág. 29 da obra citada).
2°) O art. 5° fala em “recusar inscrição”, mas êste artigo não pode ser aplicado isoladamente, porque a interpretação não se faz só por um texto isolado e, sim, pelo conjunto da lei (interpretatioillasummendaquaeabsurdumevitetur). O art. 4 da lei n. 1.390 tem, pois, que ser entendido combinado com o art. 1° da citada lei. Como bem disse o arguto promotor ARAÚJO JORGE (fls. 105): “Nem poderia ser de outra maneira, do contrário a lei Afonso Arinos seria letra morta, pois bastara aos que teimassem em violá-la seguir a receita de D. Sílvia Van Lameren – aceitar a inscrição, num dia e recusá-la dias depois”. De fato, de vez que “não se apega o julgador à letra morta, inclina-se para o que decorre do emprêgo de outros recursos, aptos a dar a verdadeiro alcance da norma” (CARLOS MAXIMILIANO, ob. cit., pág. 301). E é tão certa essa interpretatiolegis, que imagine-se o seguinte exemplo: O célebre cantor negro Paul Robeson, ao se hospedar no Hotel Serrador, assinava a ficha de inscrição de hóspede e recebia a chave. Ao se dirigir para o, seus aposentos, e, gerente recusava a sua entrada e pedia que se mudasse de hotel. Era ou não uma infringência, à lei número 1.390 ? Claro que era ! Mutatismutandis, é o caso dos autos.
Procurando demonstrar não terem preconceito racial, os apelantes alegam ter matriculado; um filho de Abdias Nascimento (fls. 102).
O argumento, porém, não colhe, aplicado que foi postfactum. A admissão do último menino escuro se deu, após a instauração do processo subjudice e é lógico que, atualmente, os apelantes não têm mais coragem de negar a matricula de qualquer menino de côr. Se Josephine Backer levar, lá os seus filhos, certamente, que todos êles serão matriculados. “Depois da casa arrombada é que se põe a tranca”, diz o rifão. Etpourcause… Agora, é intuitiva que os apelantes procurem demonstrar ausência de preconceito. E o advogado Amauri Lacerda chega até a dizer, a fls. 45, que:
“Não há, pois, um só brasileiro, mesmo, de caracteres brancos, que não tenha em sua vida a presença do elemento negro: Ou um companheiro de côr, ou uma aventura amorosa com uma negrinha ou mulata, isto para ficarmos na periferia” (grifos nossos).
Esta, porém, não é uma questão penal.
Finalmente, chegamos ao assunto da, aplicação da pena. Foi a única parte data venia, criticável da sentença. A lei dá como pena, que é alternativa (ou prisão simples ou multa), três meses a um ano de prisão simples ou Cr$ 500,00 a Cr$ 5.000,00 de multa. O culto Dr. juiz a quo, entretanto, aplicou a pena corporal máxima e silenciou sôbre o sursis. Ora, a nosso ver, a periculosidade dos apelantes é mínima e a contravenção que indubitàvelmente cometeram não foi revestida de requintes de malícia. Julgamos que a pena de multa seria a mais conveniente ao caso. A se aplicar, todavia, uma pena corporal, ela deverá ser graduada no mínimo e suspensas, a seguir, condicionalmente.
Expositis, opinamos pelo provimento em parte da apelação, para que a pena dos réus seja a de multa, mantendo-se, no mais, a excelente sentença de primeira instância.
Distrito Federal, 23 de abril de 1956 – Jorge Guedes, por delegação do procurador-geral da Justiça do Distrito Federal.
____________________
Notas:
* N. da R.: Parecer emitido na apelação criminal n. 23.371 (Tribunal de Justiça do Distrito Federal), sendo apelantes J. P. T. van Lameren e outra.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
NORMAS DE SUBMISSÃO DE ARTIGOS
I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:
- Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
- Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
- Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
- A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
- O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
- As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.
II) Normas Editoriais
Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br
Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.
Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).
Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.
Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.
Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.
Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:
- adequação à linha editorial;
- contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
- qualidade da abordagem;
- qualidade do texto;
- qualidade da pesquisa;
- consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
- caráter inovador do artigo científico apresentado.
Observações gerais:
- A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
- Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
- As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
- Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
- Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
- A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.
III) Política de Privacidade
Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
LEIA TAMBÉM: