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REVISTA FORENSE 156

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14/12/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 156
NOVEMBRO-DEZEMBRO DE 1954
Bimestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

  • Impôsto de Vendas e Consignações – Impôsto de Exportação, Francisco Campos
  • Rendas Locais – Arrecadação Estadual – Impôsto de Renda – Participação dos Municípios, Gilberto de Ulhoa Canto
  • Mercado Municipal – Domínio Público – Autorização Administrativa – Executoriedade Dos Atos Administrativos, Antão de Morais
  • Anistia – Conceito – Pagamento de Vantagens a Militares, A. Gonçalves de Oliveira
  • Juiz – Promoção Automática – Elevação de Entrância, Gabriel de Resende Passos
  • Ministério Público – Unidade e Indivisibilidade da Instituição, J. A. César Salgado
  • Advogado – Ingresso nos Cancelos dos Juízos e Tribunais, Cândido de Oliveira Neto

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • Hugo Grocio, Hidelbrando Acióli
  • Lúcio de Mendonça, F. C. San Tiago Dantas
  • Do Corpo de Delito, José Frederico Marques
  • A Homologação das Sentenças Estrangeiras de Divórcio, João de Oliveira Filho
  • A Emissão de Ações com Ágio, Sílvio Marcondes
  • Poder Discricionário do Juiz
  • Exceção de Inexecução de Contrato Bilateral, Arno Schilling
  • Reintegração de Posse “Initio Litis”, Enéias de Moura
  • Justiça do Distrito Federal, José Pereira Simões Filho
  • José Antônio Pimenta Bueno, Dr. Laudo de Almeida Camargo

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: I. O direito ao livre exercício dos cultos religiosos. 1. Culto. 2. Crença. 3. A crença e o culto na doutrina de DUGUIT. II. Os dois processos adotados pelos Estados para defesa do sentimento religioso. III. A tolerância das crenças e dos cultos. 1. Os princípios sôbre a tolerância. 2. As declarações universais e nacionais sôbre a tolerância das crenças e dos cultos. 3. Aplicação dos princípios nos Estados Unidos. IV. O direito positivo atual sôbre a liberdade de culto e de crença. 1. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 2. Constituição do Brasil de 1946. 3. Código Penal do Brasil de 1940. 4. Lei de Crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social. 5. Código Civil Brasileiro. V. O sistema brasileiro. 1. Quanto aos cidadãos. 2. Quanto da associações religiosas. 3. Aplicações dos princípios no Brasil.

Sobre o autor

João de Oliveira Filho, advogado no Distrito Federal

DOUTRINA

Culto

I. O DIREITO AO LIVRE EXERCÍCIO DOS CULTOS RELIGIOSOS

É assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, prescreve o § 7º do artigo 141 da Constituição do Brasil de 1946. A liberdade religiosa depende da liberdade de opinião e da liberdade de corpo. Da liberdade de opinião, para poder manifestá-la. Da liberdade de corpo, para poder comparecer aos lugares onde se celebrem os cultos públicos.

Tanto a liberdade de opinião, que é a base da liberdade de crença, como o livre exercício dos cultos religiosos, são garantidos por textos especiais. Como observa PIERRE VIGNY, “Droit Constitutionnel”, tome premier, pág. 336, os governos com essas liberdades se inquietam por diversos motivos, ou seja a unidade espiritual da nação, ou sejam as negras de conduta que a religião prescreve, ou seja por causa, da hierarquia eclesiástica, que goza de um grande prestígio e que se poderia opor às ordens das autoridades civis.

1. Culto – Culto religioso é a homenagem prestada ao Ente Supremo por meio de rito e cerimônias. É assim, diz S. S. o papa Pio XII, em sua encíclica Mediator Dei, de 20 de novembro de 1947, que, e considerarmos Deus como o autor dá, Antiga Lei, vemo-lo também promulgar preceitos sobre os ritos sagrados e decretar normas pormenorizadas a que o povo devia obedecer ao prestar-lhe o culto legítimo. Por isso estabeleceu vários sacrifícios e marcou as várias cerimônias com que lhe deviam ser oferecidos, e determinou com minúcia quanto dizia respeito à Arca da Aliança, ao templo e aos dias festivos. Instituiu a tribo sacerdotal e o sumo sacerdote, não deixando de determinar e descrever as vestes de que deviam usar os ministros sagrados e tudo o mais que dizia respeito ao culto divino (cfr. o “Livro do Levítico”).

Para a Igreja Católica Apostólica Romana “a Sagrada Liturgia é o culto público que o nosso Redentor rende ao Pai como Cabeça da Igreja e que a Sociedade dos fiéis rende ao seu Fundador e, por Êle, ao Pai Eterno; ou, em breves palavras, é o culto integral do Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, da Cabeça e dos membros” (enc. Mediator Dei, nº 17).

Liturgia é o conjunto de palavras (ritos), de ações ou coisas (cerimoniais), com que se pratica o culto público (nota 2 ao cânon 2 do “Cód. de Derecho Canónico”, trad. de DOMINGUEZ-MORAN e ANTA).

“Consoante as circunstâncias e às necessidades dos fiéis, o culto vai-se organizando e desenvolvendo, enriquecendo-se de novos ritos, cerimônias e fórmulas, sempre com o mesmo intento; para que por êstes sinais sensíveis sejamos estimulados… se nos dê a medida do nosso próprio adiantamento espiritual e nos sintamos incitados a intensificar mais e mais êsse progresso” (Santo Agostinho, Epist. 130, ad Probam, 130; enc. Mediator Dei, nº 18).

Na Igreja Católica Apostólica Romana existe a Congregação dos Ritos (Constituição Immensa, de 22 de janeiro de 1588), organismo ao qual ainda agora compete ordenar e prescrever, com vigilante cuidado, tudo quanto diz respeito à Sagrada Liturgia (“Código de Direito Canônico”, cân. 253).

A Hierarquia Eclesiástica, diz a encíclica Mediator Dei nº 53, tem o direito, em matéria litúrgica, para tutelar a santidade do culto, contra os abusos temeràriamente introduzidos por particulares indivíduos e particulares igrejas. “E assim sucedeu que, multiplicando-se, durante o século XVI, os usos e costumes desta espécie, e pondo as iniciativas privadas em perigo a integridade da fé e da piedade, com vantagem para os hereges e para a propagação dos seus erro, o Nosso Predecessor, Sisto V, para defesa dos legítimos ritos da Igreja e para impedir infiltração espúria, instituiu em 1588 a Congregação dos Ritos” (encíclica Mediator Dei, n° 53).

Cerimônia ou prática é a fórmula estabelecida pela Congregação dos Ritos, na Igreja Católica, eu pelos órgãos competentes das demais religiões, para a prestação do culto ou da homenagem externa a Deus.

Nessas cerimônias e práticas usam as igrejas ou as religiões de objetos, como paramentos, cálices, turíbulos, navetas, vinho, água, incenso, ostensórios, pálios, vela, castiçais, etc. Vilipendiar pùblicamente êsses objetos constitui crime contra o sentimento religioso.

No objetivo de assegurar a tolerância, é que o Estado não permite, além dêsses atos, o escarnecer de alguém pùblicamente, por motivo de crença ou função religiosa. Função religiosa e exercício religioso são expressões sinônimas. O Estado pune a intolerância quanto a essa função e quanto a êsse exercício.

Na Igreja Católica são ofícios divinos aquelas funções da potestade de ordem, que por instituição de Cristo ou da Igreja se ordenam ao culto divino e sòmente podem ser exercidas por clérigos. Debaixo do nome de atos legítimos eclesiásticos está compreendido: exercer o cargo de administrador dos bens eclesiásticos; desempenhar nas causas eclesiásticas os ofícios de juiz, auditor e relator, defensor do vínculo, fiscal e promotor da fé, notário e chanceler, ordenança e aguazil, advogado e procurador; ser padrinho nos sacramentos do batismo e de confirmação; votar nas eleições eclesiásticas; exercer o direito de patronato (Código 26 de Direito Canônico”, cânon 2.256).

O culto se chama público se se tributa em nome da Igreja por pessoas legitimamente constituídas por efeito e mediante atos que, por instituição da Igreja, estão reservados exclusivamente para honrar a Deus, aos Santos e aos Beatos; em caso contrário, se denomina culto privado (“Código de Direito Canônico”, art. 1.256).

De duas maneiras, observaram DOMINGUEZ-MORAN e ANTA, “Código de Direito Canônico”, 4ª ed., nota ao cânon 1.256, pode ser o culto público: a) quando se tributa em nome da Igreja por pessoas legitimamente destinadas para isso; b) quando, ainda que seja por outras pessoas, se tributa, com atos que por instituição divina ou eclesiástica estão reservados para honrar aos Santos e aos Beatos. Tais atos são, por exemplo, colocar imagens de cera ou de prata em seus sepulcros, ou acender-lhes luzes, expor seus corpos ou relíquias à veneração pública nas igrejas, pintar quadros com radiações ou auréolas, erigir altares em honra de pessoas que não tenham sido canonizadas nem beatificadas pela Igreja.

2. Crença

Crença é a convicção íntima e inabalável de que alguma coisa é verdadeira. Crença religiosa é a convicção íntima e inabalável da verdade de determinada doutrina sôbre a divindade.

É sob o aspecto da religião que a crença interessa ao Direito. Conjunto, que é o Direito, de condições de vida e desenvolvimento das sociedades humanas, garantidas ou que devam ser, pela fôrça coercitiva do Estado (PEDRO LESSA), a religião é uma das condições imprescindíveis para coexistência dos homens. É mister que seja salvaguardada.

Em têrmos gerais, crença é a convicção da verdade de uma proposição. Existe subjetivamente na mente, induzida par argumento, por persuasão, ou prova admitida pelo juízo, como escreveu o eminente BLACK. em seu “Law Dictionary”: “Crença é não precisar de prova de evidência, de testemunho. Convicção da mente, a que se chegou, não por meio de atual percepção ou conhecimento, porém por meio de inferência, ou de evidência recebida, ou por informação de outrem. Pode ser mais forte ou mais fraca, conforme o peso da evidência aduzida em favor da proposição à qual a crença adere ou recusa. Admite graus da mais longínqua suspeita à mais plena segurança. A distinção entre os dois estalos mentais, crença e conhecimento, é que por conhecimento se, entende a segurança de um fato ou de uma proposição fundada na percepção pelos sentidos, ou pela intuição; ao passo que por crença se entende uma segurança ganha pela evidência, ou ganha por informação de outra pessoa”.

Adesão a um julgamento, adesão que importa em atitude de certeza, escreve ORIS SOARES, “Dicionário de Filosofia”: “A atitude de certeza pode decorrer tanto de razão teórica, absolutamente demonstrável, como de razão que não aparece inteiramente demonstrável, como seja o princípio de autoridade, o valor de testemunhas, ou motivos afetivos (os sentimentos), e motivos ativos (os desejos). Muitos tratados de psicologia distinguem duas formas de crença: a espontânea, em que o espírito, com a necessidade de afirmar e de fixar-se, se harmoniza com certas proposições, sem as submeter à crítica ou verificação; e a crença refletida, fundada em motivos racionais. KANT chama crença ao julgamento certo afirmado sem motivo intelectual suficiente, julgamento que corresponde a uma necessidade da razão prática. Crer é querer, isto é, tender para uma idéia, decidir-se a afirmá-la, escolhê-la entre várias, fixá-la como definitiva, não só para nosso pensamento atual, mas para sempre e para todo pensamento”.

É a tendência íntima, escreve o Professor Dr. ANTÔNIO DE SAMPAIO DÓRIA, “Os Direitos do Homem”, vol. II, 2ª ed., pág. 284, mais intuitiva que consciente, para aderir a verdade de certas afirmações, independentemente, e, até, contra fatos e provas.

Crença religiosa é a fé, diz o ministro NÉLSON HUNGRIA, “Comentários ao Código Penal”, ed. “REVISTA FORENSE”, vol. VIII, pág. 63, a convicção da verdade de tal ou qual doutrina acerca da divindade ou poderes sobrenaturais.

É um sentimento. É a convicção, acentuada pelo sentimento, diz VON LISZT, “Tratado de Direito Penal”, vol. II, tradução de JOSÉ HIGINO, pág. 168, da existência de uma ordem universal, que se eleva acima do homem.

É, aliás, como sentimento que o Código Penal Brasileiro de 1940, art. 208, defende a crença, a função religiosa, a cerimônia ou a prática do culto, o ato ou o objeto do culto religioso.

As crenças religiosas, escreve COLLIN, “Manuel de Philosophie Thomiste”, I, 391, apresentam-se conforme as religiões e os indivíduos, com caracteres diferentes, mais ou menos aproximados dos tipos seguintes:

a) conjunto de práticas exteriores observadas por acatamento a uma tradição recebida, por submissão ao uso social, mas sem convicção nem sentimento religioso algum;

b) sentimento feito de medo, de amor, de confiança, conforme os casos, mas sem crença nos dogmas revelados;

c) adesão do espírito a um ensinamento admitido como revelado pela divindade, acompanhado de sentimentos correspondentes.

Há dois elementos, escreve o Professor ANTÔNIO SAMPAIO DÓRIA, ob. cit., pág. 278, em toda religião. Primeiro, a crença no poder sobrenatural, invisível, onipotente, capaz de traçar novos rumos ao destino de cada homem. Segundo, a crença de que podem, os que crêem nesse poder, comunicar-se com ele para lhe prestar homenagens, ou lhe pedir milagres.

3. A crença e o culto na doutrina de DUGUIT

O crente tem certeza de catar na posse da verdade, diz DUGUIT, “Tratado de Direito Constitucional”, vol. 5°, § 39. Fará forçosamente proselitismo e nisso será intolerante. Não digo, escreve DUGUIT, que todos os crentes sejam intolerantes, mas digo que êles o são naturalmente. A religião faz os apóstolos e os mártires; fez também os inquisidores e os torcionários. A mesma religião fêz Vicente de Paulo e Torquemada.

Observa DUGUIT, outrossim, que muitos governos pretenderam se aproveitar, nos respectivos países, da fôrça política que a religião consegue formar, como, outrossim, procuraram combate-la, quando, por acaso, dela não puderam se assenhorear.

Salienta a existência nos Estados modernos, de uma sociedade internacional fortemente centralizada, possantemente hierarquizada, que enquadra seus fiéis em uma rêde estreita de obrigações e de práticas, qual a Igreja Católica Apostólica Romana.

Analisando o fenômeno da religião, DUGUIT encontra nêle seu aspecto social e seu aspecto individual.

É fato individual, no sentido de que tem por suporte a consciência e a vontade do indivíduo.

É fato social, porque é o produto de ações recíprocas que os indivíduos exercem uns sôbre os outros, sendo causa de ações e reações, contribuindo como fator poderoso de formação social.

Produto espontâneo da vida das sociedades humanas, a religião, é crença e é rito.

Crença em uma fôrça invisível, que exerça ação sôbre o mundo onde o homem viva.

Pouco importa saber o motivo pelo qual o homem manifeste crença. Totemismo, fetichismo, mêdo, sobrevivência dos antepassados, crenças animistas ou não animistas, monoteístas, como o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, a crença religiosa é garantida como inviolável.

O culto ou o rito consiste em práticas que, para o crente, têm por resultado estabelecer uma relação entre êle e o poder sobrenatural, no qual acredite.

O culto faz parte da religião.

Se não há culto ou rito para manifestação externa da crença, pode haver, como objeto da crença, uma doutrina filosófica. Não será, porém, religião.

O culto público traz a reunião, traz a formação de sociedades organizadas ou de fato, traz a construção e a manutenção de igrejas, de templos, de sinagogas, traz a formação natural e espontânea de grupos humanos coerentes e fortes, que se impõem ao reconhecimento e ao respeito do Estado.

Por isso, não basta dizer que a liberdade religiosa é a liberdade de manifestar sua crença em uma fôrça sobrenatural e de praticar e culto, que lhe corresponda. É preciso ajuntar, diz DUGUIT, que a liberdade religiosa é também para o indivíduo a liberdade de fazer parte de uma igreja, e a liberdade para as igrejas se constituírem, viverem, possuírem bens, agirem conformemente às suas próprias leis e de fazerem todos os atos que as permitam atingir o fim de ordem religiosa que elas tenham. A liberdade religiosa é uma limitação aos poderes dos Estados. Nada pode o Estado fazer que entrave as manifestações das crenças, o exercício público do culto, a formação e funcionamento de uma igreja qualquer e a possibilidade para os fiéis se reunirem a fim de celebrarem seu culto e de terem a liberdade de aí chamarem o público.

Assim, a liberdade de reunião adquire um caráter especial ou particular. São reuniões em que não se discutem questões filosóficas, políticas ou sociais, mas para a realização de certas práticas que, aos olhos dos crentes, os põem em comunicação com um poder sobrenatural.

A liberdade religiosa é qualquer coisa de complexa, cujos elementos constitutivos ficaram assim especificados.

Para que essa liberdade exista, diz DUGUIT, é preciso que nas leis o Estado respeite as crenças de cada um, que não traga nenhum entrave ao livre exercício do culto público e que não ponha nenhuma limitação à, formação, ao funcionamento, segundo suas leis próprias, das seitas e das igrejas.

Fica entendido, todavia, que o Estado tem sempre o poder e o dever de estabelecer certas restrições á liberdade de cada um na medida em que seja necessário para proteger a liberdade de todos.

II. OS DOIS PROCESSOS ADOTADOS PELOS ESTADOS PARA A DEFESA DO SENTIMENTO RELIGIOSO

Pertence a expressão “liberdade de crença, ou liberdade de religião”, ao grupo de têrmos que, no processo para ganhar popularidade em extensão, tem perdido seu preciso e científico sentido, observa judiciosamente GUIDO DE RUGGIERO, em artigo na Encyclopaedia of the Social Sciences”.

E’ de primeira importância, pondera RUGGIERO, que o conceito de liberdade de religião seja diferenciado das atitudes das diferentes confissões religiosas em frente dos seus membros, ou em frente da humanidade, como um todo.

Cada, uma se presume possuir o único e efetivo meio para salvar as almas.

Conforme a Igreja seja nacional, ou universal, ou que considere o gênero humano perdido pelo pecado original, sòmente podendo se salvar por meio da religião, seja monoteista, ou politeísta, tenha instituição eclesiástica perfeita, ou rudimentar, é, afinal de contas, a influência que exerça para impedir o desenvolvimento das nutras religiões o que tem feito objeto de direito público sob o título de liberdade de religião ou de liberdade de crença.

Duas têm sido as formas adotadas pelos Estados, em geral, para regularem os problemas das religiões. A primeira é a da integração do Estado com a religião, quer a em que o Estado domina a religião, quer a em que a religião domina o Estado. A outra é a da separação da religião do Estado.

A primeira é denominada a da jurisdição do Estado, a segunda, a da separação do Estado.

A primeira foi a que, històricamente, existiu. A religião estava ligada ao poder temporal. As res sacrae e as res publicae juridicamente eram iguais em Roma. Eram tolerados os cultos, desde que não colidissem com a segurança do poder. No ano 379 os imperadores Graciano e Valentiniano II proclamaram, no Império do Ocidente, o Cristianismo como única religião verdadeira e real.

Na Idade Média eram diversos os crimes contra a religião: heresia, apostasia, cisma, sacrilégio, perturbação dos atos sagrados, blasfêmias, magia, sortilégios, simonia, judaísmo, paganismo, ateísmo, agnosticismo, etc.

Eram os crimina violatae religionis, os crimes laesae religionis.

Nas Ordenações do Reino, Livro Quinto, era punido quem quer que arrenegasse, descresse, ou pesasse de Deus, ou de sua Santa Fé, ou dissesse outras blasfêmias, assim como contra algum Santo. Também era punido quem por algumas palavras mais enormes e feias blasfemasse, ou arrenegasse de Nosso Senhor, ou de Nossa Senhora, ou da Sua Fé, ou dos seus Santos.

Jurisdição ou separação, jurisdicionalismo ou separativismo, o primeiro tem prevalecido na Europa, e foi o sistema que predominou no Brasil durante o Império; o segundo, adotado em muitos países americanos, é o sistema do Brasil, desde a instauração do seu regime republicano, em 1889.

A Constituição de 1824, art. 5°, dispunha que a Religião Católica Apostólica Romana continuaria a ser a Religião do Império. Tôdas as outras religiões eram permitidas, com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma de Templo”.

Sòmente os católicos podiam ser eleitos deputados.

Pelo nº 5° do art. 179 daquela Constituição, entretanto, ninguém poderia ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeitasse a do Estado, e não ofendesse a moral pública.

A Constituição brasileira de 1934, artigo 113, nº 5, já dispunha, que era “inviolável a liberdade de consciência e de crença”, dispondo no nº 9° que em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento”.

A Constituição brasileira de 1946, artigo 141, § 7º, dispõe que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, dispondo no § 5° que é livre a manifestação do pensamento”.

Notemos, desde logo, que a Constituição distingue a liberdade de consciência da liberdade de crença, porquanto sempre se entendeu que pela liberdade de consciência se defendia a liberdade de crença.

Outrossim, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interêsse coletivo, sendo-lhe vedado, também, lançar impôsto sôbre templos de qualquer culto.

O Cód. Penal de 1940 trata dos crimes contra o sentimento religioso. No artigo 20B estabelece que é crime escarnecer de alguém pùblicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia, ou prática de culto religioso; vilipendiar pùblicamente ato ou objeto de culto religioso”.

III. A TOLERÂNCIA DAS CRENÇAS E DOS CULTOS

1. Os princípios sôbre a tolerância

Dizer-se, porém, liberdade de crença, é o mesmo que se dizer história das lutas para se conseguir a tolerância dos adeptos de outra. A religião mais poderosa sempre procurou impedir as reais fracas. O Direito tem regulado a tolerância por parte dos governos, quando tenham religião oficial; a tolerância por parte dos fiéis de cada religião, quando os governos não tenham religião oficial; a tolerância por parte de cada, religião, quando seus fiéis constituam maioria em algum Estado e se constituam em partido político, cuja influência, predomine nos conselhos dos governos. A tolerância religiosa não tem definição geral, senão que é constituída por casos, que os governos e os tribunais vão resolvendo, formando precedentes.

A Igreja Católica Apostólica Romana, conceitua o princípio da tolerância nos têrmos constantes da encíclica Immortale Dei, de S. S. o papa Leão XIII, de 2 de novembro de 1885, sôbre a constituição cristã dos Estados:

“Em verdade, embora a Igreja julgue não ser lícito que as diversas classes e forma de culto divino gozem do mesmo direito que compete á religião verdadeira, nem por isso condena aos encarregados dos governos dos Estados que, já para conseguir algum bem importante, já para evidenciar algum grave mal, toleram, na prática, a existência de ditos cultos em seus Estados. Outra coisa também precavê a Igreja com grande empenho, e é que ninguém seja obrigado contra a sua vontade a abraçar a fé, porquanto, segundo ensina sàbiamente Santo Agostinho, o homem, não pode crer senão querendo”.

Estudando-se a história da liberdade de crença, pode-se dizer que todos os precedentes sôbre a liberdade em religião nada mais são que correções da intolerância, que é aspecto social integrante de qualquer delas.

Uma instituição religiosa, diz M. C. OTTO, in “Encicl. of Social Sciences”, verbete “Intolerance”, que reivindique validade universal e invariável para sua doutrina de salvação, é necessàriamente intolerante.

Nulla salus extra ecclesiam, é o princípio da intolerância que rege as religiões.

Para o Dr. SAMPAIO DÓRIA, ob. citada, pág. 278, dois grandes abusas podem existir na doutrina da liberdade de crença religiosa: competirem as comunidades religiosas com o Estado no exercício da soberania, e a intolerância dos que, podendo tudo em religião, ou em política, se privilegiem de infalíveis, e, havendo por transviados os demais, os oprimam, os torturem, e os assassinem, para salvá-los.

O poder civil não pode, escreve TUCKER, “Const. Law”, II, pág. 668, passar as linhas de divisa entre o seu reino e o reino da consciência; não pode ultrapassar essa divisa para invadir o reino do poder civil. Tanto quanto a religião seja matéria de conveniência, o poder civil não a pode invadir; porém, quando a consciência religiosa violar os direitos das outras e perturbar a paz social e a ordem pode ser reconduzida dentro de seus próprios domínios, e assim ser excluída do reino civil, o qual ela não pode controlar”.

Quanto à Religião Católica, encontramos nas encíclicas papais princípios que fixam a posição da Igreja Católica ante a liberdade de crença ou a liberdade de religião. A religião é a primeira das virtudes e sem ela não há verdadeira virtude: Libertas, 24. Professar a verdadeira é o primeiro dever dos homens e das sociedades para com Deus: Immortale, Ie. Foi revelada por Deus: Qui pluribus, 5. Dentre elas só se deve seguir a que Deus tenha mandado: Libertas, 25. Tem sua fôrça na autoridade de Deus: Qui plur., 5. Deus quis distinguir a religião verdadeira com certas notas exteriores para que os homens possam. reconhecê-la fàcilmente: Libertas, 13. A verdadeira religião é a instituída por Jesus Cristo: Immortale, 13. Conhece-se fàcilmente que é a verdadeira porque está selada com os caracteres da verdade: Libertas, 27. Sem ela é impossível que os costumes sejam bons: Immortale, 39. Nenhum tempo pode estar sem ela, nem a Igreja pode contemporizar com o que a prejudique: Libertas, 49. E’ êrro dos que sustentam que a Igreja Católica não convém que seja a única do Estado: Syllabus, 77. Sua defesa e conservação deve ser propósito comum de todos os católico: Immortale, 60. Sua defesa exige a unidade dos católicos e sua perseverança nos ensinamentos da Igreja: Immortale, 58. Seria danosa para ela que os católicos se abstivessem de intervir nos assuntos públicos: Immortale, 55. A sociedade deve procurar e facilitar sua observância para conseguir o bem comum: Immortale, 12. Floresceu quando a doutrina da Igreja governava os Estados: Immortale, 28. Por ela sòmente subsistem as nações e se confirma o vigor de tôda potestade: Mirari, 2. Engendram os fundamentos da tranqüilidade e a paz das Repúblicas: Diuturn., 2. A ela é devida a grandeza, civilização e liberdade verdadeiras dos povos da Europa: Immortale, 29. Fruto seu é o equilíbrio entre os deveres e direitos dos governantes e doa súditos: Diuturn., 2. Pecar contra ela é delinquir contra o Estado: Sapientiae, 9. Os governantes devem favorece-la e ampará-la: Immortale, 12. Em suas relações com a política, não pode desentender-se: Cummulta, 4. Podem tê-la os cidadãos privadamente, segundo a doutrina da separação da Igreja do Estado: Libertas, 47. O Estado não pode professar nenhuma publicamente, segundo o Direito novo: Immortale, 32. A tôdas o Estado deve conceder iguais direitos, segundo o novo Direito: Immortale, 32. Conceder a todos direitos iguais conduz ao ateísmo: Immortale, 37, Deve ser ensinada na escola, não como nova matéria, senão como fundamento e coroa do ensino em todos os graus: Divini illius, 53. Deve-se fugir da escola em que se propalem erros religiosos ou em que não se ensinem a doutrina e a moral cristã: Casti C., 13, not. 14. Sua defesa exige que a Igreja intervenha nas questões sociais e econômicas: Rer. Nov., 13; Quadrag.º, 3.

No “Manual of Christian Doctrine”, com o “imprimatur” do cardeal Dougherty, nos Estados Unidos, se lê o seguinte: Qual direito tem o papa em virtude da sua supremacia sôbre o Estado? O direito de anular aquelas leis e atos do governo que causem prejuízo à salvação das almas ou ataquem os direitos naturais dos cidadãos. Uma outra pergunta ali se encontra: Quando pode o Estado tolerar cultos dissidentes? Quando êstes cultos tenham adquirido uma sorte de existência legal consagrada pelo tempo e permitida por meio de tratados ou convênios.

Devemos tomar em atenção êste princípio de uma sorte de existência legal consagrada pelo tempo. Foi aplicado pelo govêrno brasileiro no caso da Igreja Católica Brasileira, como veremos mais adiante.

Na Inglaterra era crime acreditar ou professar a Religião Católica Apostólica Romana. Foram precisos diversos atos do Parlamento para serem removidos os crimes contra os católicos por causa de sua fé.

2. As declarações universais e nacionais sôbre a tolerância das crenas e dos cultos

Na Declaração dos Direitos do Homem de 1779, em França, art. 10, ficou dito que nul re doit être inquiété pour ses opinions, même religieuses, pourvu que leur manifestatìon ne trouble pas l’ordre public établì par la loi”.

O Congresso de Virgínia, em 1789, nos Estados Unidos, votou uma proclamação, redigida por JEFFERSON, e que é da maior relevância no assunto, súmula elegante dos direitos resguardados pela inviolabilidade da liberdade de crença religiosa.

Eis os têrmos dessa Declaração de dezembro de 1789:

“Considerando que o Todo-Poderoso criou as almas livres e iguais;

“Considerando que tudo quanto se faça para nelas influir por meio de castigos corporais, pela opressão e pelas privações de direitos civis, não serve senão para engendrar nos homens costumes de hipocrisia e servidão;

“Considerando que privar a um cidadão da confiança pública, e não lhe conceder nenhum emprêgo se não abjurar ou professar certas doutrinas religiosas, é despojar-lhe injustamente dos privilégios que constituem um direito natural, o mesmo que têm os seus concidadãos;

“Considerando que permitir a intervenção do magistrado em questões de doutrina, e obrigar-lhe a reprimir a profissão e a propagação de certos princípios, sob pretexto de exercer no Estado uma influência, é um êrro funesto que destrói por completo a liberdade religiosa, atendido a que o próprio magistrado se erige em juiz daquela crença, e pode tomar por regra de seu juízo a sua própria opinião religiosa;

“Considerando que a verdade goza de uma fôrça irresistível quando se lha deixa obrar livremente e não tem a temer neste mundo nenhuma luta contra o êrro, enquanto que a intervenção oro homem não a prive de sua arma natural, a livre discussão, ante a qual o êrro não pode subsistir por muito tempo;

“Por essas condições, a Assembléia declara que todos os cidadãos são livres para professar suas convicções em matéria de fé e para defendê-las por palavras e por escrito, sem que isto possa minguar ou afetar em nada sua capacidade civil”.

Nos Estados Unidos, refere o eminente CHARLES EVANS HUGHES, antigo “Chief Justice” da Suprema Côrte, que em algumas colônias se haviam feito intentos para legislar, não só estabelecendo uma religião oficial, senão também sua, doutrinas e preceitos, impuseram-se contribuições aos cidadãos, contra sua vontade, para a manutenção da religião e, em ocasiões, para a manutenção de seitas, cujos dogmas não eram aceitos pelos cidadãos. Estabeleceram-se castigos por falta de assistência aos atos do culto público e às vêzes por opiniões heréticas. As medidas opressivas que haviam sido adotadas e as crueldades e castigos infligidos pelos governos da Europa para obrigar à conformidade com as crenças religiosas e as formas de culto correspondente às opiniões da seita mais numerosa e o desatino de intentar controlar dessa maneira as operações mentais das pessoas, e obrigar a uma submissão externa de acôrdo com o padrão prescrito, levaram à adoção da emenda nº 1. De acordo com as palavras de STORY, foi por uma solene consciência dos perigos da ambição eclesiástica, do fanatismo, do orgulho e da intolerância das seitas, exemplificadas assim nos anais domésticos, como nos estrangeiros, que pareceu aconselhável excluir do govêrno nacional todo poder para atuar sôbre a matéria (STORY, “On Const.”, vol. II, sec. 1879). Esta emenda, prossegue HUGHES, que dispunha que o Congresso não faria nenhuma lei estabelecendo uma religião oficial do Estado ou proibindo seu livre exercício, foi proposta por MADISON e representava a opinião dons que advogavam a liberdade religiosa. Recordando êstes fatos, o magistrado-presidente WAITE, ao formular a sentença da Suprema Côrte no caso Reynolds v. United States, citava a seguinte réplica dada por JEFFERSON a pedido que lhe foi feito por um Comitê da associação batista de Danbury: Pensando, como vós, que a religião é assunto que fica sòmente entre o homem e seu Deus, que o homem não deve dar conta a ninguém de sua fé ou seu culto, que os poderes legislativos do govêrno se referem ùnicamente às ações e não às opiniões, considero como soberana reverência êsse ato de todo o povo americano que declarou que seu poder legislativo não faria nenhuma lei estabelecendo uma religião oficial do Estado, nem proibindo o livre exercício da religião, levantando, dessarte, um muro de separação entre a Igreja e o Estado. Aderindo assim a esta expressão da suprema vontade da nação em apoio dos direitos de consciência, verei com sincera satisfação o progresso daqueles sentimentos que tenderem a devolver ao homem todos os seus direitos naturais, convencido de que não há nenhum direito natural oposto a seus deveres sociais”. O magistrado WAITE diz que esta afirmação, que provinha de conhecido líder dos defensores da medida, podia ser aceita quase como uma declaração autorizada o alcance e do efeito da emenda. A Corte Suprema declarou assim que o princípio estabelecido era êste: “O Congresso ficou desprovido de todo poder legislativo sôbre a mera opinião, deixando-lhe mãos livres para ocupar-se das ações que violem os deveres sociais ou subversivos da boa ardem”. Em aplicação dêstes princípios, a Suprema Côrte tem sustentado que a liberdade de religião, que está garantida, não constitui uma justificação da poligamia, que uma lei aplicável aos territórios, aprovada pelo Congresso, havia considerado delituosa. Não podia invocar-se a emenda nº 1 como proteção contra a legislação que impõe o castigo dos atos contrários à boa ordem e à moral da sociedade. A função da Suprema Côrte é manter êste equilíbrio entre as garantias constitucionais de liberdade e as exigências legislativas no interêsse da Ordem Social” (“The Supreme Court of the United States”, ed. de 1947, págs. 160-163).

Na Declaração Universal de Direitos dos Homens, proclamada pelas Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, no Palácio Chaliot, em Paris, afirmando as Nações Unidas sua fé nos fundamentais Direitos do Homem, e que os inalienáveis direitos da família humana são os fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo, proclamou no art. 18 que “everyone has the right to freedom of thought, conscience and religion; this right includes religion or beliet, and, freedom, either alone or in community with others and in public or private, to manifeste his religion or belief in teaching, praetice, worship and observance”.

3. Aplicações dos princípios nos Estados Unidos

As garantias que nos Estados Unidos são dadas às religiões estão sumariadas por COOLEY, “Princ. of Const. Law”, 3ª ed., pág. 225, pela forma seguinte:

“1. Estabelecem elas um sistema, não de mera tolerância, porém de igualdade de religião. Nenhuma pode ser favorecida às expensas das outras, ou discriminadas uma de outra, nenhuma distinção podendo ser feita entre elas, quer nas leis, quer sob as leis, ou pela administração do govêrno.

2. Isentam tôdas as pessoas de suportar compulsòriamente o culto religioso, e de ao mesmo atender compulsòriamente.

3. Proíbem restrições sôbre o livre exercício da religião, de acôrdo com o ditado pela consciência, ou de acôrdo com a livre expressão das opiniões religiosas”.

Julgados existem afirmando que ninguém pode ser compelido a atender ou a manter qualquer igreja; que dinheiro público não pode ser apropriado ou usado para manter alguma’ igreja ou corpo religioso; que sociedades religiosas podem ser incorporadas e podem adquirir e possuir bens, dirigindo seus negócios; que nenhuma lei pode estabelecer que qualquer solicitação para fins caritativos, religiosos ou filantrópicos seja autorizada privativamente por alguma autoridade pública (WEAVER, Const. Law”, pág. 256).

A garantia de livre crença, nos Estados Unidos, não impede: a) que a lei estabeleça proibição para se realizarem nos domingos jogos de baseball, ou para a realização de sessões cinematográficas, ou para o funcionamento de comércio ordinário, ou para obrigar quietude nas ruas públicas; b) que leis definam, proíbam e punam as blasfêmias; c) que leis excluam de taxação igrejas, escolas e outras propriedades de organizações religiosas; não podendo, porém, haver discriminação em favor ou contra alguma seita ou organização religiosa; d) que se faça público reconhecimento e encorajamento de religião, desde que não a inculque sôbre a consciência de qualquer pessoa; e) que se estabeleça exigência de autorização para paradas nas ruas públicas, levando sinais em estandartes, os quais advirtam a fé religiosa dos que nelas se encontram; pode, porém, a Municipalidade impor taxa para isso, e proibir que meninos e meninas em determinadas idades vendam, em lugares públicos, periódicos religiosos; f) que não permita que escola impeça que os estudantes saúdem a bandeira dos Estados Unidos; g) que se faça, por qualquer ato, o reconhecimento do tato de que grande massa do povo nos Estados Unidos seja aderente da religião cristã (WEAVER, ob. cit., cond. loc.).

A emenda nº 1 à Constituição americana dispõe que: “O Congresso não poderá ditar leis relativas ao estabelecimento de uma religião, ou que proíbam o livre exercício delas”.

IV. O DIREITO POSITIVO ATUAL SÔBRE A LIBERDADE DE CULTO E DE CRENÇA

1. Declaração Universal dos Direitos Humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em Paris, em 10 de dezembro de 1948, proclama no seu art. 18: “Todos os homens têm direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; êste direito inclui a liberdade de mudar sua religião ou crença, e a liberdade, ou de só ou em comunidade com outros, em público ou em casa, manifestar sua religião ou crença ensinando, ou na prática, no culto, na observância”.

No seu art. 30 ficou expresso:

“Nada nesta declaração pode ser interpretado como implicando para qualquer Estado, grupo ou pessoa direito para se engajar em alguma atividade ou para praticar algum ato destinado à destruição de qualquer dos direitos e liberdades nela estabelecidos”.

2. Constituição do Brasil de 1946

A Constituição do Brasil de 1946 estabelece os seguintes preceitos com relação à religião ou a crença:

“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrática, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil” (Preâmbulo).

“A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

“Estabelecer ou subvencionar cultos religiosas, ou embaraçar-lhes o exercício” (art. 31, nº II).

“A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

“Lançar impôsto sôbre templos de qualquer culto” (art. 31, nº V, letra b).

Perdem-se os direitos políticos pela recusa prevista no art. 141, § 8° (art. 135, § 2°, n° II).

Por motivo de convicção religiosa ninguém será privado dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impôstos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa, de consciência (art. 141, § 8°).

É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública e os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil (art. 141, § 7°).

Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal. É permitido a tôdas as confissões religiosas praticar nêles os seus ritos. As associações religiosas poderão, na formada lei, manter cemitérios particulares (art. 141, § 10).

Sem constrangimento dos favorecidos, será prestada por brasileiros (art. 129, números I e II) assistência religiosa às fôrças armadas e, quando solicitada, pelos interessados ou seus representantes legais, também nos estabelecimentos de internação coletiva (art. 141, § 9°).

A legislação do trabalho… obedecerá, além de outros…, aos seguintes preceitos: repouso semanal remunerado, preferentemente aos domingos, e, no limite das exigências técnicas das emprêsas, nos feriados civis e religiosos, de acôrdo com a tradição local (art. 157, nº VI).

O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no registro público (art. 163, § 1º).

O casamento religioso, celebrado sem as formalidades dêste artigo, terá, efeitos civis se, a requerimento do casal, fôr inscrito no registro público, perante prévia habilitação perante a autoridade competente (art. 163, § 2°).

O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matricula facultativa e será ministrado de acôrdo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por êle, se fôr capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável (art. 168, nº V).

E mantida a representação diplomática junto à Santa Sé (art. 198).

3. Código Penal do Brasil de 1940

O Cód. Penal do Brasil de 1940 dispõe, quanto aos crimes contra o sentimento religioso”:

“Art. 208. Escarnecer de alguém pùblicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar pùblicamente ato ou objeto de culto religioso. Pena: detenção, de um mês a um ano; ou multa, de Cr$ 500,00 a Cr$ 3.000,00. Parágrafo único. Se há emprêgo de violência, a pena é aumentada de um têrço, sem prejuízo da correspondente à violência”.

A “Rev. dos Tribunais”, de São Paulo, vol. 12, pág. 65, ventila a propósito de julgamento de crime por ofensa aos ritos e aos dogmas:

“Celebrou-se, um domingo, em Lacken, na Suíça, a festa da Mater Dolorosa Dei. Na tarde dêsse dia, um indivíduo de nome Schnyder foi jantar com outras pessoas no restaurante Jaguar. Depois de fazer vários gracejos inofensivos, êsse indivíduo saiu-se com esta:

– Por que Maria Santíssima escolheu um asno na sua fuga para o Egito?

Como ninguém respondeu, êle próprio concluiu:

– Porque só a um asno se podia convencer que a mãe de Deus era virgem.

Não contente com o gracejo êsse indivíduo pôs-se a zombar das cerimônias religiosas, dizendo, ao ver apontar uma procissão:

– Principia a comédia: os canalhas vêm chegando.

Convidaram-na várias vêzes a mudar de tom, mas êle não atendeu. Afinal, as suas palavras acabaram por irritar a tôda a gente e por levá-lo à cadeia.

Processado de acôrdo com o Cód. Penal por ultrajes blasfematórios à religião, êle foi condenado.

A causa provocou largos debates, indo ter até ao Tribunal Federal.

Êste, na sua decisão, firmou os seguintes princípios:

1. A crítica livre das idéias religiosas de outrem só é garantida pela Constituição federal enquanto ela se mostrar uma critica objetiva e séria e não um ataque pessoal e ofensivo.

2. Os motejos, que põem no ridículo os dogma, e os objetos do culto com ofensas aos sentimentos religiosos alheios, não podem gozar das garantias constitucionais.

3. Todavia, é o ataque ao sentimento religioso de outrem e não a ofensa feita à divindade ou à religião considerada em si mesmo que constitui fundamento para a repressão penal compatível com a liberdade de crença”.

4. Lei de crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social

A lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953, define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social:

Art. 11. Fazer pùblicamente propaganda; b) de ódio de raça, de religião ou de classe.

Pena: reclusão de um a três anos.

§ 2º Não constitui propaganda:

c) a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas.

3° Pune-se igualmente, nos têrmos dêste artigo, a distribuição, ostensiva ou clandestina, mas sempre inequìvocamente dolosa, de boletins ou panfletos, por meio dos quais se faça a propaganda condenada nas letras a, b e c do princípio dêste artigo.

Art. 15. Incitar pùblicamente ou preparar atentado contra pessoa ou bens, por motivos políticos, sociais ou religiosos.

Pena: de reclusão de um a três anos ou a pena cominada do crime incitado ou preparado, se êste se consumar.

5. Código Civil brasileiro

Art. 18, nº 1: São pessoas jurídicas de direito privado: as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações.

V. O SISTEMA BRASILEIRO

1. Quanto aos cidadãos

O Brasil não é Estado agnóstico, nem ateu. Como Estado, crê em Deus, pois foi invocando sua proteção, que instituiu a sua atual Constituição, promulgada em 18 de setembro e 1946. O preâmbulo de uma Constituição firma a lei geral do país. É a proclamação da lei da terra. Não cria direitos. Não estabelece obrigações. Reconhece a lei natural que rege o povo, cujo governo ela organiza.

O Deus, porém, que o Estado brasileiro proclama seu protetor, é o Deus da Cristandade, o Deus da Santíssima Trindade, o Deus de que Cristo é filho, é o Pai Celeste. É o Deus onipotente, que criou o mundo, que criou tôdas as coisas do mundo, que criou o homem. É Deus, primeira e suma verdade, santidade perfeita e sumo bem, como disse Leão XIII, in Sapientiae, I. É o Deus do Símbolo dos Apóstolos. “Credo in Deum, Patrem omnipotentem, Creatore coeli et terrae!”

Não prescinde, pois, o Estado brasileiro do culto a Deus.

Se Deus o protegeu na elaboração de sua Constituição, é da natureza da proteção ser o protetor mais poderoso que o protegido e ser digno de veneração por. parte dêste.

Não se pode, pois, alegar inconstitucionalidade em qualquer ato dos Poderes da União que importe em culto a Deus. O culto a Deus é até obrigatório. A luta em prol de Deus é obrigatória. As Imagens religiosas cristãs podem ser colocadas nas salas públicas de quaisquer dos Poderes. É manifestação do culto privado.

Não viola, portanto, qualquer dispositivo constitucional, a lei, o decreto, a deliberação, o ato ou qualquer outra forma de manifestação do culto a Deus pelos Poderes da, União, em conjunto ou isoladamente.

O Ato de Ação de Graças a Deus é constitucional, como constitucional será qualquer deliberação governamental, de qualquer natureza, inclusive de cooperação monetária, sem a continuidade ou permanência, que é caráter da subvenção, que tenha por finalidade o culto a Deus da Cristandade, Criador do Céu e da Terra.

Prestar culto não é o mesmo que estabelecer culto. Estabelecer culto é criar um culto novo. O Estado brasileiro não pode criar um culto especial a Deus, pois à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado estabelecer cultos religiosos. Não pode, também, prescrever a obrigatoriedade para determinado culto. Mas pode cultuar a Deus em atos solenes e em templos religiosos cristãos. Não fica ofendido nenhum princípio constitucional se o govêrno ou se qualquer dos Poderes da União mandar rezar missa de Ação de Graças ou se comparecer ou mandar rezar Te-Deum por ocasião de notáveis acontecimentos.

Subvencionar determinado culto é dar-lhe subsidio ou assistência permanente. Subvenção é suprimento regular para subsistência. Prestar auxílios para construção de templos, prestar espórtulas para a realização de ofícios religiosos não é subvencionar. O templo é uma coisa religiosa. Nêle se realiza o culto externo. Contribuir para sua construção não é subvencionar culto. Nem é subvencionar culto haver a colaboração recíproca monetária ou mesmo a colaboração unilateral, quer da religião cristã, quer do Estado, para a mesma finalidade social.

Desde que o Estado garanta o livre culto de qualquer religião, desde que êle não dificulte nem impeça o livre culto de qualquer religião, respeitadas as reservas constitucionais, nada impede que ele proceda de acôrdo com o rito da religião cristã, que adote para si próprio. O modo igual de proceder na garantia não importa em ter de adotar todos às cultos nas suas manifestações religiosas.

A supressão das relações oficiais entre o Estado e a religião significa simplesmente que o Estado não tem religião oficial com obrigatoriedade para todos segui-la. Da mesma forma que o cidadão é livre para cultuar sua religião, assim o Estado é livre para cultuar a Deus. Sòmente não é permitido que o Estado se reserve o direito de indicar bispos, párocos e demais membros da Igreja Católica, como rabinos, sacerdotes, pastôres, etc., de quaisquer outras religiões.

A tolerância que o Estado garante para os crentes das diversas religiões, a fim de que todos possam realizar seus cultos, é recíproca dos cidadãos, para com o Estado. Fica êste livre para seguir o culto cristão que aprouver aos detentores do Poder.

Mantida a representação diplomática junto à Santa Sé (Const. de 1946, artigo 196), não obstante ser o soberano pontífice chefe de um Estado constituído, ou de ser a Santa Sé pessoa jurídica de direito internacional, os sacerdotes brasileiros, os bispos brasileiros, os cardeais brasileiros não perdem a nacionalidade por aceitarem, sem licença do presidente da República, comissão, emprego ou pensão de govêrno estrangeiro (Const., art. 130, nº II), qual o Vaticano, nem perdem os direitos políticos pela aceitação de título nobiliário ou condecoração do Vaticano que importe restrição de direito ou dever perante o Estado, porque exercem a potestade de jurisdição temporal em ordem da vida eterna.

O Romano Pontífice, Sucessor de São Pedro no Primado, não sòmente tem o Primado de honra, senão também a plena potestade de jurisdição na Igreja universal, tanto nas coisas de fé è costumes, como nas que se referem à disciplina e regime da Igreja difundida por todo o orbe (Cód. de Dir. Canônico, cânon 218 ss. 1º).

Os cardeais da Santa Igreja Romana constituem o Senado do Romano Pontífice e o assistem como conselheiros e colaboradores principais no govêrno da Igreja (Cód. de Dir. Canônico, cânon 230).

Os bispos são sucessores dos Apóstolos e por instituição divina estão colocados à frente das igrejas peculiares, que governam com potestade ordinária, sob a autoridade do Romano Pontífice. São nomeados livremente pelo Romano Pontífice. Têm de prestar juramento de fidelidade à Santa Sé (Cód. de Dir. Canônico, cânon 332 ss. 2º).

Clérigos são os que pelo menos com a primeira tonsura foram consagrado aos ministérios divinos (Cód. de Dir. Canônico, cânon 108 ss. 1°).

Os que são admitidos na hierarquia eclesiástica, não o são por consentimento ou chamamento do povo ou de potestade secular, senão que são constituídos nos graus da potestade de ordem por sagrada ordenação; no Supremo Pontificado, pelo mesmo direito divino, cumprida a condição da eleição legítima e de sua aceitação; nos demais graus da Jurisdição, por missão canônica (Cód. de Dir. Canônico, cânon 109).

Na hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana existe a potestade de ordem e a potestade de jurisdição. Aquela é uma parte da potestade eclesiástica que se ordena à confecção e administração dos sacramentos e sacramentais. A potestade de jurisdição é a potestade pública de reger os fiéis em ordem da vida eterna (DOMINGUEZ-MORAN-COSTA, “Código de Dir. Canônico”, trad. esp., nota 108).

No sistema brasileiro, a separação da Igreja do Estado significa não haver recíproca subordinação de uma a outro, não impedindo que o Estado professe, por seus órgãos, determinada religião cristã, nem impõe aos brasileiros perda de nacionalidade ou suspensão de direitos políticos por ficarem subordinados, em missão da vida eterna, que é a religião, a órgãos estrangeiros, ou mesmo por, eventualmente, virem a ser eleitos Soberano Pontífice da Igreja Católica ou mais, alto dignitário de qualquer religião.

Assim, os brasileiros que forem clérigos, bispos, cardeais, ou que vierem a ser eleito papas, não perdem nem ficam suspensos da cidadania, nem dos direitos políticos, muito embora, para os efeitos da representação diplomática, sejam considerados agentes de pessoa jurídica de direito público internacional, ou Estado, porque a jurisdição que exercem, na vida temporal, é em ordem da vida eterna.

Em virtude dessa situação os ministros de cultos podem se corresponder com seus superiores fora do país e publicam seus atos sem autorização prévia dos poderes públicos.

A sentença, porém, de anulação de casamento religioso é sentença estrangeira, precisando, para, ser cumprida, desde que o casamento religioso tenha obtido efeitos de casamento civil, de homologação do Supremo Tribunal Federal (Const., artigo 101, nº I, letra g).

Os estabelecimentos públicos religioso, como as igrejas, sinagogas, etc., têm personalidade jurídica para gerir os respectivos patrimônios, quer com o nome de fábricas, consistórios, sinagogas, etc.

As sociedades ou associações religiosas são pessoas jurídicas de direito privado na forma dos seus estatutos registrados nos registros públicos.

Pelo Cód. Penal brasileiro de 1940, impedir ou perturbar cerimônias ou prática de culto religioso é crime, quer se trate de culto público ou privado, ao passo que o escarnecimento de alguém por motivo de crença eu função religiosa, o vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso é que precisam ser feitos em público para constituírem crime.

O sistema adotado pelo Brasil, como se vê, não é o de afastar o Estado da religião. É o do Estado não impor religião oficial para os cidadãos, nem impedir que religiões exerçam seus cultos, salvo ofensa à ordem pública. Não é o sistema de o Estado indiferente à religião. Na Constituição se manda respeitar, quanto ao trabalho, aos feriados religiosos, de acôrdo com as tradições locais. Reconhece-se o casamento religioso, desde que sejam observadas certas formalidades para registro.

Admite-se o ensino religioso nas escolas públicas. Permite-se a assistência religiosa nas fôrças armadas do país.

2. Quanto às associações religiosas

No estudo das relações jurídicas entre os bispos e as associações religiosas católicas, especialmente as irmandades, tem-se sustentado que, havendo um conflito entre a lei eclesiástica e a lei civil, é dever da Magistratura repelir em nome do princípio constitucional da separação entre os poderes temporal e espiritual, o apêlo que se lhe faça, sob o disfarce de princípios de justiça, apêlo que quer desorganizar a vida moral interna da Igreja de Jesus Cristo.

Pretende-se que, para ser fiel à Constituição, verifique-se o alheamento completo dos tribunais civis quanto ao govêrno e direção que o Ordinário Diocesano imprima à administração das irmandades e confrarias religiosas, consagradas ao culto divino e às obras de piedade e misericórdia.

Assevera-se que em matéria de natureza essencial, como é a da subordinação à autoridade eclesiástica competente, deixa de ser legítimo o compromisso que infrinja a lei suprema, que é a lei canônica geral.

Contesta-se a ingerência do Poder civil no seio das associações religiosas para estabelecer, com ofensa da liberdade de consciência, regras de disciplina e de subordinação contrárias às que são fixadas pelas leis eclesiásticas, em nome do princípio da autonomia sagrada da Igreja de Jesus Cristo.

Ensina-se que devem se julgar pelo Direito Canônico tôdas as questões de jurisdição e subordinação, nas quais estão em jogo os princípios da hierarquia que deverão ser respeitados e de obediência do inferior para com o superior.

Êsses princípios justificariam as afirmações de que os bispos podem suspender de funções as mesas administrativas das irmandades, impor-lhes penas, ordenar-lhes a eliminação de membros excomungados ou notòriamente inimigos da Igreja, lançar-lhes interditos e até mesmo dissolvê-las e extingui-las.

Contrariando, diz-se que a autoridade religiosa reivindica o direito de intervenção das irmandades por lhe negar caráter civil. Por outras palavras, diz-se que a autoridade eclesiástica não pretende exercer jurisdição sôbre associação civil em concorrência com a magistratura leiga, negando-se às irmandades essa qualificação.

Continuando, alega-se que as irmandades são entidades mistas, não competindo, com efeito, ao magistrado leigo o conhecimento das questões espirituais, pertencendo-lhe, porém, a jurisdição nos quadros temporais.

Considera-se, porém, nos têrmos da legislação em vigor, que as associações ou corporações religiosas continuam a ser consideradas pessoas jurídicas civis no que toca á matéria temporal, e, especialmente, a eleições, administração de seu patrimônio e prestação de contas. Essa matéria não teria revertido aos bispos e está quantum satis regulada na lei civil, de acôrdo com os princípios constitucionais que apenas vedam a ingerência do Estado no que concerne ao espiritual, campo de ação em que, agora, livre se desenvolve a autoridade canônica dos bispos e demais superiores eclesiásticos.

Tem-se como certo que não há em nosso Direito recepção ao direito canônico ou eclesiástica, que não tem transcendência para o direito privado.

Quer nos parecer, porém, que mui clara é a questão dos direitos dos bispos na supervisão, das associações católicas, notadamente as irmandades, como claro é que sòmente o Poder Judiciário possa assegurar aos bispos êsse direito, caso contestado, como, de vez em quando, tem acontecido.

Dois grandes preconceitos, dois grandes prejuízos, dois grandes pressupostos são os que têm impedido o justo apreciamento das atribuições dos bispos nas associações religiosas católicas. O primeiro, dos próprios bispos, o segundo, dos juízes. Dos bispos, quando, reagindo contra a separação da Igreja do Estado, pretendem reivindicar sua autoridade sôbre as associações religiosa católicas pela força autoritária da Igreja, como poder temporal. Dos juízes, quando, levando muito além o princípio da separação da Igreja do Estado, consideram os bispos pessoas intrusas nos órgãos administrativos das associações religiosas, que vieram a adquirir personalidade jurídica.

Nos momentos de transição de regimes, a reação e a ação agem em sentido inverso, com fôrças iguais em intensidade, impedindo que o justo ponto seja atingido por ambas as fôrças em debate.

No caso dos poderes dos bispos sôbre as associações religiosas católicas, o ponto comum a que ambas as correntes poderiam chegar, os bispos e os juízes, seria fora do campo de jurisdição, que ambos, porfiadamente, reivindicam.

O ponto justo está em que os bispos reconheçam a jurisdição dos juízes sôbre os direitos que se contestam aos administradores, e que os magistrados lhes assegurem os direitos de supervisão que têm nas associações religiosas católicas, da mesma forma como um administrador de sociedade civil tem direitos de administração indubitáveis, quando nomeado pelo contrato institutivo da sociedade.

Qualquer negação da jurisdição dos juízes a propósito dos direitos dos bispos é inconstitucional, porquanto, se era princípio admitido, hoje é princípio expresso que a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. Onde quer que exista um direito, ao lado se acha o juiz para assegurá-lo.

Os bispos têm direitos de supervisão, direção, fiscalização e destituição nas associações religiosas católicas, não só por constituírem êsses poderes disposições implicitamente contidas na provisão de aprovação dos compromissos, como pelo costume generalizado no país.

Para provar a existência dêsses direitos é que passamos a examinar os textos de documentos e leis.

Nas sociedades, o sócio investido na administração por texto expresso do contrato, pode praticar, indepentemente dos outros, todos os atos que não excederem os seus limites normais, uma vez que proceda sem dolo, e os poderes que exercer serão irrevogáveis durante o prazo estabelecido, salvo causa legítima superveniente (Cód. Civil, art. 1.383 e § 1º).

Assim, os bispos nas associações religiosas católicas, investidos, por texto expresso, adjunto ao contrato ou compromisso da associação, dos direitos de presidente das assembléias dos sócios, por si ou por seu delegado, dos direitos de aprovar ou não aprovar as resoluções das associações, das direitos de confirmar ou revogar o mandato dos administradores eleitos pelos sócios, dos direitos de exigir contas dos administradores, dos direitos de aprová-las ou não aprova-las, dando ou não dando quitação aos administradores.

O Concilio de Trento estabeleceu que os bispas teriam êsses direitos sôbre as associações religiosas católicas. Reconheceu que algumas delas tinham privilégios especiais com relação, a alguém competente para a tomada de contas. Reconheceu que alguns estatutos ou alguns compromissos, aprovados pela Igreja, podiam ter cláusulas expressas em contrário à intervenção dos bispos. Ressalvou essas exceções, e dispôs com aplicação geral e imediata que “os administradores, tanto eclesiásticos como seculares, de Fábrica de qualquer igreja, ainda Catedral, e dos hospitais, confraternidades, das esmolas dos montes de piedade, e quaisquer lugares pios, estejam obrigados em cada ano a dar contas ao Ordinário da sua administração, tirados quaisquer costumes e privilégios em contrário; salvo se no estabelecimento e regulamento de alguma igreja se ordenar em têrmos expressos em contrário. E se por costume, ou privilégio, ou regulamento do lugar se houver de dar contas a outros deputados para isto, neste número entrará também o bispo; de outro modo as quitações que se derem aos ditos administradores serão nulas”.

Aprovando os compromissos das irmandades, embora seus direitos estivessem avocados pela Coroa, como em Portugal, e, depois na Independência, no Brasil, os bispos jamais deixaram de resguardar seus direitos sôbre as associações religiosas católicas, cuidando sempre de impedir que nos compromissos das irmandades se contivesse alguma disposição que, em têrmos expressos, ordenasse o contrário.

Essa ressalva de direitos era feita, e feita ainda é, nas provisões de aprovação dos compromissos, incluindo numa fórmula de caráter tabelioa, nela se acha expressamente estabelecido o respeito pelos direitos supervisionais do bispo com relação às associações: “Fazemos saber que, sendo-nos apresentado… o presente Compromisso… e constando-nos que não se continha em… capítulos com… artigos de que êle se compõe coisa alguma contra os bons costumes, Doutrina da Santa Igreja e sua Sagrada Disciplina, Direitos Episcopais e Paroquiais, legitimamente estabelecidos, etc.”.

Nesta frase Direitos Episcopais legitimamente estabelecidos se encontra a expressa disposição, que fica fazendo parte integrante do compromisso, dos direitos dos bispos na hierarquia administrativa temporal das associações religiosas católicas.

Fórmula, como essa, significa; para nela se entenderem incluídos nos estatutos, todos e quaisquer direitos que em qualquer tempo e por qualquer diploma tivessem sido concedidos aos bispos, do mesmo modo como a fórmula revogam-se as disposições em contrário, adotada pelas leis, significa a revogação de qualquer disposição que apresente êsse caráter, ache-se em que diploma legal se achar.

No caso de contestação dêsse direito, à Jurisdição civil cabe desatá-la, como estabelece o art. 141, § 4°, da Constituição.

No estudo, pois, dos direitos dos bispos sôbre as associações religiosas católicas, não interfere, para prejudicá-los, a personalidade jurídica, que a associação adquira, personalidade jurídica que não foi estabelecida para suprimir os direitos dos bispos, mas por motivos de ordem prática ou técnica concernentes à, representação da associação em juízo ou fora dêle, à aquisição e à alienação de bens de qualquer natureza, à exploração dos bens patrimoniais por meio dos contratas normais quanto ao seu uso.

Medida de ordem prática, a constituição em pessoa jurídica, como o dizia o Dr. FERREIRA ALVES, “Leis da Provedoria”, 4ª ed., not. 200, não tinha por mira e resultado tornar possíveis as aquisições, Contratos e representação em juízo, mas torná-los diretos e fáceis, eliminando a dificuldade do condomínio; da responsabilidade pessoal e da representação individual. Consideração igual à que se fazia, na França e na Bélgica: “L’association constitituait, comme la société, un contract parfaitement régulier; mais tout comme la société, som fonctionnement était malaisé, parce que les associés ne pouvaient acquérir en commun que “ut singuli” comme individue, et non comme être moral. C’est ce manque de souplesse dans le fonctionnement, avec toutes les difficultés qu’il entraine, qui a fait que le contrat d’association était pratiquement dépourvu de toute utilité” (HENRI DE PAGE, “Droit Civil Belge”, vol. V, not. 2, pág. 9)

A personalidade jurídica, portanto, sobrevinda às associações, não podia Ter o efeito que muitos supunham que teria; de retirar delas a sua qualidade, que as faz sui generis, de associações religiosas, e a retirar, delas a hierarquia interna consistente nos direitos do Ordinário, na forma do estipulado pelo Concilio de Trento.

A personalidade jurídica jamais foi incompatível com qualquer organização interna da associação.

Particularmente quanto às religiosas, nenhuma lei das várias de separação da igreja da Estado, entre as quais poderemos citar a da França, como nenhuma lei sobre a personalidade jurídica das associações religiosas católicas, como da Espanha, retiraram a hierarquia, que aquêle Concilio estabelecera.

Segundo o art. 2° dos estatutos-tipos, de acôrdo com a lei francesa sobre as associações diocesanas, seu fim seria de “subvenir aux frais et à l’entretien du culte catholique, sous l’autorité de l’évèque en communion avec le Saint-Siège et conformérnent à la constitution de l’Eglise Catholique” (PLANIOL, “Droit Civil Français”, vol. XI, nº 1.125).

De acôrdo com a, lei espanhola de 2 de junho de 1933, art. 6°, “el Estado reconoce a todos los miembros y entidades que jerarquicamente integran las confesiones religiosas personalidad y competencia propias en su regimen interno” (ENNECCERUS, “Der. Civ.”, trad. esp., tomo I, P. Gen. I, pág. 445).

A lei brasileira das associações, número 173, de 10 de setembro de 1893, não retirou a hierarquia existente nessas associações, pois estabeleceu no seu art. 7° que seria necessário declaração em contrário nos estatutos para se regularem os diretores ou administradores revestidos de poderes para praticar todos os atos de gestão concernentes ao fim e ao objeto da associação.

O Cód. Civil na art. 1.386 também veio exigir estipulação expressa nos estatutos para que a administração não ficasse livre a todos os sócios.

Nenhuma lei, outrossim, jamais estabeleceu proibição de que, nas associações religiosas católicas, o Ordinário não ficasse com os direitos que as leis canônicas estabeleciam com relação às associações de tal natureza.

A questão da concessão de personalidade jurídica a associações segue uma evolução interessante nos diversos países. As leis vão dando personalidade às associações a pouco e pouco. Existindo muitas, de diferentes espécies, verdadeiramente sui generis, como as religiosas, as leis não têm estabelecido uma regra geral que as uniforme, porém têm especificado aquelas associações a que a lei dá personalidade.

O nosso Cód. Civil adotou um princípio de ordem geral, seguindo a lei número 173, de 1893. Deu personalidade jurídica às sociedades civis, às religiosas, às pias, às morais, às científicas, às de interêsse público e às fundações.

Definindo associações religiosas, o Prof. ARNALDO BERTOLA, in “Nuovo Digesto Italiano”, vol. I, pág. 1.043, diz que “si entendano per associazioni religiose… ossia quelle che in linguagio tecnico-canorico hanno la denominazione comune di religiosi…la cui esistenza ed attievità sono espressamente prevedute e disciplinate dal diritto canonico”.

Significa, pois, que, para sabermos quando uma associação seja religiosa católica, razão pela qual ela adquiriu personalidade jurídica, temos que procurar na Constituição da Igreja Católica, que é o Cód. de Direito Canônico, se a associação, que se apresenta como religiosa católica, está preconizada entre as associações eretas, criadas ou recomendadas pela Igreja Católica.

Se não o estiver, a associação poderá ser de qualquer outra espécie, mas religiosa católica é que não será.

A qualificação de religiosa católica significa, assim, que ela, na forma em que ela é, fica admitida pela jurisdição civil.

O Estado as recebe tais quais são, com as suas originalidades de composição, com as suas peculiaridades de organização, com a disciplina estabelecida nos seus: compromissos e nas leis canônicas a que correspondem, salvo quando sejam contrárias à lei, à ordem pública e aos bons costumes. Quanto ao mais, tal qual é a associação, com os seus estatutos, com os seus usos, com as suas disposições internas, assim é ela recebida pela jurisdição civil, que em nada as altera.

Num apanhado retrospectivo, podemos ver que, criadas as irmandades, temporalmente isentas da intervenção do Ordinário, submeteu-as ao Ordinário o Concilio de Trento, nas questões de contas e outras, tirando-as dêle, porém, as leis de Portugal, para submeter as contas das irmandantes à Coroa, regime que, mais ou menos, prevaleceu durante o império no Brasil, para acabar com a lei da separação, que não tornou leigas ou laicas aquelas associações religiosas, senão que como religiosas as reconheceu, restituindo-as à Igreja, embora submetidas à jurisdição civil, sem prejuízo de sua organização eclesiástica, cujos direitos ficaram sempre ressalvados nas provisões de aprovação dos compromissos.

Isso é o que significa o texto da lei da separação, a lei das associações civis, o Cód. Civil e a Constituição de 1946.

Havendo, pois, alguma dúvida sôbre a hierarquia nas associações, a jurisdição civil terá que examinar qual a que seja própria de cada associação, o que a leva ao exame das disposições canônicas, que são as que dão essa hierarquia, desde que se trate de associação religiosa.

Não colide, portanto, com qualquer princípio da lei civil, em nosso pais, o direito que tem o Ordinário de aprovar ou não as deliberações das assembléias dos irmãos nas associações religiosas católicas, o direito de aprovar ou desaprovar o mandato dos administradores das irmandades, o, direito de exigir, aprovar ou desaprovar as contas. Não são direitos de ordem espiritual. São direitos de ordem temporal que os Ordinários têm sôbre as associações religiosas católicas de suas sedes ou de suas dioceses. Não são originados simplesmente da jurisdição religiosa que os bispos têm sôbre suas associações, mas da admissão civil dêsse direito, reservado pela lei canônica aos bispos e por êstes reivindicados quando aprovam os Compromissos.

É, aliás, conseqüência do princípio da liberdade contratual ou da autonomia da vontade no campo do direito civil.

No direito privado, o princípio da liberdade de contratar, acentuado magnificamente pelo eminente GUILHERME ALVES MOREIRA, “Instituições de Direito Civil Português”, vol. 1°. pág. 67, é o princípio que justifica tôdas as formas associativas, que os interessados achem conveniente dar às suas organizações.

Por ele, a lei não representa papel principal, porém subsidiário. “La loi n’est appelée à intervenir qu’à défaut de volonté formellement exprimé par les parties. En principe, celles-ci priment; et la loi ne joue pas un rôle principal, mais subsidiaire” (HENRI DE PAGE, “Droit Civil Belge”, vol. II, n 462).

Quatro grandes princípios são básicos no direito dos contratos, como diz HENRI PAGE: “Le principe de l’autonomie de la volonté; le principe du consensualisme; le principe de la convention-loi, et le principe de l’exécution de bonne foi”. “Ils forment en quelque sorte les piliers de l’édifice, sur lequel viennent réposer toutes les superstrutures. Ils nous révèlent, à se titre, la conception, d’ensemble de notre droit des contracts” (ob. cit., nº 461).

A liberdade de contratar favorece que as partes estabeleçam nas associações o sistema que mais lhe convier. Aliás, a lei nº 173, de 10 de novembro de 1893, que, com relação a associações civis de fins não econômicos, continua em vigor, estabelece no art. 7° quais sejam as disposições consideradas supletivas, ao dispor que, salvo declaração em contrário nos estatutos, reputam-se os administradores ou diretores revestidos de poderes para praticar todos os atos de gestão concernentes ao fim e objeta da associação, não podendo transigir, renunciar direitos, alienar, hipotecar ou empenhar bens da associação, obrigados a prestar contas anualmente à assembléia geral, tendo todos os associados direito de votar na assembléia geral, sendo as resoluções tomadas por maioria de votos dos membros presentes.

Quanto às associações religiosas, um outro princípio merece especial menção. É o da execução de boa-fé. Como diz HENRI DE PAGE, permite êle “déjouer les ruses et les fraudes basées sur une interpretation trop rigoureusement formaliste”.

DEMOGUE dêle retirou um outro, o da colaboração entre as partes. Cada contratante é obrigado, pelo simples fato de ter contratado, a trazer ao seu co-contratante tôda a ajuda necessária para assegurar uma boa execução do contrato. “L’idée de l’obligation de collaboration entre contractants n’est d’ailleurs qu’un aspect de l’idée plus générale qu’il ne doit pas y avoir abus dans l’éxécution des contracts” (“Des Obligations”, vol. 6º, pág. 18).

Com particular aplicação às irmandades, os irmãos sabem que nelas a intervenção do bispo não se origina sòmente da sua influência religiosa, senão também dos seus direitos inerentes à aprovação dos Compromissos. Se entram para tais associações, não têm surprêsas quanto aos direitos que o ordinário tem no seio das associações eclesiásticas. O princípio da boa-fé na execução do contrato, e o princípio da solidariedade dos contratantes, são bastantes para demonstrar que os associados se sublevam, quando querem desconhecer os direitos de hierarquia que os Ordinários têm nas respectivas organizações.

No estudo, portanto, dêsses direitos hierárquicos nas irmandades religiosas, a questão não está na separação da parte espiritual da parte temporal. A associação religiosa é sui generis, como sui generis é a literária, a pia, a moral, a científica, a fundação, a associação de interêsse público. Tem cada uma sua organização específica e é essa organização que o Código toma para lhe dar personalidade jurídica.

O Dr. FERREIRA ALVES, uma das autoridades mais apreciadas no assunto, não pós dúvida em que a jurisdição civil devesse respeitar a hierarquia interna das associações religiosas católicas. Referindo-se à lei da separação da Igreja do Estado dizia que, “se, por determinação dessa lei, o Poder Judiciário civil tem a sua jurisdição limitada quanto à inspeção, tomada de contas, ingerência na administração econômica dos bens pertencentes às irmandades, confrarias e mais associações religiosas, não a tem, porém, limitada quanto às ações possessórias ou de domínio, quer entre as associações entre si, quer entre estas e terceiras”.

Tocara o eminente jurista, mais tarde, ministro do egrégio Supremo Tribunal Federal, no ponto capital que interessa às relações entre as associações e os bispos ou os Ordinários do local, a intervenção dêstes ou os poderes na associação, não os poderes de ordem espiritual, porém os poderes de ordem temporal, de supervisão administrativa, do poder de aprovar ou revogar as eleições feitas pelos associados para as mesas das respectivas associações, o poder de pedir e de julgar as contas dos administradores.

O Dr. FERREIRA ALVES, comentando uma pastoral do bispo D. José Pereira da Silva Barros, do Rio de Janeiro, salientou que na Monarquia os prelados não tinham o direito de tomar as contas das irmandades, não tinham intervenção nas eleições, citando antigos autores, leis e decisões.

Podiam regular, dentre do templo, o que fôsse relativo ao culto, tendo, na parte espiritual, ingerência nas irmandades e confrarias, quanto à decência do culto e naquilo que fôsse puramente espiritual.

É fácil de explicar essa situação da Igreja no direito antigo. As pessoas, nesse direito, eram classificadas pela, sua “naturalidade” (nacionais ou estrangeiros), pela sua “qualidade ou condição” (livres, escravos, nobres, peães), pelo “estado” (eclesiásticos, seculares, aquêles clerigos, religiosos, êstes solteiros, casados, viúvos), pela “sanguinidade” (pais, filhos e parentes), pelo “sexo” (homem e mulher), pela “idade” (maior, menor), por “vários acidentes” (dementes, pródigos, ausentes, cativos, miseráveis, infames, indignos) (BORGES CARNEIRO, “Direito Civil”, volume 1°, tít. I, § 21).

Os eclesiásticos tinham disposições especiais, não só a respeito das pessoas, como dos bens, não só a respeito da jurisdição para os julgar, como para os recursos à Coroa.

Permitida a liberdade de cultos pela Constituição do Império, instituída a Religião Católica como Religião do Estado, desaparecida a classificação das pessoas em eclesiásticos e seculares, não houve uma nítida separação dos direitos dos bispos sôbre as associações católicas de suas dioceses, confusão que permaneceu quando a República separou a Igreja do Estado.

Quando, pois, a lei da separação da Igreja do Estado deu liberdade às associações religiosas, não foi para isentá-las do direito canônico, que lhes dera corpo, porém, para reintegrá-las na situação dêsse direito, complementar ou supletivo dos seus estatutos ou compromissos, fazendo-as voltar para o seu verdadeiro estado.

E quando, porventura, fôsse achada deficiente a fórmula “nada contrário… aos direitos episcopais”, contida na provisão, para a reserva dos direitos dos bispos, êsses direitos teriam sido, no número, constituídos pelos costumes.

São os costumes de serem atendidos pelo juiz na aplicação da lei (Lei de Introdução ao Cód. Civil, art. 4º). E fora de dúvida que os costumes de tôdas as irmandades no Brasil são da hierarquia do bispo sôbre as deliberações das assembléias dos irmãos, salvo uma ou outra que se rebela, ou invocando a lei da separação da Igreja do Estado, ou alegando que a interferência do bispo seria de ordem espiritual. Mas de ordem temporal é que es a interferência na forma dos costumes disseminados por tôdas as irmandades de tôdas as paróquias do Brasil.

São os costumes fonte de direito (ESPÍNOLA e ESPÍNOLA FILHO, “Lei de Introdução ao Código Civil”, vol. I, nº 51). Sem ser contrário à lei, contra legem, mas praeter legem, para completar a lei, para supri-la, o certo é que o costume admitido em tôdas as irmandades está de acôrdo com as disposições do Concilio de Trento sôbre a intervenção do Ordinário nas associações.

E’ o costume aplicado independentemente da alegação das partes (ESPÍNOLA e ESPÍNOLA FILHO, ob. cit., págs. 125 e 126), na base do princípio de que “jura novit curia”, como ensina PACCHIONI, “Privillegi”, 2ª ed., vol. I, pág. 99).

Público e notório êsse costume, como todo fato dessa natureza, a hierarquia dos bispos nas associações religiosas católicas prescinde de provas extensas (Código de Proc. Civil, art. 211).

Justificando a imposição dos costumes, diz GENY, com manifesta aplicação para o caso dos direitos dos bispos, que: “De um lado, a segurança indispensável aos interêsses privados e a estabilidade necessária dos direitos individuais, não menos do que a necessidade de igualdade, que constitui o fundamento de tôda justiça, exigem que uma regra, admitida por longo uso, com o caráter de obrigação jurídica, se impõe de modo igual à lei, de maneira a guiar, sem hesitação, a atividade de todos. De outro lado, êsse resultado torna-se eco de um sentimento profundo da natureza humana, que envolve, com um respeito, entremisturado de temor, o costume dos ancestrais” (“Methodes d’Interpretation et Sources”, 2ª edição, vol. I, nº 115).

Não há necessidade de que o costume seja admitido sem discrepância, por todos. Contestação de sua existência poderá ocorrer. E’ com a contestação sôbre seu vigor que aparece a oportunidade para êle ser declarado, admitindo, pois, o requisito de “geralmente praticado” que alguém o deixe de praticar, ou conteste a sua prática.

Já vimos que na França e na Espanha a intervenção hierárquica do bispo é admitida plenamente pela lei.

Em Portugal, consideram-se associações religiosas as que se constituírem com o fim principal da sustentação do culto, de harmonia com as normas da hierarquia e disciplina da religião a que pertencerem (CUNHA GONÇALVES, “Trat.”, volume XIV, pág. 466).

No art. 4º da Concordata com Portugal ficou dito que tais associações “administram-se livremente, sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica”.

CUNHA GONÇALVES declara que “a autoridade eclesiástica que exerce fiscalização em tais instituições, é o bispo residencial da diocese onde elas funcionam” (ob. cit., pág. 459).

Constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, foi a declaração equivalente à da Concordata com Portugal, e que consta do dec. nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que estabeleceu a separação da Igreja do Estado, no Brasil.

A disciplina, a. hierarquia, a distribuição das competências assim não ficaram incompatíveis com as nossas leis, nem com a ordem pública que a República trazia para o país.

Baseado, pois, na lei de separação da Igreja do Estado, que permitiu às associações religiosas viverem segundo sua disciplina; baseado na lei das associações civis, que só por disposição expressa dos estatutos não permite interferência na administração da associação fora do estipulado; baseado no Cód. Civil, que, na mesma sorte, permite a liberdade de contratar; baseado nos princípios da autonomia da vontade, dos costumes como fonte de direito e nas situações análogas de outros países civilizados; sobretudo baseado no princípio da execução com boa-fé dos contratos, é sem dúvida que os bispos têm o direito temporal de hierarquia nas irmandades religiosas católicas para presidir por si ou seu delegado as assembléias dos irmãos, aprovar ou desaprovar as deliberações dos irmãos, aprovar ou revocar os mandatos conferidos aos administradores, exigir contas dos mesmos, direitos êsses que as associações não posem desconhecer e que os juízes devem assegurar aos Ordinários, de que falam as leis eclesiásticas.

Não se trata da admissão do direto canônico em nosso direito. Trata-se de assegurar aos bispos o seu direito líquido e certo de superior hierárquico na disciplina interna das associações religiosas católicas, ressalvado no inciso da provisão usual de aprovação dos compromissos, – coisa alguma contrária… aos direitos episcopais”.

3. Aplicações dos princípios no Brasil

Na prática brasileira, em diversos aspectos, a jurisprudência se tem manifestado sôbre a liberdade de cultos.

a) Assegurada pelo art. 72, § 3º, da Constituição de 1891, desde quando se revele em atos exteriores, que podem interessar à ordem pública, como as outras liberdades, limitações impostas pela coexistência social; não pode prejudicar a ordem, a moral, os bons costumes, a saúde pública. E’ ato de exclusiva competência da autoridade eclesiástica a denegação de licença para a salda de procissão ou qualquer outra prática externa do culto. Concessão de habeas corpus para garantir o exercício de culto religioso externo (sentença do Dr. HENRIQUE VAZ PINTO COELHO, “REVISTA FORENSE”, volume XXVI, pág. 374).

b) E’ da alçada policial proibir ou restringir o culto externo de confissão religiosa, desde que haja perigo de alteração dá ordem pública ou ofensa aos bons costumes (“REVISTA FORENSE”, volume XXXIV, pág. 501).

c) E’ legítima a punição de pastor de seita religiosa, quando leva à insubmissão, com suas prédicas, soldados brasileiros, quando sua sinceridade não nos permite acreditar na sinceridade de seus atos (acórdão do Supremo Tribunal Federal, “REVISTA FORENSE”, vol. CII, página 127. Voto vencido do ministro OROZIMBO NONATO: “Não constituem delito as prédicas que aconselham o horror à violência e o repouso semanal”).

d) Não cabe habeas corpus contra a proibição feita pela polícia, à requisição de autoridade eclesiástica, de uma procissão religiosa (“REVISTA FORENSE”, volume XXVII, pág. 175).

e) Na caracterização do crime contra o livre exercício do culto, é critério essencial que o ato incriminado tenha procedido da intenção direta de perturbar êsse exercício ou de impedir, por qualquer modo, a celebração de cerimônias religiosas. As lesões ou injúrias a um sacerdote, por ocasião das funções sacras, pode perturbar o culto e ocasionar a interrupção dos atos religiosos; mas, desde que falte o ânimo direto à agressão do culto, tais contingências devem ser reputadas, apenas, como agravantes do crime principal (“REVISTA FORENSE”, vol. VII, página 181).

f) Não ofende o art. 72, § 2º, da Constituição de 1891, a ordem do comandante de polícia militar a oficial dessa corporação proibindo-o de freqüentar sessões espíritas, em que se perturba a tranqüilidade pública e se praticam outros atos ilegais (acórdão da Relação de Minas Gerais, “REVISTA FORENSE”, vol. XXXV, página 498).

g) O espiritismo, ciência, ou religião, é coisa muito diversa das práticas mistificadoras, que exploram a crendice popular, ou tendem â deturpação de doutrinas que, irrecusavelmente, podem ser esposadas e difundidas com apoio na Constituição, que garante a liberdade de culto, de consciência e de pensamento; o falso espiritismo que visa à cura de moléstias, simulando a influência de fôrças sobrenaturais, as manifestações e os transes, que impressionam as pessoas supersticiosas e fracas, não se confunde, portanto, com a parte científica e religiosa. Ninguém de certo, considerará um crime a religião espírita, o seu ritual, a sua ciência, mas o bom senso sabe distinguir o verdadeiro culto ou a ciência pura, do que é fraude, impostura, mistificação, simulação (acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, “REVISTA FORENSE”, vol. XCVII, pág. 195).

h) No habeas corpus pedido a favor de um pastor adventista japonês, condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional por instigar desobediência coletiva ao cumprimento da lei, em tempo de guerra, e cujo acórdão, acima referido, também vem publicado no Direito, vol. XXIX, página 345, acusava-se o pastor de ter, por sua pregação, levado certo jovem, que prestava serviço militar, a se negar, em determinado dia de “sábado”, a cumprir determinação de serviço, provinda de seu superior hierárquico.

Por maioria de votos, foi considerado, conforme voto do ministro FILADELFO AZEVEDO, que “o nexo entre a pregação e a prática, ainda que deturpada por singeleza ou inópia de adeptos ou aspirantes da nova seita, basta para assegurar, em tese, a punibilidade”.

Nesse habeas corpus o ministro FILADELFO AZEVEDO se referiu ao caso de ter a Côrte Suprema dos Estados Unidos concedido habeas corpus impetrado por pais e responsáveis por alunos de certa escola, que, invocando motivos de consciência, se recusavam a saudar o pavilhão nacional, sendo que dois dias depois à mesma Côrte, diante das situações de cidadãos americanos, nascidos no território nacional, mas filhos de japonêses, com espírito formada á feição asiática; considerou legítimas restrições impôstas por leis de guerra.

Êsses casos são mencionados por CORWIN, “The Constitution and what it means to day”, ed. de 1948, págs. 1.919-181.

i) Permitir procissão de uma imagem benta de Igreja Católica, fora dos ritos desta Igreja e contra proibição da autoridade religiosa respectiva, – e com os reclamos desta perante a polícia, – fôra desrespeito e vilipêndio que a lei veda por contrário à garantia do livre exercício de cada confissão religiosa; nos têrmos da sua liberdade consagrada pela Constituição (“A Constituição Federal Interpretada pelo Supremo Tribunal Federal”, MEND. AZEVEDO, pág. 343).

j) A Igreja Católica Apostólica Brasileira foi acusada pelo arcebispo de São Paulo de estar deturpando os ritos da Igreja Católica Apostólica Roma: “E é precisamente em nome desta plena liberdade religiosa, que se vêem os católicos no dever de protestar contra, a propaganda da nova Igreja, por parte do ex-bispo de Maura, desleal propaganda, que visa estabelecer a confusão entre os fiéis pois, substancialmente adota a tal Igreja Nacional, em seus atos externos de culto, os mesmos hábitos e os mesmos ritos, da Religião Católica. Êle próprio, o Sr. Carlos Costa, de início, quando apostatou, fêz pública declaração de que o ritual ou cerimônias do culto externo de sua Igreja Nacional seria o mesmo ritual da mesma Igreja Romana, de que se separava. Que assim tem sido realmente; prova-o fato de ser apresentado como bispo, do Culto Românico, de usar êle, e seus ministros, as mesmas vestes e insígnias do clero é bispos romanos, praticar como vem praticando, os mesmos atos religiosos da Igreja de Roma – procissões, por exemplo, missas campais, bênçãos e lançamentos de pedras fundamentais e outros atos, além dos santos sacramentos ilegalmente administrados com os mesmos paramentos e as mesmíssimas cerimônias do nosso culto externo. Ora, não há quem não veja nisto intencional confusão, por parte do ex-bispo de Maura, que ùltimamente deu até para ouvir confissões sacramentais… depois de haver negado a divindade do sacramento de confissão”.

Com êsses fundamentos foram pedidas urgentes providências, que fôssem julgadas adequadas, a fim de que cessassem as atividades do Sr. Carlos Duarte da Costa, proibindo-se o funcionamento da Igreja Brasileira.

Ouvido o consultor geral da República, Dr. HAROLDO VALADÃO, considerou que na liberdade religiosa existe a liberdade de crença, a liberdade de culto, a liberdade de formação e a liberdade de Igrejas ou associações religiosas. Considerou, outrossim, que “a primeira é absoluta e as outras duas relativas, subordinadas à ordem pública, aos bons costumes, ao respeito à liberdade dos outros cultos ou igrejas, às disposições do direito comum, às leis civis, penais, etc. A Igreja Católica Apostólica Brasileira, afirmando que adota os cultos das outras Igrejas e seguindo, declaradamente, o culto romano, não está exercendo livremente o seu culto e está usurpando, desrespeitando e perturbando o livre exercício do culto da Igreja Católica Apostólica Romana. O poder de polícia, no assunto, compreende a faculdade de assegurar o livre exercício do culto de uma religião e obstar que êsse culto seja perturbado por quem não pertence à mesma religião” (“Pareceres do Consultor Geral da República”, 1949, vol. I, páginas 383-401).

A polícia proibiu a, realização do culto por parte da aludida Igreja.

Requerido mandado de segurança ao Supremo Tribunal Federal, foi denegado sob o fundamento de se tratar de questão de fato, embora diversos ministros tivessem feito considerada sôbre a liberdade de cultos religiosos.

A questão de fato se referia ao uso dos mesmos paramentos, dos mesmos templos, do mesmo ritual.

O princípio seguido pelo Govêrno, por intermédio do Ministério da Justiça, foi, embora não o tivesse deixado explícito com clareza, o de não existir uma tradição que desse direito à nova igreja para ser admitida. Deveria, como se lê no “Manuel of Christian Doctrine” americano, que o novo culto tivesse adquirido uma sorte de existência legal consagrada pelo tempo.

A confusão, outrossim, foi outro princípio que teria inspirado a deliberação do govêrno brasileiro, por intermédio do seu Ministério da Justiça.

No levantamento, que procedemos, da jurisprudência brasileira sobre a liberdade de culto e religião, outros casos não encontramos, senão êsses, ressalvado, por isso mesmo, que, talvez, não sejam os únicos.

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