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ADMINISTRATIVO

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REVISTA FORENSE

A administração e o controle de legalidade

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REVISTA FORENSE 156

Revista Forense

Revista Forense

08/12/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 156
NOVEMBRO-DEZEMBRO DE 1954
Bimestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

  • Impôsto de Vendas e Consignações – Impôsto de Exportação, Francisco Campos
  • Rendas Locais – Arrecadação Estadual – Impôsto de Renda – Participação dos Municípios, Gilberto de Ulhoa Canto
  • Mercado Municipal – Domínio Público – Autorização Administrativa – Executoriedade Dos Atos Administrativos, Antão de Morais
  • Anistia – Conceito – Pagamento de Vantagens a Militares, A. Gonçalves de Oliveira
  • Juiz – Promoção Automática – Elevação de Entrância, Gabriel de Resende Passos
  • Ministério Público – Unidade e Indivisibilidade da Instituição, J. A. César Salgado
  • Advogado – Ingresso nos Cancelos dos Juízos e Tribunais, Cândido de Oliveira Neto

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • Hugo Grocio, Hidelbrando Acióli
  • Lúcio de Mendonça, F. C. San Tiago Dantas
  • Do Corpo de Delito, José Frederico Marques
  • A Homologação das Sentenças Estrangeiras de Divórcio, João de Oliveira Filho
  • A Emissão de Ações com Ágio, Sílvio Marcondes
  • Poder Discricionário do Juiz
  • Exceção de Inexecução de Contrato Bilateral, Arno Schilling
  • Reintegração de Posse “Initio Litis”, Enéias de Moura
  • Justiça do Distrito Federal, José Pereira Simões Filho
  • José Antônio Pimenta Bueno, Dr. Laudo de Almeida Camargo

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: 1. A administração e o Estado de Direito. 2. O fortalecimento do Poder Executivo. 3. A administração e o poder discricionário. 4. A teoria da inexistência dos motivos e o desvio de poder. 5. Contrôle administrativo, jurisdicional e parlamentar da legalidade dos atos administrativos.

Sobre o autor

Caio Tácito, Professor da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro

DOUTRINA

A administração e o controle de legalidade

A administração e o Estado de Direito

A juridicidade da administração pública é fruto do liberalismo político. Os direitos do homem geram os deveres do Estado. Nos regimes absolutos, o administrador – veículo da vontade do soberano – é, como êste, irresponsável. A administração é, apenas uma técnica a serviço de privilégios de nascimento. O Estado de Direito, ao contrário, submete o Poder ao domínio da Lei: a atividade arbitrária se transforma em atividade jurídica.

O direito administrativo surge entre as cinzas ainda quentes do regalismo. A sua certidão de nascimento é, de acôrdo com parecer de ZANOBINI, a lei de 28 pluviose do ano VIII (1800, no calendário gregoriano), que deu feição jurídica à administração francesa.1

O fortalecimento do Poder Executivo

O episódio central da história administrativa no século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sôbre os indivíduos como as autoridades públicas. A liberdade administrativa cassa, onde principia a vinculação legal. O Executivo opera dentro em limites traçados pelo Legislativo, sob a vigilância do Judiciário.

A êsse fenômeno de legalização da atividade administrativa associa-se, mais recentemente, a tendência, de fortalecimento do Poder Executivo. A sociedade liberal, baseada na livre iniciativa, aprofundou-se em contradições e antagonismos. Os interêsses se organizaram em grupos, provocando conflitos intoleráveis com os postulados da ordem democrática. O puder público foi convocado a disciplinar e conter a atividade privada, sujeitando-a aos princípios do bem comum e da Justiça social. O Estado moderno assume, cada vez mais, sentido dinâmico, mediante a regulamentação, o contrôle ou o monopólio do comércio, da produção, do ensino, do transporte, ou, até mesmo, da pesquisa científica. A tônica dos regimes políticos se desloca da abstenção para a intervenção. Intervir para preservar – eis o lema democrático moderno.

Os novos encargos de govêrno levam à hipertrofia dos órgãos executivos. Não mais se limita a administração ao papel clássico de manter a ordem e a tranqüilidade públicas. O poder de polícia do Estado alcança pràticamente, tôdas as formas de atividade humana.2 A administração, ao mesmo tempo, se especializa e se generaliza. Os entes estatais se descentralizam em novas pessoas jurídicas de direito público. A capacidade normativa do Executivo se desenvolve por meio das delegações legislativas e do poder regulamentar. Os tribunais administrativos, ou as comissões dotadas de poderes quase-judiciais, englobam expressiva parcela da atividade jurisdicional.

O individualismo jurídico se decompõe sob a pressão poderosa de causas e concausas sociais. A socialização do Direito transcende ao plano doutrinário e se afirma na criação legislativa e na hermenêutica constitucional. Não se trata apenas – disse-o o Prof. AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO – de crise do Direito, mas de Direito da crise.3

As condições sociais atribuem ao Estado uma posição de tutela e gerência de interêsses gerais e individuais. A manutenção e sobrevivência do indivíduo, a sua proteção contra riscos e incertezas sociais, a própria defesa da soberania nacional motivam a revisão de alicerces: a propriedade, a família, o trabalho, a autonomia da vontade ou a liberdade de contrato obedecem a novos pressupostos de inspiração coletiva.

A partir da primeira guerra mundial – assinala o Prof. ROGER PINTO – o papel dos Parlamentos declinou em benefício do Executivo.4 Em todos os sistemas representativos modernos, segundo o testemunho de GEORGES BERLIA, os textos legislativos são, em sua grande maioria., originados de projetos governamentais.5 BISCARETTI DI RUFFIA acentua, como novidade constitucional na Inglaterra, o notável desenvolvimento das funções normativas do Poder Executivo. E, a propósito do Congresso norte-americano, destaca o fenômeno já assinalado na Inglaterra e no continente europeu, da supremacia do Executivo na elaboração das leis.6 A aplicação da lei supera, em muitos casos, o seu enderêço e se transforma em lesão de direito. Embora abeberada em razões de ordem pública, a atuação do Estado pode transbordar de seus limites e traduzir-se em formas abusivas ou inconvenientes.

A administração e o poder discricionário

É necessário, assim, garantir à administração o uso do poder discricionário, eliminando qualquer espécie jurisdicional de contrôle de oportunidade, mas também proteger o indivíduo contra os riscos da pletora administrativa.

Dentro dos limites legais, a vontade do administrador é livre e plena; quando dêles se afasta, é irrita e arbitrária. No primeiro caso, o Direito a fortalece e prestigia; na última hipótese, a repudia e nulifica. Como fixar, porém, na multiplicidade da conduta administrativa, o lícito ou o ilícito? Como distinguir, na materialidade dos atos administrativos, o campo franqueado ou defeso à escolha do administrador? Como assinalar, na prática administrativa, o aspecto facultado ou interdito à análise judiciária?

Em tese, a doutrina já firmou, há muito, a fronteira entre a liberdade de opção do administrador e a sua obrigatória subordinação à lei. A dificuldade situa-se, objetivamente, na caracterização dos elementos integrativos do ato administrativo, de modo a separar a porção vinculada e a discricionária.

A ação administrativa do Estado desdobra-se segundo preceitos legais estabelecidos. A iniciativa da administração depende, primàriamente, de uma regra de competência que autorize o agente a proceder em nome do Estado. Esta subordinação a uma lei anterior não significa, porém, que a administração seja um processo em que não participem razões técnicas ou políticas. Como observou JELLINEK,7 seria inconcebível um Estado em que tôda a atividade fôsse vinculada. O fenômeno social não se escraviza a colêtes de fôrça, nem a esquemas teóricos. A administração necessita de maleabilidade de métodos e caminhos para atender às suas finalidades coletivas.

A administração encontra, assim, no processo de sua realização, um campo de livre desenvolvimento, no qual lhe é facultada a seleção de critérios e de fórmulas. Subordinado sempre à legalidade de sua atuação, é lícito ao administrador se orientar, livremente, com respeito à oportunidade e à conveniência. Esta capacidade de autodeterminação constitui o poder discricionário, que se exaure inteiramente no setor administrativo, não podendo ser objeto de consideração jurisdicional. A oportunidade do ato administrativo poderá, em certos casos, ser reexaminada, pela própria administração; em nenhuma hipótese poderá ser apreciada pelo Poder Judiciário. O equilíbrio jurídico exige que o juiz e o administrador se coloquem em seu território próprio, a que estão destinados, tanto pela competência legal, como pela especialização profissional. O administrador dotado de experiência prática e maior conhecimento pragmático decidirá, com plasticidade, os problemas da administração. Não cabe ao juiz, mesmo perante desacertos e equívocos, substituir a ação executiva pelo arbítrio da toga. A ditadura judiciária é tão nociva como o descritério da administração. Proclamou, recentemente, o nosso mais alto colégio judiciário: “Não pode o Supremo Tribunal substituir-se à autoridade administrativa, para pronunciar, desde logo, e antecipadamente, a decisão que àquela cabe proferir”.8 Mostrou ROGER PINTO que a formação sistematizada de direito administrativo nos Estados Unidos se retardou em virtude da invasão judiciária no terreno da discricionariedade.9

Na definição clássica de MICHOUD, há poder discricionário sempre que uma autoridade age livremente, sem que uma norma de direito determine, prèviamente, a conduta a seguir.10 Quando a lei estabelece, desde logo, o modo de agir, cessa a esfera discricionária. O procedimento administrativo está vinculado à determinação legal. Não cabe à administração a faculdade de optar pela ação ou abstenção, por êsse ou aquêle método de execução. Cumpre-lhe, apenas, reproduzir materialmente o conteúdo do ato legislativo. Se, no entanto, a lei não particularizou a conduta administrativa, ou se lhe possibilitou alternativa, subsistirá o poder discricionário.

A competência vinculada seria, por esta forma, o oposto à competência discricionária. Seriam entidades antinômicas, a se repelirem pela incompatibilidade conceitual: onde houvesse vinculação, estaria expulsa a discrição; onde esta se formulasse, aquela seria repelida.

A experiência evidencia, porém, a inanidade dessas concepções extremas. Se raros são os atos totalmente vinculados, jamais se poderá conceber um ato inteiramente discricionário. MAURICE HAURIOU, condensando a tendência que LAFERRIÈRE já delineava na jurisprudência do Conselho de Estado, desde 1872, anotou: “Há atos em que a questão da oportunidade tem importância maior do que em outros; mas não há atos onde, ao lado da questão de oportunidade, não se possam erguer questões de legalidade”.11 LOPEZ RODÓ indicou, há pouco, que, o poder discricionário, como os metais, não se encontra quimicamente puro.12

Revendo o processo de formação do ato administrativo, poderemos surpreender a ação do poder discricionário sôbre as partes em que êle se desdobra. A primeira etapa do ato administrativo se filia à competência específica para praticá-lo. Cada autoridade dispõe de uma capacidade de agir que provém de uma norma de direito. Não há, em matéria administrativa, competência geral ou universal: a lei preceitua, em relação a cada agente público, quando e como pode agir como mandatário do Estado. A regra de competência não é um produto voluntário, mas um princípio estatutário. Não é uma criação subjetiva do administrador, mas um critério objetivo da lei. Não é, em suma, um requisito discricionário, mas um elemento vinculado.

A realização do ato pressupõe, por outro lado, certos antecedentes objetivos. A autoridade competente não atua no vácuo; ela se movimenta em função de aspectos de fato ou de direito que determinam a sua iniciativa. O ato administrativo se inicia, portanto, com a verificação da existência dos motivos. Segue-se, imediatamente, a apreciação do valor dêsses motivos, a fim de que possa a autoridade se orientar no tocante à necessidade de agir ou sôbre os meios indicados para a obtenção do resultado.

É na sucessão dêsses dois tempos que se insere o poder discricionário. Ao passo que na verificação da existência material ou legal dos motivos não há senão um processo de apreensão da realidade objetiva, na sua valorização subjetiva-se a criação do ato administrativo. A existência ou não dos motivos é assunto de ordem material: a sua observação imperfeita provocara um êrro de fato ou de direito, sujeito ao contrôle de legalidade. A ponderação e a medida dos motivos, como causas impulsivas da vontade do administrador; correspondem a um processo psicológico, pertencente ao prisma discricionário.

Apreendidos e analisados as motivos, o agente se manifesta por meio de um resultado comissivo ou omissivo. A autoridade age para alcançar o objeto, ou seja, o efeito de sua manifestação de vontade. É, sobretudo, nesse setor que opera, mais amplamente, o poder discricionário. Êste é, por excelência, o seu terreno próprio. Não existindo na lei a obrigação de um determinado resultado, poderá a administração decidir sôbre a oportunidade ou a conveniência do ato administrativo. A livre determinação do objeto é, em suma, o núcleo do poder discricionário.

Não basta, porém, que a autoridade seja competente e os motivos adequados. A regra de competência não é um cheque em branco concedido ao administrador. A administração serve, especificamente, a interêsses públicos caracterizados. Não é lícito ao agente servir-se de suas atribuições para, satisfazer interêsses pessoais, sectários ou político-partidários, ou mesmo a outro interêsse público que não se filie ao seu âmbito de competência. Uma autoridade sanitária deve operar sòmente com o fito de preservar a saúde pública. Uma autoridade policial deve atuar em benefício da ordem e da tranqüilidade públicas. O poder administrativo é vinculado a um determinado interêsse público e não comporta aplicação em favor de quaisquer outros objetivos, embora louváveis e beneméritos. A discrição administrativa tem, portanto, como teto a finalidade legal da competência.

Em síntese: o poder discricionário é a faculdade concedida à administração de apreciar o valor dos motivos e determinar o objeto do ato administrativo, quando não preestabelecido na lei. Êle se submete a limites externos (que VÍTOR NUNES LEAL13 chamou, simbòlicamente, de horizontais), como a competência, a forma e a existência dos motivos e, ainda, a limites internos (que, por antítese, seriam verticais), segundo os quais o ato de vontade do administrador se canaliza a um fim obrigatório contido, explícita ou implìcitamente, na regra de direito.

Vimos, inicialmente, que a crise da administração pública moderna reside no equilíbrio entre a dilatação da atividade discricionária e o refôrço do contrôle de legalidade. Na fase atual de intervencionismo administrativo, é necessário propiciar meios de ação eficiente aos entes públicos, mas impedir que êles se coloquem à margem da lei. Deve a administração dispor de uma área territorial ampla, dentro da qual possa operar com inteira desenvoltura. Ao contrôle da legalidade incumbe, porém, o patrulhamento das fronteiras, de modo a vedar as excursões abusivas e reconduzir o poder discricionário aos seus domínios legítimos. No plano jurídico, a administração funciona sob regime de liberdade vigiada: tudo lhe é permitido fazer, em benefício do interêsse público, salvo aquilo que ofenda à lei. O contrôle de legalidade fiscaliza a atividade discricionária, sem nela interferir, anão ser quando exorbitante. Cumpre-lhe dizer apenas se o ato é legal ou ilegal, jamais se é mau ou injusto.

O ato administrativo se desdobra em duas fases distintas: mérito e legalidade. A primeira é a indagação política de sua conveniência ou oportunidade e corresponde, na síntese exata de SEARA FAGUNDES, à medida de discrição.14 A segunda compara a fidelidade do agente aos pressupostos legais.

Não se confunde, porém, o mérito com a matéria de fato. O exame da legalidade obriga, também, a considerar os antecedentes do ato. Não basta que, em tese, a lei admita um certo resultado. É necessário o nexo de causalidade entre o objeto e os motivos.

A ilegalidade mais grave é a que se oculta sob a aparência da legitimidade. A violação maliciosa encobre os abusos de direito com a capa virtual de pureza. Daí a justa observação de PAUL DUEZ: a alternativa legalidade-oportunidade não corresponde à alternativa questão de direito-questão de fato.15 É na intimidade da matéria de fato que se denunciam os divórcios sutis entre a lei e o arbítrio.

A teoria da inexistência dos motivos e o desvio de poder

A jurisprudência francesa, tão rica de substância doutrinária, partiu das formas notórias de nulidade por incompetência, vício de forma ou violação da lei, para consolidar o contrôle de legalidade mediante duas criações originais e profundas: o desvio de poder e a teoria da inexistência dos motivos. ROGER VIDAL dedicou excelente ensaio à evolução do Conselho de Estado no tocante ao contrôle dos motivos e da finalidade dos atos administrativos.16

Não cabe nos limites desta palestra reconstituir a fecunda criação da figura do détournement de pouvoir, com que, desde os meados do século passado, a jurisprudência do Conselho de Estado inovou a concepção do respeito à finalidade da competência administrativa. A anulação de atos administrativos por desvio de puder é, atualmente, aceita na maioria dos países. Entre nós, já mereceu o endôsso da jurisprudência, como procurei demonstrar em trabalho elaborado em 1951, sob o título “Desvio de poder em matéria administrativa”. A expressão ingressou até mesmo em nosso direito positiva, com a referência contida no art. 28 da lei número 1.522, de 26 de dezembro de 1951.

O desvio de poder é a inconformidade entre o ato administrativo e a finalidade prevista na lei. A denominação dessa forma da nulidade tem um magnífico teor descritivo. É quando o agente se desvia do alvo obrigatório, em virtude do qual a lei o habilitou a operar, que a ação se torna ilícita e nenhuma.

É certo que os atos administrativos têm, a seu favor, uma presunção de legitimidade. O diagnóstico de desvio de poder exige cautelas extraordinárias, utilizando os instrumentos de precisão a que alude VÍTOR NUNES LEAL “para não vestir um santo com a roupa de outro, substituindo o arbítrio administrativo pelo arbítrio judiciário”.17

O Conselho de Estado francês, em quase um século de experiência, tem sido sóbrio na aplicação dêsse remédio heróico. MAURICE HAURIOU indicou a proporção aritmética da jurisprudência: “99% das vêzes, o poder discricionário sairá vitorioso dessa passagem ao crivo; e, 1%, será encontrado em falso”.18 E GASTON JÈZE, apenas há 10 anos, confirmava a moderação dos juízes administrativos; “Por maiores que sejam os poderes de apreciação dos juízes, não há na França o govêrno judiciário. Desde o início do século XIX, não houve, em França, nenhuma tentativa, nenhum desejo dos tribunais em se tornar rivais dos governantes ou de seus agentes”.19

O temor de excessos judiciários na declaração do desvio de poder não tem base na realidade. Os tribunais brasileiros sempre foram corretos na apreciação da ilegalidade ou do abuso de poder administrativo. De qualquer modo, representando a inobservância da finalidade legal uma forma característica de lesão de direito, nem mesmo a lei poderá subtraí-la à apreciação do Poder Judiciário, sem ofensa à Constituição (art. 141, § 2°).

A anulação pelo détournement de pouvoir levou o Conselho de Estado francês a penetrar, progressivamente, no exame dos motivos. Foi, em grande parte, pela análise dos antecedentes de fato que a jurisprudência teve ensejo de assinalar, em casos concretos, a discrepância entre o ato aparentemente lícito e o fim contido na regra de competência.

 Contrôle administrativo, jurisdicional e parlamentar da legalidade dos atos administrativos

A evolução jurisprudencial não limitou o contrôle dos motivos a simples meio de prova do desvio de finalidade. ROGER BONNARD classifica a inexistência dos motivos como novo tipo de recurso por excesso de poder,20 e ROGER VIDAL, no trabalho a que já nos referimos, documenta a distinção entre os vícios sôbre os motivos e o fim, embora assinalando a sua estreita associação.

A teoria da inexistência dos motivos abrange tanto a sua ausência, material, como a legal. Não sòmente podem inexistir os fatos argüidos pela administração, como serem, por sua natureza, indiferentes ao Direito. Em qualquer dessas hipóteses, não se poderá o administrador valer dêles como justificativa do ato praticado.

Daí a necessidade de conduzir o contrôle de legalidade à verificação da matéria de fato. A lei não é um artifício automático, mas um processo de graduação de valoras materiais em função de critérios abstratos e gerais. A existência, jurídica do ato não se resume na propriedade da norma invocada, mas em seu pleno ajustamento à hipótese concreta.

É auspicioso assinalar que a jurisprudência brasileira tem acolhido o exame dos motivos pelos órgãos judiciários. Em acórdão proferido na apelação cível número 7.307, em sessão de 20 de dezembro de 1944, o Supremo Tribunal Federal abandonou a antiga orientação de não apreciar a fase probatória nos processos administrativos.21 Em repetidos pronunciamentos, os nossos tribunais têm modernamente, firmado o critério de que a pesquisa da ilegalidade administrativa admite o conhecimento pelo Poder Judiciário das circunstâncias objetivas do caso. Ainda recentemente, em acórdão no recurso extraordinário n° 17.126, o Supremo Tribunal exprimiu, em resumo modelar, que cabe ao Poder Judiciário apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da administração”.22

Paralelamente, importa salientar que a injustiça ou o rigor nas decisões administrativas escapam ao controle de legalidade. Analisar os motivos, a fim de apurar se juridicamente são existentes, não significa., como é óbvio, avocar a livre valorização dêsse elemento de fato, que é terreno peculiar ao poder discricionário.

Desde que o motivo tenha existência material ou legal cessa, imediatamente, a intervenção jurisdicional. A graduação de seus efeitos na esfera administrativa é tema a ser versado, totalmente, pela administração. É, em suma, condição de mérito, e não da legalidade.

Estabelecidos os limites de atuação do controle de legalidade, resta considerar o modo pelo qual se processa a sua aplicação. A noção da repulsa aos atos ilegais da administração está, usualmente, ligada à ação do Poder Judiciário. Não é, porém, privilégio dos juízes a anulação dos atos administrativos ilegítimos.

Os atos administrativos são, em princípio, revogáveis pela própria administração, que, seja em virtude de recursos administrativos, seja ex officio, poderá reconsiderá-los, no mérito, ou na legalidade, salvo quando tenham gerado situações jurídicas definitivamente constituídas. Quando, porém, o ata administrativo está maculado por vício de legalidade, é pacífico, entre nós, que a própria administração poderá desfazê-lo, independente do socorro jurisdicional. Como adverte SEABRA FAGUNDES, “se o ato, desde a origem carece de validez, não pode haver gerado direito para ninguém”.23 Diversa será, no entanto, a solução nos países em que, como “na Espanha, é vedado à administração anular quaisquer atos declaratórios de direito, mesmo se ilegais, cabendo, na hipótese, à pessoa jurídico administrativa promover, judicialmente, o recurso contencioso próprio, que é o processo administrativo de lesividade, a que AURÉLIO GUAITA consagrou recente e notável monografia”.24

O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário é, no entanto, a garantia mais perfeita da legalidade democrática. Graças à vigilância judiciária, o crescimento da administração não se converteu em ditadura burocrática, mantendo-se estáveis os direitos subjetivos dos cidadãos.

A matéria contenciosa se classifica em dois sistemas principais de organização jurisdicional. A jurisdição administrativa se apresenta, em alguns países, em órgãos distintos da jurisdição comum, como é exemplo típico o sistema francês. Em outros países, prevalece a unidade jurisdicional, sem prejuízo da especialização de órgãos judiciários inferiores. É o modelo anglo-saxão, a que se filia a organização do nosso Poder Judiciário.

Na França, aliás, a jurisdição administrativa se formou às expensas da administração, e não da justiça ordinária. A organização francesa evoluiu, no regime republicano, do sistema da administration-juge (em que a administração era juiz dos seus próprios atos) para a justice retenue (em que o Conselho de Estado era apenas órgão consultivo do chefe de Estado), até alcançar a autonomia da Jurisdição administrativa (justice deleguée). Na atualidade, por outro lado, muitos aspectos do contencioso administrativo escapam à competência do Conselho de Estado e dos órgãos correlatos. Além de tribunais administrativos especiais, tôda a matéria contenciosa relacionada com os serviços industriais e comerciais do Estado, ou com os serviços públicos de gestão privada, figura na competência dos tribunais judiciários. E inexata, assim, no quadro atual do direito francês, a assertiva de que a jurisdição administrativa abrange tôdas as formas de controle jurisdicional da administração.

Na Itália, o sistema se desdobra em uma duplicidade de jurisdição; as lesões de direitos subjetivos são, via de regra, sujeitas à justiça ordinária, cabendo à justiça administrativa a tutela dos interêsses legítimos. Sòmente em casos especiais, definidos em lei, existe a jurisdição exclusiva do Conselho de Estado ou da Junta Provincial Administrativa, absorvendo as duas categorias de proteção jurisdicional. É o critério tradicional, incorporado à Constituição de 1947 (artigos 103 e 113).

O sistema brasileiro adota, como o modêlo anglo-saxão, o principio da unidade jurisdicional. O controle da legalidade administrativa está afeto aos órgãos de jurisdição ordinária procurando-se, apenas, uma especialização relativa dos juízes mediante a criação de varas privativas da fazenda pública e, até certo ponto, através da instituição do Tribunal Federal de Recursos. Ao Supremo Tribunal Federal cabe, no entanto, como órgão máximo da organização judiciária, manter o equilíbrio e a continuidade da jurisprudência nacional, ainda incertas em tantos aspectos capitais de direito administrativo.

Em seu conjunto, a experiência brasileira revela excelentes resultados no controle jurisdicional da administração. Os nossos Juízes têm-se colocado no exato papel de assegurar a legalidade administrativa, sem violar o livre exercício do poder discricionário, A ação popular, definida na atual Constituição, e, atualmente, em vias de ser complementada em lei especial, facultará a proteção dos interêsses legítimos dos cidadãos contra os atentados ao patrimônio dos entes públicos da administração direta ou descentralizada.

Cabe, finalmente, destacar a alta importância que oferecem à apreciação da regularidade administrativa os instrumentos de controle parlamentar da administração. Ainda estão longe de ser utilizadas, em tôda a sua plenitude, as armas fornecidas ao Congresso para o combate aos abusos ou excessos de poder. Os pedidos de informações, a convocação de ministros de Estado e, especialmente, as comissões parlamentares de inquérito, são instrumentos que facultam, potencialmente, o controle de legalidade da administração. Verifica-se, provàvelmente, entre nós, o mesmo fenômeno que EMILE BLAMONT estudou, recentemente, com respeito ao Parlamento francês: o efeito político das medidas de controle parlamentar obscurece a sua eficácia na manutenção do equilíbrio da administração.25

Tereis observado, por certo, que o controle de legalidade da administração não é, afinal, monopólio ou privilégio de ninguém. Dêle compartilham os vários poderes do Estado. Dêle se utiliza qualquer do povo, quando ferido em direito seu ou em interêsse legítimo. A defesa da ordem jurídica é, sobretudo, um dever de cidadania: a mística da lei e a fidelidade ao interêsse público são a essência mesma da sociedade livra: e moralizada. O culto à liberdade não se coaduna com a tolerância do arbítrio ou o aceno à violência.

A legalidade não é uma simples criação de juristas, dosada em fórmulas técnicas e símbolos latinos. É o próprio instinto de conservação da comunidade. A todos, incumbe, assim, o dever elementar de vigilância, a fim de que não se desmereça, no trato, dos negócios públicos, a paz social traduzida na Lei e no Direito.

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Notas:

1 GUIDO ZANOBINI, “Corso di Diritto Amministrativo”, 5ª ed., vol. I, pág. 33.

2 Ver, a respeito, meu trabalho “O poder de polícia e seus limites”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 27, pág. 1, e “REVISTA FORENSE”, vol. 144, pág. 23.

3 AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO, “REVISTA FORENSE”, vol. 142, pág. 14.

4 ROGER PINTO, “La crise de l’Etat sua Etats-Unis” 1951, págs. 55 e 160.

5 GEORGES BERLIA, “Les propositions parlamentaires de revision constitutionnelle”, in “Revue de Droit Public et de la Science Politique”, julho-setembro de 1950, pág. 682.

6 BISCARETTI DI RUFFIA, “Tendenze constituzionali contemporanee”, in “Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico”, ano I, nº 1, janeiro-março de 1961, pág. 205, e ano II, nº 2, abril-junho da 1952, pág. 415.

7 G. JELLINEK, “La dottrina generale del Diritto dello Stato”, tradução italiana, 1841, página 177.

8 Acórdão do Supremo Tribunal Federal, no mandado de segurança ao 1.508, “Diário da Justiça” (apenso), de 12-IV-964, pág. 1.237.

9 ROGER PINTO, ob. cit., pág. 135.

10 MICHOUD, “Etude sur le pouvoir discrétionaire”, 1914, pág. 9.

11 MAURICE HAURIOU, “La jurisprudence administrative de 1892 à 1929”, vol. II, pág. 184.

12 LOPES RODÓ, “Le pouvoir discrétionaire de l’administration”, in “Revue du Droit Public et de la Science Politique”, julho-setembro de 1953, pág. 578.

13 VÍTOR NUNES LEAL, “Poder discricionário e ação arbitrária da administração”, in “Revista de Direito Administrativo”, vol. 14, pág. 65.

14 SEABRA FAGUNDES, “Conceito de Mérito no Direto Administrativo”, “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 23, pág. 12.

15 PAUL DUEZ, “Les actes de gouvernement”, pág. 12.

16 ROGER VIDAL, “L’évolution du détournement de pouvoir dans in jurisprudence administrative”, in “Revue du Droit Public et de la Science Politique”, abril-junho de 1952, pág. 275.

17 VÍTOR NUNES LEAL, trab. cit., página 53.

18 MAURICE HAURIOU, ob. cit., pág. 15.

19 GASTON JÈZE, “Appréciation par les gouvernants et leurs agents, de l’opportunité d’agir”, in “Revue du Droit Public et de la Science Politique”, 1943, pág. 14.

20 ROGER BONNARD “Précis de Droit Public”, 7ª ed., 1946, pág. 138.

21 “Rev. de Direito Administrativo”, volume III, pág. 69, com excelente comentário de VÍTOR NUNES LEAL.

22 “Diário da Justiça” (apenso), 22 de fevereiro de 1954, pág. 629.

23 SEABRA FAGUNDES, “Revogação e anulamento do ato administrativo”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. III, pág. 7.

24 AURÉLIO GUAITA, “El proceso administrativo de lesividad (el recurso contencioso interpuesto por la administración), Barcelona, 1953.

25 EMILE BLAMONT, “Les conditions du contrôle parlamentaire”, in “Revue du Droit Public et de la Science Politique”, abril-junho de 1950, pág. 387.

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  2. Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
  4. A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
  5. O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
  6. As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.

II) Normas Editoriais

Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br

Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.

Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).

Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.

Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.

Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.

Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:

  1. adequação à linha editorial;
  2. contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
  3. qualidade da abordagem;
  4. qualidade do texto;
  5. qualidade da pesquisa;
  6. consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
  7. caráter inovador do artigo científico apresentado.

Observações gerais:

  1. A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
  2. Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
  3. As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
  4. Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
  5. Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
  6. A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.

III) Política de Privacidade

Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.


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