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Responsabilidade civil e atentados à democracia

DEMOCRACIA

RESPONSABILIDADE CIVIL

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

06/03/2023

A capa da edição de fevereiro de 2023 do Le Monde Diplomatique – Brasil, desenhada pelo ilustrador Chris Vector, traz uma série de caricaturas relacionadas à invasão às sedes dos Três Poderes, perpetrada em 8 de janeiro deste ano. Ao lado de personagens conhecidos nacionalmente, a capa do veículo exibe pessoas até então desconhecidas, como Antônio Claudio Ferreira, que destruiu um dos dois únicos exemplares existentes do relógio construído por Balthazar Martinot, relojoeiro de Luís XIV, o Rei Sol. O relógio havia sido oferecido pela Corte francesa a D. João VI e estava no Brasil desde 1808. 

Capa do jornal Le Monde Diplomatique Brasil de fevereiro de 2023

Foto: Reprodução/https://diplomatique.org.br/edicao/edicao-187/

A retratação de personagens recém-saídos do anonimato em uma capa que procurou sintetizar um dos episódios mais espantosos da História recente do Brasil desperta a atenção para um fenômeno que não é novo, mas que vem sendo reeditado com novos contornos ao redor do mundo: a manipulação de grupos para a prática de atos de ameaça ou violência contra coisas ou pessoas. O uso crescente das redes sociais e de aplicativos de mensagens permite que certas estratégias de condução das massas sejam utilizadas virtualmente por qualquer indivíduo para fomentar um ataque coletivo a certas pessoas ou instituições. 

Redes sociais como instrumento

Esse tipo de estratégia, que, no passado, dependia da presença física em aglomerações ou comícios, onde, por definição, poderia se ouvir vozes dissonantes, passou a ser empregado sem qualquer forma de diálogo, por meio da multiplicação robótica de conteúdo instigador da violência, quase sempre de autoria anônima. E se, antes, a cooptação de um número expressivo de pessoas para esse tipo de empreitada dependia sempre de algum apoio dos veículos de imprensa, hoje o aval jornalístico mostra-se inteiramente dispensável para alcançar este resultado. Ao contrário: tal espécie de mobilização caracteriza-se, quase sempre, por uma rejeição odiosa ao papel da imprensa e dos jornalistas. Basta notar que numerosos jornalistas foram agredidos e ao menos um fotógrafo foi brutalmente atacado durante o atentado do dia 8 de janeiro – ironicamente, a data em que se celebra no Brasil o Dia do Fotógrafo, em uma lisonjeira recordação de um longínquo 8 de janeiro de 1840, data em que a primeira câmera fotográfica (tecnicamente, um daguerreótipo) chegou ao país.

A responsabilidade pela depredação das sedes dos Três Poderes não recai, naturalmente, sobre as redes sociais ou sobre aplicativos de mensagens, que não são mais que meros instrumentos a serviço de quem pretende atentar contra as instituições democráticas. A liberdade de expressão está expressamente consagrada em nossa Constituição para permitir toda sorte de crítica, mas não para tolerar a incitação à violência ou à destruição do patrimônio público. É, todavia, de se indagar se não deve haver mecanismos para possibilitar a identificação deste tipo de “movimentação” nas redes sociais, com o consequente dever de alertar os órgãos encarregados da segurança pública – supondo, naturalmente, que os mesmos não serão coniventes com qualquer ameaça ou violência a quem quer que seja. 

É certo, entretanto, que este tipo de mobilização coletiva traz desafios não apenas no que tange à prevenção de danos, mas também à responsabilização dos agentes que os tenham eventualmente causado. Segundo relatórios de inteligência, mais de 3.900 pessoas foram a Brasília em uma centena de ônibus vindos de outras cidades para tomar parte na invasão às sedes dos Três Poderes [1]. Até o momento, a Procuradoria-Geral da República já denunciou mais de 600 pessoas pelos crimes cometidos na ocasião e outras tantas pessoas seguem detidas. 

A importância da responsabilidade penal por atentados à democracia

A repressão penal é, de fato, extremamente relevante para desestimular novos atentados à democracia. A quantidade de agentes que praticaram os atos ilícitos não deve servir de pretexto para a ausência de investigação e responsabilização na esfera penal. O exemplo do Capitólio é emblemático. Desde 6 de janeiro de 2021, data da invasão da sede do Congresso dos Estados Unidos, mais de 950 pessoas foram processadas. Dentre estas, 484 reconheceram sua responsabilidade e iniciaram tratativas para celebrar transações penais, mais de 350 pessoas foram sentenciadas e quase 200 foram condenadas a penas de prisão, de acordo com dados divulgados pelo Departamento de Justiça daquele país [2].

Ao lado da responsabilidade penal, não se pode deixar de propor as necessárias ações de responsabilização civil contra aqueles que causaram danos ao patrimônio público. A responsabilidade civil, que resulta no mais das vezes em uma condenação ao pagamento de certa soma em dinheiro (indenização), exerce um relevante papel de desincentivo à prática de atos ilícitos (deterrence), especialmente quando logra interromper o fluxo econômico que dá amparo a ataques coletivos a pessoas e instituições.

O protesto político é livre, como sabemos, mas o transporte de centenas de pessoas e o financiamento de ocupações de áreas públicas no Distrito Federal, sem comunicação prévia com os órgãos de segurança pública, especialmente no clima de ebulição que se segue a um disputado pleito eleitoral ou a posse do candidato que resulta dali vitorioso, quando não caracteriza uma deliberada coautoria do ilícito – a ensejar responsabilidade solidária, nos termos do artigo 942 do Código Civil – configura, no mínimo, atividade de risco, a atrair o regime de responsabilidade objetiva, nos termos do artigo 927, parágrafo único, da mesma codificação. 

Toda a lógica da responsabilidade pela criação de riscos (em oposição ao tradicional regime da responsabilidade por culpa) assenta sobre a premissa de que, muitas vezes, a lei precisa lançar a responsabilidade sobre o agente que tem as melhores condições de evitar o dano. É conhecido, neste sentido, o exemplo da responsabilidade civil por danos causados por torcidas organizadas.

Enquanto esta responsabilidade era tratada sob a ótica puramente individual, centrada sobre a identificação do causador do dano, havia pouco ou nenhum incentivo para que os clubes de futebol adotassem providências sérias para evitar os confrontos e a vítima ainda restava invariavelmente privada da reparação do dano por força da incapacidade econômica do ofensor. O Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003) rompeu com este ciclo vicioso, ao determinar, em seu artigo 14, que “a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes”. Ao lançar responsabilidade sobre os clubes, o referido Estatuto incentivou a adoção de medidas que foram decisivas para mitigar a violência nos estádios brasileiros. 

Os danos ao patrimônio público exigem reparação – e aí não se alude apenas aos danos materiais, mas também aos danos imateriais causados por aqueles que invadem e depredam sedes de Poderes da República. “A força do direito deve superar o direito da força” – afirmou Rui Barbosa, cujo busto foi golpeado durante a invasão do dia 8 de janeiro. Por decisão da ministra Rosa Weber, a imensa cabeça segue sendo exibida no edifício do Supremo Tribunal Federal, “como lembrança de que nem os vultos ilustres desta nação, como o grande Rui, estão imunes à malta irresponsável, em evidente demonstração de que a ignorância nada mais é do que terreno infértil”.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] Ver Mais de 100 ônibus chegam a Brasília e governo promete endurecer contra extremistas (Estadão, 7.1.23).

[2]Confira-se a reportagem do Deutsche Welle, intituladaO que aconteceu com invasores do Capitólio nos EUA,publicada em 10 de janeiro de 2023. 

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