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Vereador – Imunidade Concedida em Lei Estadual

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CIVIL

CONSTITUCIONAL

PENAL

PROCESSO PENAL

Vereador – Imunidade Concedida em Lei Estadual

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

IMUNIDADE PARLAMENTAR

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 153

VEREADOR

Revista Forense

Revista Forense

01/09/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 153
MAIO-JUNHO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

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CRÔNICA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

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  • O Sistema Penitenciário no Direito Brasileiro – Lourival Vilela Viana
  • Contrôle das Assembléias Gerais das Sociedades Anônimas – Filomeno J. da Costa
  • Da Apuração do Dano Conforme a Natureza da Culpa – Abelardo Barreto do Rosário
  • A Inconstitucionalidade do Impôsto Adicional de 1%, Da Fundação da Casa Popular – Alípio Silveira
  • A Crise da Propriedade Industrial – João da Gama Cerqueira
  • Revelia do Autor – Absolvição de Instância – A. Lopes da Costa
  • Unificação de Justiça – João Solon Macedônia Soares
  • Salário Mínimo – Extensão aos Servidores Civis, Militares e Autárquicos, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, Bilac Pinto
  • Abono de Desemprêgo, Bilac Pinto

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA 

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

Agnelo Amorim Filho, procurador geral do Estado da Paraíba.

PARECERES

Vereador – Imunidade Concedida em Lei Estadual

– Sòmente a Constituição federal pode outorgar imunidades.

PARECER

1. A Constituição do Estado da Paraíba, em seu art. 86, parág. único, dispõe:

“Os vereadores são invioláveis por suas opiniões, palavras, e votos, no exercício do mandato”.

Considerando a paciente acobertada pelas imunidades concedidas naquele dispositivo, o impetrante postula, por meio de uma ordem de “habeas corpus”, a decretação da nulidade de um processo por crime de calúnia instaurado contra ela em virtude de queixa apresentada pelo prefeito do Município de Espírito Santo. O pedido foi instruído com prova satisfatória de que a paciente é vereadora, e de que as palavras caluniosas foram proferidas no exercício do respectivo mandato. O que o Egrégio Supremo Tribunal Federal vai decidir, em grau de recurso, por conseguinte, é se os vereadores municipais gozam de imunidades pelo fato de tais imunidades lhes serem asseguradas em uma Constituição estadual.

O primeiro problema que surge quando se enfrenta o estudo das imunidades parlamentares é a indagação acêrca do poder ou poderes competentes para outorgá-las – constituinte federal? legislativo ordinário federal? constituinte estadual? legislativo ordinário estadual? O segundo problema é o relativo à extensão daqueles privilégios: gozam de imunidades os membros do Congresso Nacional, das Assembléias Estaduais, e das Câmaras Municipais, ou só os de uma ou algumas daquelas corporações?

Pode-se definir a imunidade parlamentar como sendo o conjunto de prerrogativas ou privilégios atribuídos aos membros do Poder Legislativo, segundo os quais êles são invioláveis no exercício do mandato por suas opiniões, palavras e votos, e, desde a expedição do diploma, até a inauguração da legislatura seguinte, não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente sem prévia licença de sua Câmara. A definição é extraída dos arts. 44 e 45 dá Constituição federal, e o que se verifica, antas de mais nada, é que as imunidades parlamentaras são de duas espécies: a primeira (art. 44), é de natureza material – relaciona-se com os efeitos de atos praticados pelos membros do Poder Legislativo; a segunda é de natureza formal – impõe normas espaciais à sua prisão e aos processos instaurados contra êles. Fazendo-se abstração do revestimento político sob o qual se apresentam as duas espécies de imunidades parlamentares, e levando-se em conta apenas o seu conteúdo, não se pode negar que elas encerram regras que, necessàriamente, deram ser classificadas como sendo de direito substantivo (penal e civil, art. 44), e de direito processual penal (art. 45). Convém acentuar que a imunidade material também abrange o campo do direito civil (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1946”, 2-30), mas, mesmo que assim não se entenda, isto não afetará, de modo algum, o desenvolvimento da argumentação que se segue.

2. Ao fixar a competência legislativa da União, a Constituição federal estabelece (art. 5°, XV, a) que a ela cabe, com exclusividade (art. 6º), legislar sôbre direito penal civil a processual. Nestas condições, levando-se em consideração apenas a circunstância assinalada, ou seja, o conteúdo das imunidades, pode-se concluir desde já, por exclusão, que o legislador estadual (constituinte ou ordinário) carece de competência para outorgar imunidades – quer aos membros da respectiva assembléia, quer aos membros das câmaras municipais.

Examinemos agora a questão sob o ângulo da competência da União Federal, isto é, verifiquemos se, em face da competência que lhe é atribuída pela Constituição para legislar sôbre direito penal, civil e processual, pode, ou não, o legislador federal ordinário conceder imunidades.

Imunidades e privilégios

Não há como negar que as imunidades – quer a formal quer a material – colocam os membros do Poder Legislativo em situação indiscutivelmente privilegiada e excepcional com relação aos demais cidadãos. Assim, enquanto êstes últimos estão sujeitos a tôdas as regras dos Códigos Penal, Civil e Processual Penal, aquêles recebem tratamento diferente: não podem ser responsabilizados pelas palavras, opiniões e votos emitidos no exercício do mandato, e não podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, e nem processados sem licença da respectiva Câmara. Ora, a Constituição federal, ao enumerar os direitos e garantias individuais, coloca em primeiro lugar o princípio da isonomia: todos são iguais perante a lei (§ 1º do art. 141). A êste princípio, que CARL SCHMITT considera o próprio alicerce do Estado de direito (“REVISTA FORENSE”, 116-402), o professor FRANCISCO CAMPOS classifica como sendo “a garantia das garantias”, pois de nada adiantariam as demais garantias

constitucionalmente asseguradas, se não existisse aquela, que é fundamental, impedindo o tratamento desigual dos cidadãos (“REVISTA FORENSE”, 116-411). Nestas condições, admitir que o legislador federal ordinário pudesse outorgar imunidades seria, por conseguinte, admitir a violação do princípio estabelecido no artigo 141, § 1º, pois o poder que tem a União Federal para legislar sôbre direito civil, penal e processual está limitado pelo aludido preceito constitucional.

Por conseguinte, e resumindo tudo que foi dito até aqui, podemos afirmar que a outorga de imunidade escapa à órbita de competência do legislador estadual (ordinário ou constituinte), porque tem por conteúdo matéria de direito penal, civil e processual; e escapa também à competência do legislador federal ordinário, porque a outorga em questão implica em dar-se tratamento desigual aos cidadãos. Daí, a conclusão: sòmente o poder constituinte federal, que é incondicionado, e que estabeleceu o princípio da isonomia, pode abrir exceções a êste princípio, outorgando, implícita ou explìcitamente, imunidades aos membros do Poder Legislativo. Aliás, esta tese de que sòmente a Constituição federal pode autorizar tratamento desigual aos cidadãos, é sustentada por PONTES DE MIRANDA, embora não se refira êle, de modo particular, às imunidades parlamentares (ob. cit., vol. 3°, pág. 166).

Poder-se-ia, em contrário ao ponto de vista aqui sustentado, argumentar com a tese de ANSCHUTZ, para quem o destinatário do princípio da isonomia não é o legislador, e sim as autoridades incumbidas de aplicar a lei, e chegar-se-ia, então, à conclusão de que o legislador federal ordinário, tendo competência para legislar sôbre direito penal, civil e processual, e não estando obrigado a observar o princípio da igualdade de todos perante a lei, por não ser o destinatário daquele preceito, poderia conceder imunidades. Acontece, porém, que a tese de ANSCHUTZ, apesar do entusiasmo com que foi defendida, tem, hoje em dia, apenas valor histórico, e já não se põe mais em duvida que o legislador é, justamente, o principal destinatário da regra contida no art. 141, § 1º (FRANCISCO CAMPOS, “REVISTA FORENSE”, vol. 116, págs. 398 e segs.).

Até aqui temos argumentado fazendo abstração do aspecto político sob o qual se apresentam as imunidades parlamentares, e chegamos à conclusão de que sòmente a Constituição federal pode outorgá-las. A idêntica conclusão chagaremos se encararmos a questão também sob aquêle aspecto. Com efeito, além de encerrarem as imunidades parlamentares, quanto ao seu conteúdo, matéria de direito civil, penal a processual, elas se revestem de uma feição indiscutivelmente política: são prerrogativas inerentes ao Poder Legislativo. Assim, quando se fala em Poder Legislativo, a principalmente em Poder Legislativo independente, nos têrmos do artigo 7º, VII, b, da Constituição federal, está subentendido que seus membros gozam de imunidades, pois é esta a única maneira de assegurar aquela independência e de resguardá-los de possíveis coações. Ora, à Constituição, e exclusivamente a ela, – máxime nas federações, – cabe estabelecer os lineamentos políticos do Estado, fazendo a distribuição das competências, inclusive para legislar. Nestas condições, sendo as imunidades prerrogativas inerentes ao Poder Legislativo, conforme já acentuamos, e estando, assim, indissolùvelmente ligadas a uma das atividades fundamentais do Estado, sòmente a Constituição federal pode outorgá-las. Formam, assim, as imunidades, um princípio materialmente constitucional, segundo a conceituação de LAFERRIÈRE (“Manuel de Droit Constitutionnel”, página 268), e não um princípio que possa constar, indiferentemente, do estatuto básico ou de lei ordinária.

Uma outra circunstância nos leva ainda a afirmar que a União Federal não pode conceder imunidades: é que sua competência legislativa está restrita aos casos enumerados no art. 5º, XV, da Constituição federal, e am nenhum dêles se pode enquadrar a matéria em debate, se se considerar sua feição política, que é muito mais importante do que seu conteúdo de direito penal, civil ou processual penal.

Parece-nos, assim, em face do que foi exposto até aqui, que de qualquer ângulo pelo qual sejam examinadas, não há como fugir à conclusão de que sòmente a Constituição federal pode outorgar imunidades. A esta mesma conclusão – não sabemos se com iguais fundamentos – chegaram o Supremo Tribunal Federal, em acórdão tomado por maioria de votos (“REVISTA FORENSE”, 120-213); o Tribunal de Justiça de São Paulo, em sessão plena, e por unanimidade de votos (“REVISTA FORENSE”, 122-257); CARLOS MAXIMILIANO (“Comentários à Constituição Brasileira”, 2-57), e JOÃO MANGABEIRA (citação feita na “REVISTA FORENSE”, 122-259).

Inconstitucionalidade da imunidade

Partindo-se do princípio de que ùnicamente o estatuto básico pode outorgar imunidades, e levando-se em conta apenas o que êle dispõe de modo expressa sôbre a matéria, em seus arts. 44 e 45, chegar-se-á a uma conclusão que não pode ser acolhida: é a de que sòmente os membros do Congresso Nacional gozam de imunidades, porque sòmente a êles a Constituição federal se refere. Acontece, porém, que não é constitucional apenas o que está expresso na Constituição. Também os princípios implícitos, decorrentes da forma de Estado e de govêrno e do sistema adotados, têm a mesma fôrça e exigem igual respeito (PERFECTO ARAYA e AGUSTIN DE VEDIA, citados por CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, 3-175). Aliás, a não ser que se pretenda que as Constituições pequem por excesso de casuísmo, é indispensável que se reconheça a fôrça dêste princípios, e foi, precisamente, em obediência a esta orientação que a vigente Constituição estabeleceu as regras consubstanciadas nos seus arts. 18, § 1°, e 144. Nestas condições, o fato de não outorgar a Constituição federal, de modo expresso, imunidades aos deputados estaduais, não autoriza a se afirmar que tais imunidades não existem, pois resta indagar se elas são reconhecidas implicitamente, e a conclusão afirmativa se impõe.

Antes de mais nada, deve ficar registrado que às imunidades dos deputados estaduais não estão incluídas entre os direitos e garantias individuais implícitos, aos quais se refere o mencionado artigo 144, pois aquelas prerrogativas existem em função do Poder Legislativo, e não dos membros das assembléias, tanto que a respeito delas não se pode falar em renúncia (VICOMTE DE MASSOUGNES DES FONTAINES, “De l’immunité parlementaire”, págs. 36-38, e JEFFERSON, “Manual of Parlamentary Practice”). Neste ponto, a Constituição brasileira de 1891 se afastou aquele princípio, que é fundamental, ao estabelecer (art. 20) que o deputado podia optar pelo julgamento imediato, sem audiência da respectiva Câmara. São, pois, outros dispositivos constitucionais – e não o art. 144 – que asseguram as imunidades dos deputados estaduais.

Já acentuamos, anteriormente, que as imunidades são uma garantia necessária ao livre funcionamento do Poder Legislativo, e devíamos ter acrescentado que elas são mesmo indispensáveis à sobrevivência do regime republicano representativo. Com efeito, aquelas prerrogativas foram instituídas a fim de se evitar que o sistema de freios e contrapesos se desvirtue e ultrapasse o limite além do qual não se possa falar em independência e harmonia de poderes. Ora, a Constituição federal, ao determinar, sob pena de intervenção, que os Estados-membros, observem, na sua organização, entre outros princípios, a forma republicana representativa, e a independência e harmonia dos poderes (art. 7°, VII, letras a e b), atribui poder legislativo àqueles Estados, e nesta atribuição está implícita a concessão de imunidade aos componentes das respectivas assembléias, uma vez que repita-se – não se pode conceber a existência de um Poder Legislativo sem aquelas prerrogativas.

Demonstrado que sòmente a Constituição federal pode outorgar imunidades, explícita ou implìcitamente, e demonstrado, também, que os deputados estaduais gozam de imunidades, tira-se, daí, uma conclusão que é de importância capital. As imunidades de que gozam os deputados estaduais têm por fundamento a Constituição federal, e não as Constituições estaduais. Elas existiriam ainda que estas últimas silenciassem a respeito ou as negassem de modo expresso. Assim, deve-se compreender que quando as Constituições estaduais afirmam que os membros das respectivas assembléias gozam de imunidade, está subentendido que tais imunidades não são ali outorgadas originàriamente – o que há é apenas uma remissão à Constituição federal. Esta última não outorga ao constituinte estadual poderes para conceder imunidades aos membros das suas Assembléias – ela própria as concede diretamente.

As considerações feitas acima nos levam a discordar do Sr. DANTON JOBIM quando, em conferência pronunciada em 1950, no Instituto dos Advogados (“REVISTA FORENSE”, 131-346), afirmou que entre os poderes residuais atribuídos aos Estados-membros pelo art. 18, § 1°, da Constituição federal, está o de conceder imunidades aos componentes das respectivas assembléias. Além do que já foi dito acima, acrescentaríamos, para fundamentar nossa discordância, que se prevalecesse aquêle ponto de vista, ter-se-ia que admitir que os Estados-membros também poderiam negar tais imunidades, ou deixar de concedê-las, o que viria confutar com o que dispõe o art. 7º, VII, letras a e b, da Constituição federal. Ademais, surgiria a possibilidade de se estabelecer uma situação verdadeiramente extravagante e contrária aos princípios básicos das federações: a existência simultânea de deputados estaduais com e sem imunidades.

Papel da Constituição Federal

4. Na hipótese sub judice, a paciente é vereadora, e se invoca em seu favor a imunidade material assegurada aos membros das Câmaras Municipais pelo parágrafo único do art. 86 da Constituição do Estado da Paraíba. Já vimos acima que sòmente a Constituição federal pode outorgar imunidades, e se levarmos em conta apenas o que dispõe a referida Constituição estadual, é fora de qualquer dúvida que a paciente não goza das pretendidas imunidades. Examinemos, todavia, um outro aspecto do problema: é se os vereadores podem ser colocadas em pé de igualdade com os deputados estaduais, e se, por conseguinte, a Constituição federal também lhes concede imunidades implìcitamente, a exemplo do que ocorre com êstes últimos. O problema consiste, em última análise, em saber se os Municípios são ou não dotados de Poder Legislativo.

A Constituição federal brasileira, em seu art. 1°, adotou a forma federativa, e a esta matéria foi dada tamanha importância que se proibiu a apresentação de projetos tendentes a aboli-la (art. 217, § 6°). Ora, o que é essencial, na doutrina jurídica do federalismo, é a repartição das competências (PINTO FERREIRA, “Princípios gerais do direito constitucional moderno”, pág. 759), ou seja, o travejamento da esfera de ação de cada um dos poderes constituídos, ou a fixação das linhas político-jurídicas da atividade estatal em seus múltiplos aspectos. Esta repartição de competências, ou “devolução intra-estatal das competências”, segundo a terminologia adotada por PONTES DE MIRANDA, é feita pela Constituição, pois a ela cabe traçar “as linhas mestras da vida do Estado” (“Comentários à Constituição de 1946”, 1° vol., págs. 126, 134, 151, 162 e 219), como “corpo de regras e máximas de acôrdo com as quais os poderes da soberania são habitualmente exercidos” (COOLEY, “Constitutional Limitations”, pág. 4). Por conseguinte, se em um sistema federativo desejamos saber quais as entidades que têm poder de auto-organização, quais as que gozam de autonomia política ou administrativa e os respectivos limites, quais as que exercem atividade legislativa e jurisdicional e sua extensão, etc., etc., é na Constituição federal que se deve procurar resposta para tôdas estas indagações. Isto nada mais é do que aplicação do princípio contido na observação de GEORGES BURDEAU, para quem “…um poder sempre está prêso a uma competência, e esta competência é determinada por uma regra anterior, de tal sorte que todo poder deve ser considerado como uma fôrça domesticada pelo direito e, por conseqüência, dócil à análise jurídica” (“Traité de Science Politique”, 3-171). É, pois, na Constituição federal que iremos verificar se os Municípios têm, ou não, Poder Legislativo, pois é êste o ponto de partida para se saber se os vereadores gozam de imunidades implícitas, uma vez que, expressamente, a mesma Constituição só se refere aos membros do Congresso Nacional.

Dizendo a Constituição federal, como diz, em seu art. 1°, que adota a forma federativa, implìcitamente está admitindo que não só a União como também os Estados-membros têm poder legislativo, pois o que caracteriza as federações, segundo a fórmula clássica de BRYCE, é o fato de, sôbre um mesmo território e sôbre as mesmas pessoas, se exercer, harmônica e simultâneamente, a ação política de dois governos distintos, o federal e o estadual (“The American Commonwealth”, 1-15). A atribuição de poder legislativo aos Estados-membros é feita ainda de modo expresso nos dispositivos por meio dos quais a vigente Constituição distribui a competência legislativa, e traça os respectivos limites (arts. 2º, 6º e 18). Dúvida não há, por conseguinte, que os Estados-membros têm Poder Legislativo. Com referência aos Municípios, todavia, não ocorre a mesma coisa. Em primeiro lugar, deve ficar acentuado que não existe qualquer dispositivo constitucional atribuindo, expressamente, Poder Legislativo aos Municípios, e esta circunstância é tanto mais importante quanto é certo que a competência legislativa está, tôda ela, distribuída entre a União (art. 5°, XV) e os Estados-membros, aos quais cabem os poderes residuais (art. 18, § 1°). Para os Municípios, nada ficou.

Por outro lado, quando se fala em “federação”, que é um conceito político, não se está admitindo, necessàriamente, a existência do Município – que é conceito de ordem administrativa – e muito menos a existência de Município dotado de Poder Legislativo. O Município não é noção indispensável à federação, pois nesta a unidade política é o Estado-membro (LEVI CARNEIRO, “Organização dos Municípios e do Distrito Federal”, págs. 26, 135, 136 e 137). Polìticamente, os Estados-membros são unitários, embora descentralizados administrativamente (CASTRO NUNES, “As Constituições estaduais do Brasil”, 1-41).

Também não há qualquer dispositivo constitucional que atribua, explícita ou implìcitamente, autonomia política aos Municípios, e só as entidades que a têm podem emitir leis (LEVI CARNEIRO, obra cit., pág. 175). Aos Municípios, a Constituição federal assegura apenas autonomia administrativa, e esta, por mais ampla que seja, não desvirtua o sistema federativo – que diz respeito ao conteúdo político da estrutura do Estado – nem lhes confere poderes que só as entidades politicamente autônomas detêm.

Não há, por conseguinte, como fugir a esta conclusão: os Municípios não têm Poder Legislativo.

Evidentemente J. GUIMARÃES MENEGALE inverteu os verdadeiros têrmos da questão quando, para chegar a uma conclusão oposta àquela, começou por afirmar que “em nenhum dispositivo da Constituição transparece a eliminação do poder legislativo municipal” (“Direito administrativo e ciência da administração”, 1-240). Há, nesta assertiva, uma evidente confusão entre poder constituído e poder constituinte. Para se saber se nossos Municípios têm Poder Legislativo, o que é indispensável fazer-se, antes de mais nada, é verificar se a Constituição federal lhes confere tal poder, pois nos Estados constitucionais prevalece o princípio, que é fundamental, segundo o qual nenhuma entidade detém poderes que não lhe sejam atribuídos, explícita ou implìcitamente, no estatuto básico. Cabem, aqui, aquelas mesmas observações de GEORGES BURDEAU, já mencionadas acima. Sòmente com relação aos Estados-membros se poderia utilizar argumento da natureza daquele utilizado pelo referido autor, pois a êles cabem os poderes residuais, mas não deve ser esquecido que os Estados-membros só exercitam aquêles poderes porque estão autorizados pela Constituição federal (art. 18, § 1°).

A fim de ficar evidenciado, ainda mais, que os atuais Municípios brasileiros não tem Poder Legislativo, devem ser feitas algumas considerações especiais a respeito do Distrito Federal. A Constituição federal lhe deu tratamento à parte, distinguindo-o do Estados-membros e dos Municípios, e fazendo-o participar de algumas características de uns e de outros, dando-lhe também características próprias (arts. 1°, § 1°; 15, § 2º; 25; 26; 27; 30; 31; 32; 56; 58, § 1°; 60; 63, II; 101, I, d; 111 e 127). Todavia, embora politicamente o Distrito Federal esteja colocado em plano superior aos Municípios, pois mantém representantes seus e de seu povo no Senado Federal e na Câmara dos Deputados (arts. 60 e 56), o constituinte de 1946 sentiu necessidade de declarar expressamente que a Câmara do Distrito Federal tem funções legislativas (art. 26). Daí, a conclusão: as Câmaras Municipais, a respeito das quais nada se disse, não têm aquelas funções. Poder-se-ia alegar que o que houve com relação ao Distrito Federal foi apenas um excesso de zêlo por parte do legislador-constituinte: o desejo de dissipar quaisquer dúvidas a respeito das funções legislativas da aludida Câmara. Êste argumento, entretanto, viria em apoio da nossa tese, pois se o legislador-constituinte desejasse também atribuir funções legislativas às Câmaras Municipais, teria, por mais fortes razões, declarado expressamente, uma vez que os Municípios não dispõem de qualquer parcela de poder político, mas apenas de autonomia administrativa.

Natureza das resoluções das Câmaras Municipais

As conclusões a que chegamos até aqui exigem, para complementação do estudo, o exame de algumas questões marginais: Se não são leis, de que natureza são, então, as resoluções ou deliberações das Câmaras Municipais? Falta a tais atos a obrigatoriedade sem a qual êles seriam inócuos?

Deve-se a LABAND, nas suas indagações a respeito da natureza jurídica dos orçamentos (“Le Droit Public de l’Empire Allemand”) o desenvolvimento da teoria segundo a qual há que distinguir a lei formal da lei material. Também DUGUIT fêz considerações em tôrno do assunto (“Manuel de Droit Constitutionnel”, 2-160 e 4-296). No sentido formal, lei é tôda disposição de caráter imperativo emanada da autoridade a que, no Estado, se reconhece a função legislativa; e no sentido material, “é o ato jurídico emanado do Estado com o caráter de norma geral, abstrata e obrigatória, tendo como finalidade o ordenamento da vida coletiva” (SEABRA FAGUNDES, “O contrôle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário”, pág. 26). Dentro desta conceituação, são classificadas como leis no sentido material não só as deliberações do Poder Legislativo como aquelas características de generalidade, abstração, e obrigatoriedade (e neste caso a deliberação será, concomitantemente, lei material e lei formal), como também as deliberações de outros poderes com aquelas mesmas características: os regulamentos, os regimentos internos dos tribunais, as decisões normativas da Justiça do Trabalho, as instruções baixadas pelo Superior Tribunal Eleitoral, etc., etc.

De conformidade com a classificação de LABAND, as deliberações ou resoluções das Câmaras Municipais são leis apenas no sentido material, pois, como já vimos, não dispõem elas de Poder Legislativo. Este, aliás, é o ensinamento de KELSEN (“Teoria general del Estado”, trad. cast., pág. 240), CASTRO NUNES (“REVISTA FORENSE”, 120-217) e LEVI CARNEIRO (ob. cit., págs. 33 e 34).

Parece-nos, diante de tudo que foi exposto, que o parág. único do art. 86 da Constituição do Estado da Paraíba; quando outorga imunidades aos membros das Câmaras Municipais, colide frontalmente com princípios básicos estabelecidos na Constituição federal, e não pode, por êste motivo, prevalecer. É indiscutível que os vereadores não gozam de imunidade e a esta conclusão chegaram: JOÃO MANGABEIRA e GUSTAVO CAPANEMA (“REVISTA FORENSE”, 122-258), CARLOS MAXIMILIANO (“Comentários à Constituição Brasileira”, 2-57), o Supremo Tribunal Federal (“REVISTA FORENSE”, 120-213) e o Tribunal de Justiça de São Paulo (“REVISTA FORENSE”, 122-257), sendo de notar que no primeiro dos acórdãos citados, tomado, aliás, por maioria de votos, a matéria foi debatida de modo exaustivo.

É certo que os dois julgados acima referidas decidiram casos em que os vereadores interessados invocavam em seu favor a imunidade formal, e na hipótese presente invoca-se em favor da paciente a imunidade material, ou seja, sustenta-se que não caracterizam o crime de calúnia as palavras par ela proferidas no exercício do mandato de vereadora. A diferença apontada é, todavia, irrelevante, ou melhor, vem reforçar a tese aqui sustentada. Com efeito, se os vereadores não têm, nem os Estados-membros lhes pedem conceder, imunidade formal (conforme concluíram aquelas decisões), por muito mais forte razão o principio deve ser afirmado com reação à imunidade material, que é mais importante, e tem reflexos muitíssimo mais acentuados na ordem pública. Assim, enquanto a imunidade formal prevalece apenas durante o prazo do mandato, e expirado êste o titular pode ser processado, os efeitos da imunidade material perduram mesmo depois de extinto o mandato. Os efeitos da primeira são temporários, e os da outra permanentes.

6. Em face das razões expostas, nosso parecer é no sentido de se negar provimento ao recurso de fôlhas.

Agnelo Amorim Filho, procurador geral do Estado da Paraíba.

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