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Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

24/10/2014

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No último dia 28 de agosto de 2014 recebi uma manifestação no meu site da Sra. Bianca Figueira, estudante de Direito da Universidade Estácio de Sá, contestando o uso do termo transexualismo em uma das minhas obras (TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Volume 5. Editora GEN).

Como de costume, respondi prontamente às suas considerações, não obtendo resposta até o presente momento.

Na data de hoje, tomei conhecimento, pelos meus alunos do Mestrado da FADISP, que a carta endereçada a mim estava sendo debatida nas redes sociais, tendo sido postada pelo Dr. Frederico Oliveira, no respeitado blog  Direito e Diversidade Sexual.

Após o meu texto, transcrevo a íntegra da postagem e da carta.

Pois bem, como resposta à postagem e à própria carta, gostaria aqui de fazer algumas considerações, muitas das quais consta do email endereçado para a Sra. Bianca Figueira.

Com o devido respeito, o transexualismo ou transexualidade continua sendo tratado como uma patologia pela maioria dos estudiosos da área médica e jurídica. A título de exemplo, é assim entendido por um dos maiores especialistas do mundo na matéria, o psicanalista, Henry Frignet, no seu livro O Transexualismo, conhecido mundialmente como obra de referência (Editora Companhia de Freud).

Ademais, ainda consta como doença no cadastro CID da Organização Mundial da Saúde. Igualmente, ainda é regulada por Resolução do Conselho Federal de Medicina. A mais recente norma ética é a Resolução 1.955/2010, que continua tratando a hipótese como sendo de patologia. Enuncia o último diploma que “ser o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”.

Porém, de fato, existe uma tendência de sua retirada do cadastro de doenças, o que estou acompanhando, especialmente em debates com outros juristas, professores e alunos.

Todavia, tenho que deixar claro ao público dos meus Manuais sobre o que ainda é majoritário, o que não afasta a possibilidade de revisão dos temas em futuro próximo. Pontuo que a minha posição doutrinária é de, em regra, seguir os entendimentos médicos, especialmente aqueles que constam das Resoluções do Conselho Federal de Medicina.

Gostaria de esclarecer, a propósito, que sempre fui um defensor dos direitos dos transexuais, especialmente no tocante à cirurgia de adequação de sexo e a alteração do nome e do registro civil. Tal posicionamento é sustentando em interpretação ao art. 13 do Código Civil, desde a primeira edição do meu Direito Civil. Volume1, de 2005. À época, e também nos anos sucessivos, recebia duras críticas por esta minha posição doutrinária, mantida com fervor. Com os primeiros julgados do Superior Tribunal de Justiça, de 2009, reconhecendo suas viabilidades jurídicas, as críticas perderam força. Em complemento, sempre amparei o casamento do transexual que realiza as devidas modificações de gênero, antes mesmo da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre direitos homoafetivos. Ressalto que, no âmbito da jurisprudência, tudo isso só foi possível diante desse enquadramento como patologia.

Agora que muitos direitos de identidade foram incluídos no Brasil temos outras questões a debater. Os aspectos destacados pela Sra. Bianca em sua carta parecem ser uma tendência para o futuro. Complemento com a necessidade de mudança automática do nome e do registro com a cirurgia, sem a necessidade de ação judicial, o que venho sustentando em congressos da classe notarial e registral.

Voltando ao criticado termo transexualismo, já fiz uma nota a constar da próxima edição dos meus livros, que reproduzo abaixo:

“Pontue-se, por oportuno, que apesar do atual tratamento do transexualismo como patologia – inclusive pela sua menção no Cadastro Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde -, existem movimentos científicos e sociais que pretendem considerá-lo como uma condição sexual, assim como ocorreu com a homossexualidade no passado. Seguindo tal caminho, a situação passaria a ser denominada como transexualidade e não como transexualismo. Nesse contexto, existem ações em trâmite no Poder Judiciário que pleiteiam a alteração do nome sem a necessidade de realização da cirurgia de adequação do sexo, muitas com êxito. Em agosto de 2014 foi reconhecida a repercussão geral sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão que teve como Relator o Min. Dias Toffoli (Recurso Extraordinário n. 670.422)”.

Se estou ultrapassado, é preciso estudar novamente o tema. E é o que farei a partir de agora, de forma intensa e profunda. Todavia, não posso, ainda, sem o devido estudo e a correspondente reflexão, incluir conclusões em outro sentido nas minhas obras.

Por fim, fica a mensagem de gratidão a Sra. Bianca por apresentar a problemática de uma outra maneira. Precisamos de mais estudantes de Direito com essa coragem. Precisamos sempre repensar o Direito.

SEGUEM POSTAGEM DO DR. FREDERICO OLIVEIRA E CARTA DA SRA. BIANCA.

Estudante de Direito transexual questiona jurista pelo uso do termo “transexualismo” por Frederico Oliveira.

Disponível em:  http://direitoediversidadesexual.blogspot.com.br/2014/09/estudante-de-direito-transexual.html

Bianca Figueira, conhecida por ter sido excluída dos quadros da ativa da Marinha do Brasil, em razão de sua condição de gênero, após se submeter ao processo de trangenitalização, rebateu recentemente o jurista Flávio Tartuce, por utilizar em seu livro o termo “transexualismo” para referir-se à condição das transexuais.

Atualmente Bianca é estudante de Direito da Universidade Estácio de Sá, em Niterói-RJ e trabalha como conciliadora do Juizado Especial Cível na referida cidade. Ao estudar temas de Direito de Família ela se deparou com o livro de Direito Civil, Volume V, de autoria de Tartuce que dá uma noção equivocada e ultrapassada a respeito da condição das pessoas transexuais.

Ao utilizar o termo “TRANSEXUALISMO”, o jurista demonstra ter uma visão altamente preconceituosa e desconectada da realidade.

Os estudos sobre gênero, monstram claramente que os papéis masculino e feminino são fruto de padrões sociais construídos tradicionalmente e historicamente. Não é o órgão sexual que determina as expressões, os trejeitos e a vestimenta adequada para o indivíduo. A essência da feminilidade ou da masculinidade tem muito mais de construção social do que propriamente de fator biológico ou genético, sendo INACEITÁVEL, por essa razão, que a medicina, e, muito menos o direito, possam afirmar que a condição das pessoas transexuais seja colocada como patologia.

As transexuais dependem de uma adequação anatômica de seu aparelho sexual e de sua aparência física, dependendo, pois, de procedimentos a serem realizados pela medicina que vem avançando na compreensão do tema.

Apesar de ainda resistirem à completa despatologização, o Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental utilizado pela Psiquiatria, deixou de considerar a transexualidade como “transtorno de identidade”, com forte carga patológica, substituindo-a por “disforia de gênero”.

Mesmo assim, no Brasil, a transexual depende necessariamente de um laudo psiquiátrico para se submeter ao processo transexualizador, diferente do que ocorre em países mais desenvolvidos e especialmente da nossa vizinha Argentina que respeita os direitos da identidade de gênero, sem vinculação à absurda avaliação psiquiátrica. Em nosso país tramita no Congresso Nacional um projeto de lei de autoria dos deputados federais Jean Wyllys (PSOL/RJ) e Érika Kokay (PT/DF) nesse sentido.

Veja por exemplo que a medicina hoje atua não somente para o combate de uma patologia, a exemplo dos inúmeros procedimentos médicos realizados para fins estéticos e de bem estar como as cirurgias plásticas, tratamentos dermatológicos etc. Submeter-se a esses procedimentos tal como a colocação de próteses de silicone para as mulheres ou prótese peniana para homens independe, por óbvio, de qualquer laudo psiquiátrico, bastando apenas a autonomia da vontade do paciente para que tais procedimentos se realizem.

Apesar disso, segundo Bianca, Flávio Tartuce, respondeu dizendo que utilizou o termo com base, segundo ele, na “maioria dos estudos”, fazendo remissao à obra do ultrapassado psicanalista Henry Frignet, denominada “O Transexualismo”. Na resposta, o jurista, por ocasião de uma nova edição, se compromete apenas a fazer uma nota sobre os apontamentos feitos por Bianca, mantendo sua posiçao a respeito da condiçao patológica das transexuais.

Ao jurista Flávio Tarturce que, provavelmente não vem se atualizando a respeito dos estudos de gênero, que fazem parte das questões de direito de família e da personalidade civil, deixamos o seguinte recado: a medicina, assim como o direito que depende de uma ordem normativa, sempre foram as ciências mais atrasadas na compreensão da condição humana, bastando ver o tratamento que foi dado à condição da homossexualidade, que só foi retirada pela Organizaçao Mundial de Saúde (OMS) do catálogo de doenças (CID) em  1990, época em que os estudos da sociologia e da psicologia, já consideravam inaceitável esse tipo de tratamento altamente preconceituoso e ofensivo à condição dessas pessoas.

Veja o teor da carta:

Caro Dr. Flávio Tartuce,

Fiquei deveras chateada, para não dizer muito aborrecida, com sua abordagem sobre a TRANSEXUALIDADE (e não TRANSEXUALISMO, pois o sufixo ISMO indica DOENÇA) no seu livro DIREITO CIVIL V – Direito de Família.

Eu sou mulher transexual, com cirurgia de transgenitalização (ou de redesignação sexual ou de readequação sexual, e não MUDANÇA DE SEXO) já realizada, com prenome e gênero já alterados judicialmente. Sou estudante de Direito pela Estácio Niterói, sou Conciliadora no JEC da Região Oceânica de Niterói há quase dois anos e sou Membro da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB/RJ. Além disso, sou Capitã-de-Corveta (reformada) da Marinha do Brasil, reformada por conta de ser transexual. O Sr. já deve ter me visto em alguns programas televisivos, especialmente no programa NA MORAL sobre TRANSGÊNEROS e em minha última entrevista para a TRIBUNA DO ADVOGADO, edição de MARÇO2014, sobre o  título O DIREITO DE SER QUEM É, que ganhou o prêmio NACIONAL DE COMUNICAÇÃO E JUSTIÇA 2014.

Gostaria de comentar os pontos que observei e que me atordoaram profundamente em sua abordagem sobre o TRANSEXUALISMO (SIC) no seu livro:

1. A TRANSEXUAL feminina não QUER SER mulher. A mulher transexual já nasce mulher, só que com o corpo destoante de sua identidade de gênero e necessita de forma premente das mudanças corporais e cirurgias para adequar seu corpo à sua mente, pois o contrário não dá para ser feito;

2. A TRANSEXUALIDADE não é uma PATOLOGIA, não é uma ENFERMIDADE, isto é pacífico até mesmo pelo próprio CFM que já se manifestou várias vezes sobre essa posição. Consulte o CFM, faça uma indagação a eles a esse respeito. A transexualidade infelizmente ainda figura no CID-10 (Código internacional de Doenças, elaborado pela OMS) como TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO e no DSM-5 (Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental) revisado este ano passando a adotar o termo DISFORIA DE GÊNERO e não mais transtorno de identidade de gênero, demonstrando uma forte tendência de retirá-la dos referidos manuais dentro em breve, assim como aconteceu com o HOMOSSEXUALISMO (SIC) que deixou de ser doença em 1985 pelo CFM e em 1990 pela OMS, passando a ser chamado de HOMOSSEXUALIDE, uma condição humana. Isso tudo por graça a um movimento mundial STOP TRANS PATHOLOGIZATION 2012 que luta pela retirada da transexualidade como psicopatologia dos manuais. O fato de constar ainda no CID legitima o PRECONCEITO e a DISCRIMINAÇÃO das pessoas transexuais e respalda órgãos públicos e entidades provadas a afastarem, a dispensarem, a expurgarem os transexuais de seus quadros, como aconteceu no meu caso com a Marinha do Brasil, que após 21 anos de bons serviços prestados, fui afastada compulsoriamente e arbitrariamente de minhas funções, por ser transexual e manifestar minha decisão em mudar minha anatomia para torná-la condizente com minha condição psíquica.

Dr. Flávio, tratar a Transexualidade como doença é negar direitos, é subjugar pessoas, é segregar, é discriminar. Tratar minha sexualidade como doença me fez ir ao fundo do poço, me fez perder minha profissão, me fez perder tudo o que eu tinha construído ao longo de 35 anos de vida, que agora estou tentando reestruturar na tentativa de buscar minha felicidade como MULHER que sou, que sempre fui… desde que nasci.

Em breve teremos a retirada da Transexualidade como doença dos manuais, mas sei que, mesmo assim, ainda vamos ser maculadas pelo preconceito e discriminação de uma sociedade doente, que ainda atira bananas aos nossos jogadores de futebol nos estádios. Ou vai existir algum parlamentar fundamentalista que vai propor a “cura transexual” em alguma Comissão Temática do Congresso Nacional ou mesmo como Projeto de Lei.

Ao ler o seu livro, na página 79, eu tive a certeza de que o Sr. não esperava que uma pessoa transexual pudesse ter acesso a ele, sentada em uma Universidade, desejando se formar, ser Advogada e quem sabe galgando outros postos e cargos na carreira jurídica. Somos minoria e sempre seremos pois o fenômeno da transexualidade vai sempre recair sobre uma minoria, minoria esta que não pode ser considerada patológica somente por ser minoria, diferente e destoante dos demais membros da maioria. Minoria esta que possui direitos e que está hoje, assim como eu, exigindo seu espaço, mesmo sabendo que grandes batalhas teremos pela frente. Uma delas estou tentando travar agora, nesta comunicação que lhe faço e que espero que o Sr. avalize e quiçá, altere a próxima edição de seu livro de DIREITO DE FAMÍLIA V, para que pessoas como eu não se sintam mais “patológicas” ao lerem seu livro.

Não sei nem mesmo se o Sr. vai responder a este contato, mas gostaria de deixar registrada minha PROFUNDA DECEPÇÃO a uma pessoa tão ilustre no meio jurídico, tão inteligente e sábia e que eu sempre nutria inegável admiração.

Atenciosamente e respeitosamente,

Bianca Figueira.

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